Com açúcar, com afeto: uma polêmica insossa

Vejo com bons olhos o aceno que Chico fez ao feminismo, porém não ouso comparar esse tímido ato de um de nossos artistas mais engajados com outras vitórias que o feminismo teve no universo da música brasileira.

Por Laura Luedy

Na última semana fomos surpreendidos pela seguinte notícia: aparentemente é relevante denunciar como “censura” ou “veto” a decisão de um compositor por não mais cantar uma música sua.

Veja bem, não é que a canção sairá de circulação ou que quem a ouvir estará, a partir de agora, sujeito a algum tipo de multa. O que acontece é que, um dia, certo letrista sentou para reavaliar a própria obra e concluiu que uma peça em particular já não “pega muito bem” do ponto de vista político.

Razão suficiente para causar alvoroço entre algumas figuras que comentam cultura nos jornais. Esse grupo, unido sobretudo em torno de uma pretensa defesa da autonomia da arte, parece não perceber que quando seus argumentos não o aproximam de uma posição francamente conservadora e retrógrada não só em política, mas também em arte, no mínimo se contradizem.

Em primeiro lugar, noto que para boa parte desses comentaristas parece que por trás da escolha de Chico por não mais cantar “Com açúcar, com afeto” só pode haver “forças terríveis”, como no discurso de Jânio Quadros. Um deles especificaria: isso foi resultado do “autoritarismo” do “conjunto de manifestações políticas que pegou carona nas chamadas pautas identitárias”. Um de nossos maiores beletristas – hoje no auge de sua consagração – aparece, nessa versão dos fatos, como uma figura frágil, manipulada por um verdadeiro Leviatã paralelo: feministas que, ao que tudo indica, babam sangue por sobre os teclados, prontas para sentenciar o artista a um destino pior que a morte: o cancelamento. Que inveja não devem sentir os carrascos da ditadura que não o puderam calar entre as décadas 1960 e 1970? Sim, para parte desse grupo é mais fácil crer que Chico Buarque foi obrigado a ser um pouquinho feminista a contragosto do que conceber que ele tenha escutado críticas, ponderado e chegado a alguma conclusão a respeito do assunto.

Há, entre os que protestam, aqueles que escapam a tal posição explicitamente retrógrada; muitos desses, porém, recaem num problema muito parecido, na medida em que se enredam na seguinte contradição. Por um lado, notam – com razão –, que o sentido de toda obra é equívoco e inesgotável – e não poderia ser diferente, dado que qualquer produção humana remete a uma pletora de sujeitos e de circunstâncias que se renovam e se alteram incessantemente. Por outro lado, agem como se o objeto de seu gosto fosse uma relíquia intocável a ser resguardada de interpretações que a possam macular; ou seja, agem como se, no fundo, houvesse sim – a despeito do que eles mesmos defendem –, uma interpretação adequada para cada obra: a sua, um mistério revelado só aos iniciados na “crítica de arte acrítica”. A exemplo, veja-se como Luis Felipe Miguel pode falar daquilo que a canção efetivamente representa no seguinte texto, enquanto desautoriza determinadas posturas e interpretações outras.

A esses, creio, só há uma resposta possível. Sim, é verdade, há possibilidades infindáveis de interpretação da letra de “Com açúcar, com afeto”. Contudo, não se pode negar, por outro lado, que na arte há inevitavelmente alguma dimensão comunicacional – ainda que mínima e completamente desligada das intenções do autor. E nada se comunica sem que haja algum sentido compartilhado (antes, durante ou depois). A cada enunciação da mensagem de “Com açúcar, com afeto”, entram em cena ou se produzem alguns sentidos comuns. E o que vemos é que, há décadas, algumas pessoas têm consistentemente apontado algo de problemático na mensagem. Acho que o cerne da questão se resume ao seguinte: muita gente não está mais disposta a ouvir histórias de mulher de malandro que não estejam explicitamente do lado de uma recusa de valores machistas.

E então, o que fazer ante a isso? Tomemos uma posição e sigamos em frente. Gostem os críticos de arte acríticos ou E então, o que fazer ante a isso? Tomemos uma posição e sigamos em frente. Tamiris Coutinho e Sidney Molina o fazem bastante bem, respeitando a complexidade do objeto. Gostem os críticos de arte acríticos ou não, arte e política são mais unidas do que irmãs siamesas – e caso se mobilize uma noção bastante alargada de política (por exemplo, política como agir no espaço comum), pode-se dizer até mesmo que a arte está inevitavelmente imbricada nela. Toda arte faz algum tipo de política. É um esforço inútil, portanto, insistir em separá-las.

O que acontece hoje com “Com açúcar, com afeto” é simplesmente o seguinte: Chico fez uma nova jogada – uma mudança bem sutil, aliás, na política que sua arte faz. Isso incomodou a política de alguns – choveram, em resposta, protestos. De minha parte, vejo com bons olhos o aceno que o autor fez ao feminismo. Sobretudo, porém, não ouso comparar esse tímido ato de um de nossos artistas mais engajados com outras vitórias que o feminismo teve no universo da música brasileira. Não acho que esse episódio tenha a mesma importância que, por exemplo, o deslocamento que Marina Lima produziu ao cantar Erasmo: “um homem pra chamar de seu, mesmo que seja eu”. Não acredito, portanto, que a decisão de Chico mereça o tipo de atenção que tem recebido.

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Laura Luedy é doutoranda no programa de pós-graduação em Sociologia do IFCH-Unicamp. Pesquisa teoria marxista, ecologia, feminismo e gênero.

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