O aplicativo de Araraquara e a soberania digital
Não basta criar um aplicativo diferente para circular pelos espaços urbanos, é preciso repensar toda a lógica, tanto de produção-consumo quanto de infraestruturas, dados e tecnologias.
Por Rafael Grohmann
Na última semana, foi bem noticiada a criação do aplicativo de transporte urbano da cidade de Araraquara, oferecido pela Cooperativa de Transporte de Araraquara (Coomappa) em parceria com a prefeitura. As promessas são de que 95% do valor das tarifas vão para os próprios motoristas. Por um lado, é interessante ver florescer iniciativas como fruto de relações entre políticas públicas e cooperativas, enquanto parte do movimento do cooperativismo de plataforma no Brasil. É preciso, pois, enfrentar a plataformização do trabalho dominante e não há fórmula pronta (ou mágica). Esta iniciativa se une a uma série de outras plataformas que estão em construção no Brasil. Mas, por outro lado, para além de apontar os limites do próprio cooperativismo de plataforma (sobre o qual já escrevemos anteriormente nas revistas Margem Esquerda e Rosa), é preciso também reforçar que ele não se trata somente de um aplicativo solucionador de problemas. Não podemos cair em um solucionismo tecnológico. Pelo contrário, é necessário compreender o papel das plataformas, enquanto meios de produção e comunicação, na luta de classes – o que significa, inclusive, entender a quem pertence as infraestruturas das plataformas.
O aplicativo BibiMob não foi construído nem pela prefeitura de Araraquara nem pela cooperativa de motoristas, mas por uma empresa, com CEO e direito a início na região de San Francisco e tudo – em linha com a ideologia do Vale do Silício. Isso se situa em um contexto de pressão cada vez maior por trabalho decente, em que tem surgido uma série de lobbies, “fair washing” e estratégias de relações públicas por parte das plataformas – grandes e pequenas – para que se posicionem discursivamente como mais “justas” e “transparentes”. Tem até aparecido empresas dizendo que são plataformas cooperativas quando, na verdade, não são. Ou seja, é preciso que se tenha calma ao analisar as iniciativas emergentes – distante da pressa por circulação de conteúdos e cliques.
A empresa BibiMob funciona por modelo de franquia. Há franqueados em cidades como Manaus/AM, Valença/RJ e Cachoeira do Sul/RS – nenhuma delas operada por cooperativa ou poder público. A relação do BibiMob com a prefeitura de Araraquara se deu por meio de um projeto da empresa chamado “App da Cidade”. O projeto pretende que o BibiMob seja o aplicativo oficial do município a partir da criação de cooperativas e relação com políticas públicas. Segundo o site, “a adesão contratual do projeto deve ser realizada pela Prefeitura do município”. Isso significa que, embora a empresa tenha relação tanto com a prefeitura quanto com a cooperativa, a apropriação da tecnologia da plataforma é privada, e não é de propriedade nem de trabalhadores nem do poder público. Ou seja, não é, de fato, uma plataforma de propriedade de trabalhadores ou do poder público.
O cooperativismo de plataforma precisa se situar em um marco mais amplo de políticas públicas rumo a soberania digital – como Paola Ricaurte e eu defendemos neste texto sobre soberania de dados no Brasil e no México – e mesmo em uma perspectiva de ciência de dados por parte dos trabalhadores. Afinal, a quem pertencem as tecnologias, os softwares, as infraestruturas e os dados? Elas não são neutras ou gratuitas, inclusive centro de dados e cabos submarinos. E plataformas que se proponham mais democráticas tem que unir tecnologias e infraestruturas próprias a questões como governança democrática e trabalho decente (veja esta figura construída por pesquisadores do grupo Dimmons, de Barcelona). O que tem sido feito, e como podemos aprender com outras iniciativas para que realmente tenhamos plataformas de propriedade de trabalhadores?
Na Europa, o caso mais conhecido é a CoopCycle, uma federação de cooperativas de entregadores – e governada democraticamente por elas – que fornece software para as iniciativas federadas. Ela escala por meio da intercooperação, ou seja, o consumidor baixa um só aplicativo, e pode usar em cidades como Berlin, Bordeaux ou Barcelona. O código do software é disponível no GitHub, mas não é aberto. Está sob uma licença Coopyleft, o que significa que somente pode ser usado e licenciado por cooperativas que estão de acordo com as regras da CoopCycle – o que envolve uso de bicicletas e luta por mobilidade e sustentabilidade. Em 2020, no embalo dos Breques dos Apps, grupos de entregadores brasileiros fizeram reuniões com a CoopCycle, mas as negociações esfriaram por causa do uso de motos no Brasil. Além do fato de que as ruas de Rio ou São Paulo não são do mesmo jeito que Bordeaux – no contexto europeu em que foi projetado o software – há limites do próprio aplicativo pelas cooperativas que o utilizam, conforme pesquisa que publiquei na revista South Atlantic Quarterly com cooperativas e coletivos de Espanha, França e Brasil. Isto é, embora reconheçam que a alternativa é mais barata para os entregadores – em vez de pagarem pelo próprio software – as cooperativas sabem também os limites da tecnologia. Afinal, o programador, quando escreveu o código, não tinha em sua mente sua utilização por diversos lugares.
Agora, a CoopCycle está chegando à América Latina. Já está operando no México e está vindo para a Argentina em parceria com a Federación Argentina de Cooperativas de Trabajo de Tecnología, innovación y Conocimiento (Facttic). Esta pode ser, inclusive, uma boa hora para coletivos de entregadores no Brasil retomarem o diálogo com a CoopCycle. Mas, mais do que isso, este é um bom momento para, em vez de somente importar uma tecnologia já projetada originalmente para o contexto europeu, aprender com o histórico de movimentos por tecnologias livres na América Latina. A própria Argentina possui uma série de cooperativas de tecnologias, como a GCoop e outras federadas da Facttic. No México, há também a cooperativa Tierra Común. O Brasil tem também um forte histórico de movimentos de software livre, como brilhantemente mostrou Leonardo Foletto no livro A Cultura é Livre.
Isto é, aqui não é terra arrasada e há histórico de movimentos com os quais podemos aprender para construção de plataformas de propriedade de trabalhadores. Precisamos aprender com iniciativas que têm inclusive construído infraestruturas comunitárias e autônomas (como MariaLab no Brasil) e lutado para enfrentar o colonialismo de dados, em movimentos de tecnologias não alinhadas (há outros exemplos latino-americanos na rede Tierra Común – homônimo à cooperativa), além de outras formas de resistências algorítmicas. Com isso, defendemos uma articulação mais sólida entre organizações de trabalhadores plataformizados e movimentos por tecnologias livres e cooperativas de tecnologia.
Contudo, isso não acontecerá espontaneamente nem da noite para o dia. É preciso que haja a construção de políticas públicas que coloquem no centro a soberania digital do Brasil, dentro do qual o cooperativismo de plataforma pode ser um dos eixos. A cidade de Barcelona, por exemplo, construiu, como política pública, um programa de fomento e aceleração de plataformas ligadas à economia solidária, a partir de uma perspectiva transversalmente feminista, o MatchImpulsa (há também um vídeo em português explicando o programa). Não basta criar um aplicativo diferente para circular pelos espaços urbanos, é preciso repensar toda a lógica, tanto de produção-consumo – como defende Ursula Huws em relação à desmercantilização das plataformas – quanto de infraestruturas, dados e tecnologias.
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Os laboratórios do trabalho digital
Os laboratórios do trabalho digital: entrevistas, obra organizada por Rafael Grohmann, traça um panorama dos estudos sobre trabalho e tecnologia por meio de 38 entrevistas com os principais pesquisadores da área no Brasil e no mundo, como Virginia Eubanks, Jamie Woodcock, Ursula Huws, Ludmila Costhek Abílio e Ricardo Antunes. Uma das várias lições deste livro é que o cenário atual do trabalho em plataformas não é inevitável como aparenta ser; é, pelo contrário, um laboratório.
Confira também o comentário de Ruy Braga sobre o livro aqui no Blog da Boitempo.
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Rafael Grohmann é professor de mestrado e doutorado em comunicação na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). É coordenador do Laboratório de Pesquisa DigiLabour e do projeto Fairwork, vinculado à Universidade de Oxford, além de pesquisador do projeto Histories of Artificial Intelligence: Genealogy of Power, da Universidade de Cambridge. É organizador de Os laboratórios do trabalho digital: entrevistas (Boitempo, 2021).
Parabéns pelo trabalho de cooperativa humanizada para trabalhadores de aplicativos que não serão escravizados iguais aos motoristas de uber!
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