Padura e a diáspora cubana
Por meio de uma narrativa envolvente, o leitor é levado a um país complexo, onde as coisas estão distantes do silêncio ou do simplismo com que a realidade de Cuba é apresentada pela mídia corporativa no Brasil e na maioria dos países ocidentais.
Por Ângela Carrato
Um dos maiores nomes da literatura na atualidade, o cubano Leonardo Padura, acaba de ter seu mais recente romance publicado no Brasil. Como poeira ao vento, a exemplo de suas outras obras, tem Cuba como tema, só que agora de uma forma diferente.
Padura se propõe a contar a história de um grupo de amigos, o Clã, aparentemente inseparáveis e que poderiam continuar juntos pelo resto da vida. Uma fotografia capta esse exato momento, mas é a partir daí que tudo começa a mudar.
Aos poucos, o leitor/a vai conhecendo cada um dos integrantes do Clã. Cada um encarna, de diferentes formas, as reações humanas à diáspora cubana, que tem início nos anos 1990 e ainda não acabou.
Por meio de uma narrativa envolvente, o leitor é levado a um país complexo, onde as coisas estão distantes do silêncio ou do simplismo com que a realidade de Cuba é apresentada pela mídia corporativa no Brasil e na maioria dos países ocidentais.
Exemplo disso pôde ser observado nas distorções que envolvem tudo sobre Cuba e os sucessos alcançados pela Revolução Cubana de 1º de janeiro de 1959, um dos maiores eventos políticos do século XX, porém sempre apresentada como “ditadura”.
Basta lembrar que a mídia corporativa brasileira simplesmente desconheceu e continua desconhecendo o fato de que Cuba, mesmo sob forte embargo dos Estados Unidos há mais de 60 anos, foi o único país latino-americano a desenvolver vacina própria contra a covid-19. Aliás, desenvolveu quatro vacinas, sendo uma delas inalável, e com elas imunizou a sua população.
Outro exemplo é a polarização política que Cuba e sua revolução continuam provocando nos setores conservadores e até mesmo em segmentos que se dizem de esquerda.
Claro que cada um pode e deve ter sua opinião, mas o problema é quando essa opinião não está amparada em fatos ou, pior ainda, se pauta por distorções e fake news. É nesse ponto que o novo romance de Padura cumpre uma função que vai muito além do prazer e do entretenimento que sua literatura sempre proporciona.
Mesmo o autor advertindo que Como poeira ao vento é um romance e deve ser lido como tal, os acontecimentos históricos a que faz referência são reais. O mesmo pode ser dito das conjunturas sociais invocadas no livro, que também foram extraídas da realidade e da sua experiência pessoal e geracional.
Também as personagens e suas histórias foram inspiradas em indivíduos reais, às vezes em somas de várias pessoas concretas, mesmo que suas biografias, tal como aparecem no livro, sejam fictícias.
Vale observar ainda que os lugares onde o enredo se desenvolve, desde o bairro Fontanar, em Havana, passando por Barcelona, na Espanha, até um haras nos arredores de Tacoma, no nordeste dos Estados Unidos, são reais.
Obra aberta
Como poeira ao vento pode ser lido de várias maneiras. É a história de um grupo de amigos, de seus sonhos e de suas desilusões, a ponto de quase todos, por razões diferentes, decidirem deixar a ilha.
É uma bela reflexão sobre a vida e a amizade, feita com a observação atenta a cada aspecto do caráter cubano: a música, a sensualidade, o amor, a gastronomia e as paixões pela “pelota” (beisebol) e pela política.
Pode ser lido como uma espécie de Quarteto de Alexandria (Justine, Balthazar, Mountolive, Clea) ampliado. Os quatro magníficos romances do escritor inglês, nascido na Índia, Lawrence Durrell, publicados entre 1957 e 1960, apresentam três perspectivas da mesma sequência de acontecimentos e personagens em Alexandria, no Egito, antes e durante a II Guerra Mundial. O quarto livro passa-se seis anos mais tarde, na ilha de Corfu, situada na costa da Albânia.
Como poeira ao vento pode ser lido também como um thriller policial. Padura é mestre no gênero e seu conhecido detetive Mário Conde já ganhou até versão cinematográfica, com a série Estações de Havana. Da mesma forma que O nome da Rosa, do genial Umberto Eco, essa é uma possibilidade nada descartável.
Quem não tiver maiores pretensões ou interesses intelectuais, pode ler o eruditíssimo romance de Eco apenas focado em desvendar o mistério das seguidas mortes dos habitantes de um mosteiro na Idade Média, passando ao largo de toda da discussão envolvendo a ciência como o caminho que leva à verdade e ao saber.
Não por acaso, Eco é o formulador de um dos mais importantes conceitos sobre arte e literatura no século XX: o de obra aberta, com o qual defende que os processos de leitura e interpretação não podem pressupor uma análise pré-definida e estruturada do texto. Pelo contrário, implicam uma enorme liberdade por parte do leitor, que tem como tarefa sua extrair dela uma análise pessoal.
Para os apreciadores do gênero policial, há também em Como poeira ao vento uma estranha morte e praticamente todos os integrantes do Clã são a priori suspeitos. A trama é ágil e muito bem construída. O próprio Padura presta, explicitamente, neste seu novo livro, homenagem a Umberto Eco, mas também a autores latino-americanos que admira, como Gabriel Garcia Márquez e Jorge Luis Borges.
A todas essas possíveis leituras se soma talvez a principal delas: a história dos últimos 30 anos em Cuba, incluindo-se aí um dos tempos mais terríveis para a ilha e seus habitantes, o chamado “período especial em tempos de paz”.
O referido período teve início em 1991, quando da dissolução da União Soviética, e se estendeu ao longo dos anos 1990, com os efeitos desta dissolução e também a do Conselho de Assistência Econômica Mútua (Comecon), sendo devastadores para a economia cubana.
“Período especial”
Ao lado de outros 10 países, entre eles Alemanha Oriental, Bulgária, Tchecoslováquia, Vietnã e Polônia, Cuba integrava, desde 1972, um bloco econômico e comercial que funcionava como uma espécie de Plano Marshall em versão socialista.
O comércio de Cuba com os países do Comecon totalizava por volta de 85% do que vendia e comprava.
Cuba não possui recursos minerais, quedas d’água e nem dispunha de indústria significativa. Razão pela qual utilizava seu principal produto agrícola, a cana-de-açúcar, como moeda para as suas importações.
Era através dela que passou a importar da União Soviética os hidrocarbonetos sob a forma de gasolina, diesel e outros derivados de petróleo de que tanto necessitava.
Não por acaso, o “período especial” em Cuba pode ser definido principalmente pela grave escassez desses produtos, sentidos pela população através dos frequentes e longos apagões (alguns duraram semanas) e da falta de gêneros de primeira necessidade.
Some-se a isso que o período transformou radicalmente a sociedade cubana e sua economia, pois exigiu a modificação da agricultura, em virtude da falta de equipamentos e insumos para a lavoura, a diminuição do uso do automóvel e revisou a indústria, a saúde e a dieta em todo o país.
Os cubanos, que estavam acostumados a uma vida simples, porém satisfatória em termos de saúde, educação, alimentação, habitação e emprego, proporcionados e garantidos pelo Estado, se viram, de um momento para o outro, tendo que viver com quase nada.
Totalmente dependente do combustível fóssil para operar, a sociedade cubana entrou em colapso. Os transportes, sistemas industriais e agrícolas quase foram paralisados. Houve grandes perdas de produtividade tanto na agricultura – que era dominada por modernos tratores e colheitadeiras, dependentes do petróleo para que funcionassem – como na capacidade industrial.
Com a decisão da Federação Russa, que se seguiu ao fim da URSS, de que não tinha intenção de entregar o petróleo que a URSS sempre garantira a Cuba, as consequências do bloqueio econômico dos Estados Unidos, em vigor desde 1963, passaram a ter fortíssimo efeito.
O governo socialista cubano se via assim quase sem alternativas.
Xerife do mundo
O atual presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, manteve e, em alguns aspectos, até intensificou o bloqueio comercial, econômico e financeiro a Cuba, que teve início antes mesmo da Revolução de 1959.
O objetivo do embargo em 14 de março de 1958 era à venda de armas a Cuba, durante os meses finais do regime ditatorial de Fulgêncio Batista.
Vale lembrar que os Estados Unidos apoiaram Batista até quase a véspera de sua derrubada, quando decidem abandoná-lo apostando que poderiam contar com a simpatia e o apoio dos revoltosos de então.
Ao perceberem que Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara não seriam instrumentos dóceis em suas mãos, como sempre havia acontecido com os governos anteriores, os Estados Unidos embargam as exportações para a ilha, exceto alimentos e remédios, oficialmente em represália às estatizações de suas empresas pelos revolucionários.
Detalhe: essas empresas ganharam rios de dinheiro à custa da exploração, miséria e sofrimento do povo cubano.
Em 7 de fevereiro de 1962, o embargo ou bloqueio, como dizem os cubanos, foi estendido para incluir quase todas as exportações.
Em 1999, o presidente Bill Clinton expandiu o embargo comercial, proibindo também as subsidiárias estrangeiras de empresas estadunidenses de negociar com Cuba. Muito criticado, no ano seguinte Clinton autorizou a venda de produtos “humanitários” dos Estados Unidos para Cuba.
Sempre se considerando xerife do mundo, independente de estar no poder um representante do Partido Republicano ou do Partido Democrata, os Estados Unidos, em 1992, com a “Lei de Democracia Cubana”, deixou declarado que o objetivo era manter as sanções contra a ilha “enquanto o governo cubano se recusar a avançar em direção à democratização e maior respeito aos direitos humanos”.
Padura, que também é um ensaísta e articulista de primeira grandeza – basta lembrar seu penúltimo livro publicado no Brasil, Água por todos os lados (2020) – poderia ter escrito um tratado sobre o absurdo desse bloqueio contra Cuba, que já é o mais longo de toda a história da humanidade em tempos de paz.
Mas ao invés de citar leis e tratados internacionais, os enormes prejuízos impostos à economia cubana ou os números de mortos dele decorrentes, optou por mostrar a consequência de tudo isso na pele do cidadão cubano comum, cujos direitos humanos em momento algum foram levados em conta pelo Tio Sam.
Como na canção de Kansas
Engana-se, no entanto, quem imaginar que Como poeira ao vento é um panfleto ou mesmo um livro com denúncias contra os Estados Unidos. Nada disso. Nele há personagens que tanto sonham com as maravilhas propagandeadas pelo Tio Sam, como aqueles que se decepcionam ou até mesmo os que veem coisas boas e coisas ruins nos dois países.
Nesse aspecto, o livro é uma ducha de água fria nos adeptos do maniqueísmo ou de análises simplistas em se tratando de Cuba.
Mais ainda. Se alguns personagens da diáspora cubana dos anos 1990 (“como poeira ao vento”, na canção de Kansas) se dispersam por vários países, muitos foram para a Europa (Espanha, França) e lá também constatam algo semelhante: têm críticas e elogios à nova vida que passam a levar.
A própria visita oficial de Barack Obama a Cuba, em 2016, a primeira de um presidente dos Estados Unidos à ilha em toda a sua história, divide as opiniões do Clã e mesmo de seus conhecidos que vivem dentro e fora de Cuba.
Não falta entre os “balseiros” cubanos (pessoas que imigraram ilegalmente em embarcações precárias e improvisadas) residentes nos bairros mais pobres de Miami, quem reprove a atitude de Obama como a de um “perigoso comunista” que, ao propor reatar relações diplomáticas com Cuba, poderia por em risco o próprio futuro dos Estados Unidos.
Mas não falta, também, quem torça para que finalmente haja entendimento entre os dois países.
Padura, ao contrário da maioria desses seus novos personagens, não saiu de Cuba e nem pretende fazê-lo. Como tem dito e repetido “sou um escritor cubano que vive e escreve em Cuba porque não posso e não quero ser outra coisa, porque (e sempre posso dizer que apesar dos mais diversos pesares) preciso de Cuba para viver e escrever”.
Por não querer ser outra coisa, mesmo enfrentando todos os problemas que os cubanos viveram e ainda vivem, que Padura conseguiu transformar essas histórias numa espécie de mosaico do que é hoje a sociedade cubana.
Há personagens que ficaram e resistiram e jamais deixariam a ilha. Há os que saíram e desejam voltar. Há os que voltam e não se reencontram e há os que nasceram fora de Cuba. Mas algo liga todos eles: querendo ou não, não conseguem se desvencilhar de Cuba e de suas origens.
Ficção e realidade
Como poeira ao vento é um romance escrito em forma de coro. Aos poucos vamos conhecendo cada um dos personagens e alguns merecem capítulos inteiros, como Clara (Santa Clara dos amigos), Elisa/Loreta (A mulher que falava com cavalos), Horácio (Quintus Horatius) e Adela (A filha de ninguém).
Passado, presente e futuro estão entrelaçados nessas histórias que, como toda boa ficção, nos possibilita olhar a realidade, compreendê-la em todas as suas dimensões e até mesmo desenhar futuros possíveis.
Desde o fim da URSS que o Ocidente preconiza a queda imediata do socialismo em Cuba e os Estados Unidos não medem esforços para que isso aconteça.
Haja vista as manifestações no segundo semestre de 2021, no melhor estilo guerra híbrida, comandadas pelo Tio Sam, cujo objetivo era jogar a população da ilha contra o governo provocando o colapso das instituições.
Mas, novamente, os ideais de Fidel e Che prevaleceram, mesmo que o socialismo cubano venha, ele também, experimentando mudanças necessárias e significativas. Até porque, se tudo muda, porque só o socialismo cubano deveria permanecer estático?
Padura encerra seu novo romance no início do século XXI. Seus personagens não conheceram a suprema desumanidade de Donald Trump contra Cuba em plena pandemia da covid-19 e muito menos a continuação dela por Biden. Possivelmente teriam pouca referência sobre a China e a nova rota da seda, também conhecida como iniciativa do cinturão e rota, lançada em 2013, pelo presidente Xi Jinping.
O objetivo é traçar rotas de integração, a partir de investimentos em infraestrutura terrestre, marítima, de energia e de comunicação, entre a China, a Europa, a África e a América. Setenta países já integram a iniciativa, sendo vários deles latino-americanos, dentre os quais Cuba.
Mesmo cautelosos, muitos cubanos podem se dar o direito, diante dessa nova realidade de integração mundial proposta pela China, de sonharem com um mundo menos hostil e onde a parceria dê lugar aos abomináveis bloqueios estadunidenses.
Cuba tem feito a sua parte. Enquanto os Estados Unidos e aliados promovem guerras, despejam toneladas de bombas na cabeça de seus supostos inimigos ou fomentam guerras híbridas, os cubanos enviam brigadas médicas que salvam milhares de vidas em todos os continentes e se tornam referências mundiais em termos de educação, saúde, pesquisa farmacêutica e bioquímica.
Seja como for, em breve Padura terá elementos para outro romance, sempre procurando entender as especificidades de Cuba, país que tanto ama, e do qual, sem dúvida, na atualidade, é um dos seus interpretes maiores.
Artigo originalmente publicado no site Viomundo.
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Como poeira ao vento, de Leonardo Padura tem tradução de Monica Stahel, texto de orelha de Sylvia Colombo, capa de Ronaldo Alves e apoio do Ministerio de Cultura y Deporte da Espanha.
Confira o debate Cultura e revolução em Cuba, que marcou o lançamento de Como poeira ao vento. Participação de Juliane Furno e Vanessa Oliveira e mediação de Vinicius Barbosa (Latina Leitura), na TV Boitempo:
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Jornal Rascunho: Novo romance de Leonardo Padura discute exílio e dispersão em Cuba
O Globo: Dê um livro de presente: Juca Kfouri sugere o novo livro do cubano Leonardo Padura
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Estado de Minas: Leonardo Padura aborda a diáspora cubana em Como poeira ao vento
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Rádio Brasil de Fato: Padura: “Existem forças fora de Cuba interessadas em desestabilizar o sistema cubano”
Carta Maior: Uma só Cuba e vários destinos
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Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação da UFMG. É diretora da Associação Cultural José Martí de Minas Gerais, voltada para a amizade Brasil-Cuba.
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