Resposta a Anita Leocadia: lendas e mitos sobre os renovadores do PCB

Breno Altman comenta o artigo da historiadora Anita Leocadia Prestes sobre os renovadores do PCB dos anos 1970 e 1980, destacando algumas discordâncias.

CHEGADA DE LUIZ CARLOS PRESTES DO EXÍLIO, EM 1979

Por Breno Altman

Demorei alguns dias para ganhar coragem e escrever esse texto. Certamente faltam-me a experiência, o conhecimento e o talento para um debate consistente com a historiadora Anita Leocadia Prestes, a quem tanto admiro e respeito. Ao final, falaram mais alto razões que me obrigam a comentar seu artigo no Blog da Boitempo, intitulado “Centenário do PCB: os autodenominados ‘renovadores’ dos anos 1970 e 1980”. São muitas as afirmações e conclusões contraditórias com o que vivi e conheço, no breve ensaio da ilustre professora, por isso resolvi assumir a temerária tarefa de contestá-la.

Não é meu propósito uma apreciação mais aprofundada sobre essa corrente partidária, mas é importante fixar algumas referências. Há certo consenso de que suas raízes político-teóricas estão entrelaçadas na “Declaração de março de 1958”, ainda que a expressão organizativa somente possa ser notada quando Armênio Guedes assume o comando do Comitê Estadual da Guanabara e, depois, dirige a imprensa partidária no exílio.

As posições desse grupo ancoravam-se em interpretações de Palmiro Togliatti sobre o pensamento de Antonio Gramsci, a quem sucedera na secretaria geral do Partido Comunista Italiano, que mais adiante iriam desaguar em um movimento conhecido como eurocomunismo, a partir dos anos 1970, quando a legenda passou a ser liderada por Enrico Berlinguer. Além de assumir uma perspectiva crítica sobre a União Soviética e o socialismo real, essa tendência abandonava o conceito de revolução, na centralidade da teoria e da estratégia dos comunistas, substituindo-o por uma compreensão de que a transição do capitalismo ao socialismo teria como pedra angular o alargamento infinito da democracia.

Abandonavam ou amputavam a concepção tecida por Gramsci, para quem a luta por hegemonia e reforma precedia o desenlace do confronto de classes pelo poder político, mas não eliminava a ruptura como o momento no qual os trabalhadores poderiam afirmar plenamente sua direção sobre o Estado e a sociedade – possivelmente como uma resposta revolucionária à eventual insurgência burguesa contra a ocupação, por forças anticapitalistas, de espaços institucionais decisórios, como o governo nacional.  

Os eurocomunistas se aproximavam, assim, das teses sociais-democratas, estabelecendo a democracia liberal – tornada universal – como um sistema que correspondia a fronteiras intransponíveis para os movimentos tanto da burguesia quanto os do proletariado. A isso, grosso modo, se chamava pensamento renovador, embora seu nascimento, a bem da verdade, fosse anterior à tradição bolchevique, fecundado na onda revisionista que abalou o marxismo alemão no final do século XIX. De quebra, para autenticar o compromisso histórico com os arquétipos do Estado burguês, esse setor do movimento comunista recorreu a um antissovietismo cada vez mais desbragado, ajudado pela decadência brejnevista.  

Faço esse resumo, de fato, para concordar com a explanação de Anita Prestes sobre a origem e a natureza dessa corrente que exerceria influência nos vinte anos anteriores à liquidação do velho PCB. Apenas quis salientar alguns aspectos dessa trajetória. Meus problemas com o texto vêm em seguida: a afirmação de que o Comitê Estadual de São Paulo, dirigido por David Capistrano da Costa Filho, vinculava-se a essas ideias. Essa organização, segundo a professora, seria “o principal centro de atuação dos chamados renovadores”, alistando como dirigentes da Comissão Estadual de Reorganização (CER), a partir de 1976, além do próprio David, a Marco Aurélio Nogueira, João Guilherme Vargas Netto, Cláudio Guedes, Max Altman, Breno Altman e Sérgio Gomes.

A malha partidária tinha sido tão destroçada pela repressão, e era tão venenoso o clima da luta interna, que Anita Prestes provavelmente não teve acesso a informações corretas, levando-a a escalar um time que não existiu. Vargas Netto saíra do Brasil em 1976, para retornar apenas cinco anos depois. Cláudio Guedes, sobrinho de Armênio, nunca foi da CER paulista. Max Altman era contra a reorganização do PCB, considerava que seu ciclo histórico tinha sido superado e defendia a criação de um novo partido socialista de massas, abrigando todas as correntes de esquerda – era um dos impulsionadores dos chamados “horizontalistas”; Sérgio Gomes, preso em 1975, não voltaria a se vincular organicamente depois que saiu da cadeia. Eu não pertencia ao PCB nesse período e tinha apenas 15 anos de idade.

O núcleo principal da reorganização dos comunistas paulistas, consolidado em 1976, era liderado por um triunvirato: David Capistrano Filho, Ubiratan de Paula Santos e Hans Heinz Werfel. Nenhum desses dirigentes tinha qualquer vínculo com o eurocomunismo ou os chamados “renovadores”. Mas eram críticos do método que havia imperado no partido pelo menos desde os anos 1950, marcado pela composição das instâncias de comando apenas com aqueles quadros alinhados à posição oficial ou majoritária. Ainda mais depois da onda repressiva entre 1974 e 1976, com o partido esfacelado, a reconstrução deveria ser conduzida com a máxima amplitude possível, sem discriminações. Ao contrário do modo de operação do Comitê Central, dominado pelo “pântano”, pela maioria centrista, que isolaria Prestes e seus seguidores, depois também a Armênio Guedes e os “renovadores”.

O ponto de vista embandeirado por David e seus companheiros compreendia uma reorganização que abrigasse todo o universo comunista de São Paulo, tamanha a situação de terra arrasada. Sua lógica era reativar a ação partidária, especialmente junto ao operariado, recolocar os comunistas nas lutas sociais e democráticas, agindo com prudência na definição da linha política e teórica, para impedir que o debate intramuros tomasse um caráter fraticida e paralisasse a reconstrução. Com essa lógica, a CER foi incorporando representantes de vários ramos, sem pedir passaporte, preferindo a adoção de resoluções sobre tática mais do que discussões sobre estratégia ou teoria. De renovadores a ortodoxos, possivelmente todos os gostos partidários tiveram lugar ao sol.

Pode-se criticar essa opção por embaçar a identidade político-ideológica ou até contrariar certa tradição leninista de que o rigor da orientação seria imprescindível para as tarefas organizativas. Mas o ambiente de destruição e desconfiança acabou levando a CER para essa política de portas abertas, adiando vários dilemas essenciais, é certo, mas garantindo que a seção paulista do PCB emergisse como a mais influente do país. O esforço principal dessa política era inserir os comunistas nas principais frentes de batalha, no mundo do trabalho e da cultura, ancorados na juventude, superando a lógica de aparelho incrustada após tantos anos de clandestinidade.

Um dos maiores exemplos do significado dessa linha pode ser encontrado na atuação do próprio David Capistrano. Secretário político da CER, era também um dos principais animadores do movimento sanitário e teve destaque, em 1979, entre os líderes da greve geral dos funcionários públicos de São Paulo. A preocupação maior era aproveitar o clima político daquela etapa, na qual as lutas estudantis e as greves operárias passavam a ter notável influência, para reativar o PCB como destacamento relevante da resistência contra a ditadura.

Anita tem razão quando registra que o Comitê Estadual (CE) reagiu contra a ruptura promovida por Prestes, com sua “Carta aos comunistas”, mas se equivoca ao ver nessa recriminação ao lendário dirigente um alinhamento às posições do “pântano” ou dos chamados “renovadores”, ainda que essas correntes também estivessem representadas no comando local da sigla. O receio que impulsionava as atitudes do núcleo paulista era o de desmoronamento do partido, com a eclosão de uma guerra santa que tinha sido evitada ou atenuada, em São Paulo, graças ao método aplicado por David Capistrano.

Essa hibridez, no entanto, começaria a se exaurir com o retorno ao país dos membros do Comitê Central, o afastamento de Prestes da secretaria geral e a dissolução do VII Congresso pela Polícia Federal no final de 1982. A luta interna se transformara em acerto de contas e caça às bruxas, com a direção nacional de tudo fazendo, à base de truculência e burocratismo, para preservar seu controle sobre o partido que se reconstruíra na sua ausência.

Os principais líderes comunistas de São Paulo começavam a desacreditar do PCB, considerando que era fundamental aprofundar a batalha de ideias, especialmente sobre a tática a ser seguida contra o regime militar e sobre o papel da classe trabalhadora. Também adquiria envergadura a hipótese de que o velho partido, sucumbindo a seus erros e acossado pelo nascimento do PT, poderia ter deixado de ser uma via realista para constituir a classe trabalhadora como alternativa de poder.

A partir de 1983, haveria um giro progressivo no pensamento e na ação do PCB paulista. Seus dirigentes, cada vez mais descrentes em um processo unitário, passaram a formular e implementar, com nitidez crescente, sua própria linha política. Ao contrário da maioria do Comitê Central, que apostava suas fichas em uma transição negociada com a ditadura dos generais, servindo de linha auxiliar aos setores mais atrasados da oposição liberal-burguesa, o CE paulista considerava ser plausível a emulação de um grande movimento popular que derrotasse o regime militar e impusesse uma ruptura democrática na qual os trabalhadores fossem seu segmento dirigente. A divergência levaria o “pântano”, sob a batuta de Giocondo Dias, a se colocar contra a campanha das Diretas, aceitando-a apenas instrumentalmente, no ano seguinte, quando era já um fato consumado. A liderança comunista de São Paulo, por sua vez, apostava tudo nessa empreitada, na qual se reencontraria com Prestes, partilhando opiniões bastante semelhantes.

O aprofundamento do debate também provocaria divisões no próprio Comitê Estadual, pois a minoria eurocomunista – representada principalmente por Marco Aurélio Nogueira, incorporado em 1979 à CER – tinha muito maior proximidade com a política da transição pactuada do que com a opção da radicalização popular e democrática. O grupo ao redor de David Capistrano, na prática, enfrentava simultaneamente a pressão dos dirigentes nacionais, seus representantes estaduais e a lenta dissociação da ala direita daquele arranjo interno que havia sido estabelecido a partir de 1976.

O comando do CE, ao contrário do que afirma Anita Prestes, refutava qualquer solução de compromisso que precedesse a derrota da tirania fardada, como “a convocação de uma Assembleia Constituinte sem condicioná-la à prévia derrota da ditadura”. A conclusão era exatamente oposta: após a vitória oposicionista de 1982, somando-se às poderosas mobilizações dos trabalhadores, o novo equilíbrio de forças tornava viável que se passasse da resistência à ofensiva, levando milhões às greves e às ruas para colocar um ponto final no golpe de 1964 – essa era a síntese do que, então, postulava a seção paulista.  

Nos meses que precedem a campanha das Diretas Já, lançada pelo PT em novembro de 1983, o CE agiria com o máximo empenho para contribuir na aceleração dessa escalada. O episódio mais importante certamente foi a greve geral realizada em 21 de julho daquele ano, quando os trabalhadores de São Paulo pararam contra a política salarial da ditadura. O importante setor sindical dos comunistas paulistas, muito influente no Sindicato dos Metalúrgicos da capital, seria decisivo para o sucesso do movimento. A ordem do Comitê Central era contra a paralisação. Um de seus mais ilustres integrantes, o ex-sindicalista Hércules Correia, chegou a dar entrevista dizendo que trabalharia full time contra a greve. O Comitê Estadual decidiu descumprir publicamente a orientação superior. A divisão era inevitável.

Na sequência dos acontecimentos de julho, o CE lançaria um documento, intitulado “Chegou a hora da verdade”, no qual destampava os choques nas fileiras comunista e denunciava o Comitê Central como “residual” e “ilegítimo”. Propunha a formação de uma comissão ad hoc, com a presença de todas as tendências, incluindo Luiz Carlos Prestes, para impulsionar um congresso unitário e democrático. A resposta do CC viria em setembro, com a intervenção no CE e o afastamento de seus principais membros: David Capistrano, Ubiratan de Paula Santos, Hans Heinz Werfel, João Guilherme Vargas Netto, Newton Cândido, Marco Aurélio Nogueira, Marco Moro e Luiz Antônio Medeiros, entre outros.

Uma nova direção seria nomeada pelo Comitê Central, liderada por Jarbas de Holanda, que adquiriria certa fama por comandar um manifesto em favor de Paulo Maluf e contra Eduardo Suplicy, nas eleições paulistanas de 1992. O antigo Comitê Estadual, no entanto, não reconheceria a medida punitiva e manteria sua identidade. Depois de ter participado do congresso de fundação da Central Única dos Trabalhadores, em agosto, faria sua reaparição pública no primeiro comício das Diretas, convocado pelo PT e ocorrido em 27 de novembro de 1983.

A estrutura dissidente permaneceria autônoma até 1986, enfrentando várias tensões internas. Tentando manter a unidade forjada desde 1976, David Capistrano proporia a fundação de dois veículos distintos de comunicação: uma revista teórica, batizada com o nome de Presença, e um jornal de intervenção que se chamaria A Esquerda. Buscava-se, àquela altura, conciliar o inconciliável. A minoria eurocomunista e seus aliados, também excomungados pelo “pântano”, teriam a coordenação da primeira publicação e participação na segunda. A maioria do CE, alinhada com seu secretário político, empalmaria o quinzenário, com um pé na revista.  

Essa combinação já estava morta em 1985. As divergências eram intransponíveis, sobre qualquer questão importante. A linha estabelecida pelo CE, no combate à ditadura, levaria esse grupo a sustentar o boicote contra o Colégio Eleitoral, após a derrota das Diretas Já, e a perfilar em oposição frontal ao governo Sarney, à Nova República. David e seus companheiros criticavam a transição conservadora e consideravam superada a aliança com a antiga oposição liberal-burguesa ao regime militar. Argumentavam, em muita proximidade com as posições do PT, que se tratava de asfaltar um caminho independente das classes trabalhadoras, contra o pacto das elites, reivindicando o caráter determinante da hegemonia operário-popular sobre qualquer política de esquerda. Esse ponto de vista estava longe de ter acolhida ou simpatia entre os condutores da revista.

As dificuldades, porém, também se intensificariam no grupo mais próximo a David. Após o expurgo determinado pela direção nacional, em 1983, a esse núcleo dirigente se juntariam Max Altman, Sérgio Gomes e eu mesmo, para citar apenas os que foram referidos por Anita. O primeiro dos três propunha, desde o início dos anos 1980, que os comunistas deveriam se integrar ao Partido dos Trabalhadores, considerando essa agremiação o novo instrumento dos trabalhadores para desbravar uma alternativa socialista de massas. Aos poucos, também me inclinei por essa posição, puxada por David, Ubiratan de Paula Santos, Hans Heinz Werfel e outros companheiros. Sérgio Gomes iria se manter associado a Vargas Netto, Newton Cândido e Luiz Antônio Medeiros, refratários ao ingresso no PT e paulatinamente circunscritos a uma perspectiva sindicalista. O setor metalúrgico era liderado por essa ala e acabaria sendo incorporado à construção da Força Sindical, abandonando qualquer expectativa organizada de emancipação revolucionária ou socialista.

A entrada de “A Esquerda” no PT, como o antigo CE paulista ficou conhecido, ocorreria em princípios de 1986, aos trancos e barrancos, enfrentando diversos obstáculos. O dínamo desse processo, no entanto, nada teve a ver com o “pensamento renovador” ou o eurocomunismo, como parece crer a historiadora. Foi a consequência de uma reflexão longa e irregular sobre os erros históricos do PCB, sobre sua visão acerca do capitalismo brasileiro e da política de subordinação das classes trabalhadoras à fração da burguesia que poderia representar, nas infundadas teorias do partido, uma “via democrática e nacional de desenvolvimento”.

Na noite em que foi escolhido o lema “democracia rumo ao socialismo”, para servir de complemento ao nome do jornal que editávamos, o rumo político estava anos-luz das teses eurocomunistas. Caríssima professora Anita Leocádia Prestes, nossa intenção era afirmar, de forma sintética, que as tarefas da democracia no Brasil, inviáveis sob a hegemonia burguesa, somente seriam realizáveis com a superação do capitalismo e a construção de uma sociedade socialista.  

***

Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi.

1 Trackback / Pingback

  1. Tréplica de Anita L. Prestes ao comentário de Breno Altman – Blog da Boitempo

Deixe um comentário