Insurgências de Che Guevara: o ministro, o político, o economista
Os debates econômicos expostos cuidadosamente no livro de Luiz Bernardo Pericás são reveladores – e provocativos – para quem acredita que na certeza da transição socialista pela simples “tomada de poder” ou pela aplicação de fórmulas pretensamente universais.
Por Deni Alfaro Rubbo
Quando embarcamos na história da Revolução Cubana, somos levados frequentemente a mistificar seus atores políticos, reduzindo esse complexo processo ao triunfo de Fidel Castro e seus seguidores do Gramma como uma epopeia sem contrastes. Em decorrência disso, obliteram-se, muitas vezes, fases e experiências vivenciadas no pós-revolução que dizem respeito à transição socialista e seus impasses, fundamentais para um entendimento dos processos políticos mais fascinantes da história do socialismo mundial.
Em relação a Che Guevara, uma das figuras chaves da revolução, o desafio da desmistificação de sua trajetória torna-se candente, já que se perpetua certa construção política e simbólica do seu imaginário na esquerda contemporânea. De maneira sóbria, cuidadosa e eficaz, Che Guevara e o debate econômico em Cuba, do historiador brasileiro Luiz Bernardo Pericás, traz à tona aspectos decisivos da atividade política do guerrilheiro argentino, sobretudo quando ocupou os cargos de presidente do Banco Nacional de Cuba e de Ministro das Indústrias no governo socialista. O livro reflete criticamente o percurso do Che em meio às tomadas de posições políticas que esteve inserido, além de oferecer uma cartografia detalhada do “gran debate” econômico a respeito de caminhos estratégicos e modelos de gestão protagonizados entre os países “socialistas”.
Durante os sete capítulos do livro, Pericás destrincha a efêmera, mas profunda trajetória administrativa do “guerrilheiro heroico” balizada principalmente nos debates sobre gestão econômica e industrial, planificação, papel dos bancos, teoria do valor, cálculo econômico etc. Segundo o historiador, além de frequentar cursos, realizar leituras, estabelecer diálogo permanente com assessores (de personalidades ligadas à Cepal até quadros de comunistas oficiais, assim como dissidentes), Che Guevara também viajou para alguns países “socialistas”: do Leste Europeu à União Soviética, passando pela Coreia do Norte e China, com o objetivo de “avaliar” e “agir” de maneira oportuna diante de uma ilha que tinha urgência em sua reestruturação econômica para a diversificação da produção agrícola e estímulo à industrialização.
Segundo o autor, mesmo com uma miríade de acordos econômicos entre Cuba e os países “socialistas”, havia disputas internas tanto no campo político quanto nas concepções de gestão industrial. Durante os anos de 1950 e 1960, a concepção hegemônica adotada pela União Soviética era a de descentralização da economia, seguindo a perspectiva de economistas soviéticos “reformistas”. Eram práticas baseadas no mercado, preço, lucro e iniciativa dos administradores, que flexibilizava o sistema de preços nas empresas para deixá-las com maior poder de decisão. Na realidade, essas medidas representavam “o paulatino redirecionamento para práticas capitalistas”, cujos efeitos negativos eram bem conhecidos: desigualdades entre as empresas e indivíduos, sobrevalorização do lucro etc.
Do outro lado do oceano, Che Guevara manifestou-se resolutamente contrário às políticas econômicas de descentralização. Segundo o comandante argentino, tais teses não poderiam ser aplicadas acriticamente como meros manuais: era preciso refletir sobre as particularidades das condições histórico-concretas de transição ao socialismo de cada país. E, no caso cubano, o lento processo de desenvolvimento das forças produtivas faria com que defendesse métodos mais heterodoxos.
Quais eram, afinal, os métodos que infringiam o receituário ortodoxo? Em termos essencialmente econômicos, racionalizar ao máximo as fontes de produção, fixar os preços e possuir técnicas de controle. Aos olhos do Ministro da Indústria, nesse “sistema de controle máximo” da gestão econômica, era também possível aproveitar os avanços das “técnicas capitalistas úteis para a transição do socialismo” (p. 82). Em contrapartida, essas medidas eram limitadas, pois esbarravam na pouca experiência dos quadros administrativos, nas falhas de abastecimentos de materiais e no controle de qualidade do país. De toda forma, o fla-flu sobre as formas de centralização/descentralização da vida econômica dos países “socialistas” teve ainda ressonância entre economistas de prestígio, inseridos em trincheiras marcadamente opostas, como o francês Charles Bettelheim (partidário do cálculo econômico) e o trotskista belga Ernest Mandel (partidário do sistema de autogestão centralizada).
Embora o Che saísse em defesa de “um sistema de direção centralizada, que, por sua vez, permitem que as decisões fossem tomadas em diferentes níveis e com ampla participação dos obreiros” (PERICÁS, 2018, p. 101), Michael Löwy aponta, no prefácio do livro, a ausência de discussão e propostas entre planificação e democracia socialista. Entretanto, algumas respostas parciais sobre essa lacuna parecem constar no quinto capítulo, no qual Pericás examina concepções guevaristas sobre a relação entre sindicatos, partidos e órgãos do Estado, sugerindo que estas seguiam uma linha mais próxima de Lênin. Em um período de transição, era imperativo resolver as contradições entre diretores de empresas e operários em “comissões de arbitragem” como forma de estimular as democracias nas fábricas.
Os dois últimos capítulos – em nossa opinião, os mais interessantes do livro –, preenchem de modo criativo a discussão central da planificação socialista. Em um primeiro momento, polemizando com autores que circunscreveram a noção de “homem novo” por critérios essencialmente éticos e “filosóficos”, Pericás destaca a “infraestrutura” dessa afamada concepção guevarista, indicando as necessidades econômicas e políticas de Cuba naquele momento histórico. Nesse sentido, o sistema de incentivos morais e materiais, a emulação socialista e a utilização do trabalho voluntário desempenharam um papel ideológico decisivo na conscientização e nas práticas das trabalhadoras e trabalhadores cubanos. Leitor do jovem Marx, em Guevara, o “homem novo” não é “apenas o produto da revolução: ele se constrói em seu processo, é a criação da práxis, ou seja, da transformação da natureza e das relações sociais” (PERICÁS, 2018, p. 150).
São apresentadas, outrossim, leituras marxistas realizadas por Che Guevara durante sua trajetória, assim como sua experiência em países na América Latina (Bolívia, Guatemala e México), que moldaram sua formação política e seu “espírito aventureiro” e errante. Embora não se filiasse a nenhuma das vertentes majoritárias do marxismo político (stalinismo, trotskismo e maoísmo) – mesmo tendo sofrido constantes acusações por parte delas –, o caráter internacionalista, antiburocrático e libertário do guerrilheiro-ministro insere-o em uma constelação de autores heréticos da tradição marxista mundial.
Ícone da esquerda mundial até os dias atuais, Che Guevara é ainda uma figura repleta de mal-entendidos, pré-conceitos e idealizações. De um lado, transformado em fetichismo da mercadoria em uma sociedade do espetáculo, que coisifica e descontextualiza as práticas do “guerrilheiro heroico”, sua imagem é superficialmente consumida com bordões, frases de efeito, estampas de camisetas. De outro, sua presença permanece ativa em movimentos sociais do campo e da cidade como um símbolo incontornável da resistência às catástrofes propagadas pelas novas formas de exploração e destruição do capitalismo periférico.
Por conseguinte, os debates econômicos expostos cuidadosamente no livro são reveladores – e provocativos – para quem acredita que na certeza da transição socialista pela simples “tomada de poder” ou pela aplicação de fórmulas pretensamente universais. Nem afeito a “previsões”, nem a “antecipações”, o marxismo está mais associado à imprevisibilidade da história e seus contratempos. A desenvoltura do trabalho de Luiz Bernardo Pericás é essencial para refletirmos os dilemas dos países periféricos e disputarmos diuturnamente o “atual ainda ativo” da herança rebelde do Che.
Originalmente publicado na revista Margem Esquerda #32.
Che Guevara e o debate econômico em Cuba, de Luiz Bernardo Pericás
O historiador Luiz Bernardo Pericás analisa e interpreta o pensamento econômico guevariano, os debates surgidos em torno de suas ideias nos anos 1960, dentro e fora da ilha, e seu impacto nesse período crucial da história da Revolução Cubana. O livro foi vencedor do prêmio Ezequiel Martínez Estrada, da Casa de las Américas.
Referência bibliográfica
PERICÁS, Luiz Bernardo. Che Guevara e o debate econômico em Cuba. São Paulo, Boitempo, 2018.
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Deni Alfaro Rubbo é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). É professor de Ciências Sociais na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. É autor de O labirinto periférico: aventuras de Mariátegui na América Latina (Autonomia Literária, 2021).
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