Obra de Caio Prado Júnior nasce da rebeldia moral
Não carecemos de estar de acordo com ele em tudo para realçar o seu perfil marxista. Basta que enxerguemos a sua coragem de enfrentar sozinho os riscos de errar e a repressão política brutal, para admirá-lo ainda mais dentro e acima de sua produção como historiador, geógrafo, economista, cultor da lógica e da teoria da ciência, homem de ação e político representativo.
Caio Prado Júnior, em outubro de 1941.
Por Florestan Fernandes
O maior enigma posto por Caio Prado Júnior, como pessoa, cidadão e pensador, é sua ruptura radical com a ordem social existente. Tomo a palavra no seu sentido etimológico, salientado por Marx ao afirmar que ser radical é ir à raiz das coisas. Lamento o tempo perdido. Nunca lhe perguntei nada sobre sua ruptura total com sua classe; e os escritos iluminam esse período vital, de 1924 a 1928 e de 1924 a 1931. O que se passou na evolução da consciência social crítica, que o guiou por transformações tão aceleradas e profundas?
Havia efervescência intelectual e política na cidade de São Paulo. Os fatos são conhecidos. E São Paulo, como a única cidade tipicamente burguesa do Brasil, tocava as mentes dos seres sensíveis, conduzia os operários à inquietação a uma atitude de quase repugnância diante de um quadro doloroso de miséria, exploração e opressão. Ele não foi único na rebeldia. Oswald de Andrade, Pagu e outros modernistas ergueram a bandeira da antropofagia e do inconformismo político como uma condenação sarcástica e simbólica às omissões imperantes. Todavia, ninguém saído das elites revela idêntica tenacidade, congruência e disposição de ir até o fim, às raízes das coisas.
O modernismo só explica uma tendência à renovação, às vezes temperada (ou destemperada) com oscilantes manifestações de iconoclastia. Caio Prado Júnior ostenta uma aceleração contínua, que percorre uma passagem rápida do radicalismo democrático-burguês para a oposição intransigente proletário-comunista. Mantendo-se na mesma posição de classe, inverteu as baterias e de seu combate e tornou-se um militante, um político de proa (em 1935 já era vice-presidente da Aliança Nacional Libertadora) e, reiterando a troca de identidade, em 1947 tornou-se deputado por São Paulo (aliás, um deputado inovador e exemplar).
É óbvio que a ruptura política respondia às frustrações provocadas pelo destino do Partido Democrático e pela traição dos “revolucionários” de 1930 aos ideais de subversão da ordem. Porém havia outra ruptura paralela, de natureza moral: não a substituição de “mores”, mas a ressocialização da pessoa dentro de “mores” antagônicos. A passagem envolvia um renascimento para a vida, do qual brotou e cresceu um comunista confiante na opção na qual jogara tudo, desde a lealdade de classe até a relação intelectual com o mundo e o comportamento político.
Os cinco anos de faculdade de direito também não explicam uma evolução que converte o radicalismo intelectual em transgressão. A instituição-chave na seleção e preparação dos guardiões civis da ordem sempre alimenta o aparecimento de um pugilo de filhos pródigos, que submergem na contestação aos costumes, ao conservadorismo cultural e ao reacionarismo político; e depois renascem como Fênix, para resguardar a austeridade dos costumes e a lei como a “última ratio” da defesa da ordem. O certo é que Caio Prado Júnior não poderia escapar desse lapso de liberdade tolerada. E convém reconhecer que, enquanto ela dura, essa liberdade é seminal. Ela sulca a imaginação, forjando uma insurgência compensatória de curta duração. Contudo, ela é criadora e deixa cicatrizes. Estimula muitas leituras e excursões proibidas ou demolidoras: ainda agora os bacharéis contam entre os universitários que mais leem, dentro de um campo de irradiação muito vasto.
Portanto, suponho que o modernismo e a atividade estudantil tiveram o seu peso. Mas este não parece decisivo. Diria que contaram como reforço psicológico à predisposição arraigadamente orientada para o inconformismo moral (aliás, o ano de 1920, passado no Chelmsford Hall, na Inglaterra, possui o mesmo significado, pelo avesso: como demonstração do que é uma sociedade civil civilizada).
Se a proposição do enigma está correta, a resposta procede de uma ruptura moral interior. Nós, no interior do marxismo, sentimos alguma dificuldade em aceitar uma explicação fundada exclusiva ou predominantemente em uma ruptura moral. Parece que resvalamos para uma centralidade idealista, que coloca no mesmo nível diversas rupturas convergentes (ideológicas, sociais, políticas etc.). Todavia, há um momento de crise da personalidade no qual o desabamento de estruturas mentais se conjuga à busca de outros conteúdos, com uma reorganização completa de suas bases perspectivas e cognitivas. As tentativas de uma revolução dentro de linhas radicais (a participação do PD e as expectativas relacionadas com a “evolução liberal”) precipitaram o processo psicológico e político em outra direção, mais congruente, desvendada pelo Partido Comunista do Brasil.
Esse é o significado de uma ruptura plena, pois ela não se confia a certos fins circunscritos; desencadeia-se e prossegue… O paradigma é fornecido por Gandhi (mas pode ser inferido de alterações similares, experimentadas por revolucionários marxistas, como Lênin ou Trótski, situados nos limites de sua posição de classe de origem). A vantagem desta interpretação está em que ela permite entender as razões da consistência de Caio Prado Júnior, quando confrontado pelo partido (na desobediência ao pragmatismo da disciplina e da hierarquia e, mesmo, no conflito com as concepções nucleares extramarxistas de essência e dos rumos da revolução socialista).
Portanto, não existe uma ligação “mecânica” entre as decepções e a reorientação política, o entusiasmo militante inicial e a publicação em 1933 (aos 26 anos de idade) do seu livro mais vibrante e, ao mesmo tempo, o que reclama explicitamente o seu caráter marxista: A evolução política do Brasil e outros estudos: ensaio de interpretação materialista da história do Brasil.
O subtítulo continha uma confissão para “escandalizar”, um testemunho de que a ruptura avançara tão longe, que não evocava uma “ovelha negra” convencional, mas um pensador revolucionário, com quem a sociedade burguesa teria de se haver. Uma “explosão juvenil”, que precisa ser compreendida no contexto histórico, em termos da concepção de si próprio e da história sustentada vivamente pelo autor. O livro resvala por lapsos lógicos, descritivos e interpretativos, que mereceriam reparos de marxistas experimentados. Mas quem poderia ser, dentro de nosso cosmos cultural, mais marxista?
Ainda carregamos limitações que somente uma dura e longa experiência no manejo do materialismo histórico convidaria a ultrapassar. As contradições não são situações a fundo e não lançam luz sobre o “inferno” da vida nos trópicos e nas determinações recíprocas que vinculavam a opressão senhorial à dinâmica da opressão escravista, de escravos e “homens livres pobres”. O “Estado escravista” continuou de pé, dentro da ótica dos que o viam como um Estado constitucional, parlamentar e democrático.
No entanto, A evolução política do Brasil é um rebento maduro e correspondia, como obra marxista, aos intentos de Caio Prado Júnior. No patamar incipiente e mais puro de sua ruptura, ele desenha a versão do Brasil que animaria suas investigações ulteriores e dá sua respostas aos membros da classe social dominante e ao PCB, no qual ingressara. Àqueles, para que descobrissem que construíram e reproduziram, cotidianamente, a cadeia dentro da qual prenderam e degradaram a sua consciência social, a condição humana e a ausência de saídas históricas dentro de falsos padrões de democracia. Ao último, para afirmar-se em toda a plenitude como um intelectual revolucionário livre, pronto avançar na conquista da revolução social e na emancipação dos excluídos, porém dotado de uma faculdade própria de submeter-se à disciplina e às orientações partidárias. Compartilhava de sua estratégia: reformar, primeiro; e destruir mais tarde aquele gigantesco presídio, designado como Estado “moderno”. Não obstante, não se prestaria a servir de peão a qualquer conciliacionomismo ou oportunismo “táticos”. O livro põe em evidência, principalmente no ensaio primordial, qual é o sentido que carrega e os desdobramentos que exige do autor para que a construção de uma nova sociedade possibilitasse a criação de um Estado realmente democrático e aberto aos aperfeiçoamentos vindos de baixo.
A obra seguinte, aparecida nove anos depois (Formação do Brasil Contemporâneo – Colônia), adere a outro horizonte intelectual e político. Mais depurado, como marxista e historiador, propõe-se uma ambição ciclópica: uma devassa em quatro volumes da formação e evolução do Brasil, do regime colonial escravocrata à contemporaneidade. Como historiador, Caio Prado Júnior preocupava-se em cobrir as lacunas da história descritiva da maioria dos cultores da matéria, e de corrigir as armadilhas das obras de síntese histórica, algumas de alta qualidade, que prevaleciam naquele instante. Como marxista, pretendia forjar uma obra-mestra, que servisse de fundamento para que as correntes socialistas e democráticas (especialmente o PCB) pudessem formular uma representação sólida das debilidades, do trajeto e dos objetivos específicos da revolução brasileira.
Florestan Fernandes, Florestan Fernandes Júnior, Caio Prado Júnior, Maria Cecília Naclério Homem e Carlito Maia em ato pelas “Diretas Já!” na Praça Charles Miller, em frente ao estádio do Pacaembu, em 27 de novembro de 1983.
Saiu apenas o primeiro volume que evidencia uma solidez na reconstrução empírica e uma firmeza nos delineamentos teóricos a que não chega o livro anterior. Então, tivera tempo de absorver rebentos da transplantação cultural, medida pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, os quais aproveitou inteligentemente, em particular nas áreas da geografia e da história. Foi pena que não fizesse o mesmo com referência à sociologia, pois é aí que refletem as consequências negativas das omissões ou vacilações mais graves. O talento para combinar várias disciplinas, entretanto, enriquece o questionamento histórico e torna a contribuição mais compreensiva e esclarecedora.
A sociedade colonial e o modo de produção escravista encontram, finalmente, o intérprete que iria considerá-las como uma totalidade in statu nascendi e no seu vir a ser. Ela não seduziu só os leitores eruditos e obrigatórios. Impregnou a imaginação histórica de Caio Prado Júnior, convertendo-o em inventor e propagador de uma visão própria da história do Brasil. Essa visão estava contida no primeiro livro. Todavia, é na segunda obra que ela se expande como a fonte de suas grandes descobertas e a objetivação de seus amplos limites.
No conjunto aproxima-se mais da história “positiva” que em outras de suas realizações. O que não impede que elucide, por vezes de modo definitivo, a problemática específica do nosso mundo colonial. A começar pelo sentido da colonização e do desmascaramento dos interesses da metrópole, dos senhores e da grande exploração mercantil, até o embrutecimento do escravo como coisa e dos mestiços e brancos “pobres” como excluídos e ralé. Por isso, aí se acham os andaimes de seus estudos sobre a questão agrária e o capitalismo mercantil, assuntos que o atrairiam sem cessar, embora não possam ser devidamente explorados aqui.
O espaço também não comporta uma discussão, sumária que seja, de sua História econômica do Brasil” (1945), que o compeliu a observar o vasto painel de longa duração como foco de referência de problemas concretos. Se se impuseram algumas correções, estas não tiveram, contudo, porte para impor uma revisão significativa da concepção global.
O seu livro de maior repercussão foi divulgado em 1966 – A Revolução Brasileira – e possui uma importância política excepcional. Contém um desafio ousado à ditadura. Mas constitui uma reflexão desafiadora e um repúdio ao mecanicismo “marxista” forjado depois de ascensão de Stálin ao poder e da influência manietadora da 3ª Internacional.
Nessa obra, Caio Prado Júnior procede a uma crítica severa dos desvios de rota da revolução socialista, programados e impostos como uma deformação do marxismo; o uso invertido e ditatorial do centralismo democrático; a simplificação grosseira da teoria e das práticas marxistas da luta de classes e da revolução em escala mundial. Os países dependentes, coloniais e neocoloniais tinham sido metidos em um mesmo saco e em uma mesma camisa de força, que pressupunham que a revolução pudesse ser “unívoca”, monolítica, dirigida segundo uma fórmula única, a partir das diretrizes da 3ª Internacional e da União Soviética.
Desse ângulo, o livro retoma o marxismo como processo, que nasce e cresce por dentro das classes trabalhadoras e na busca de sua autoemancipação coletiva, através da construção de uma sociedade nova.
O núcleo de referência vem a ser o Brasil do momento da ditadura militar e do auge da Guerra Fria. O que impele Caio Prado Júnior a retomar os temas de suas investigações, dissertando sobre os marcos coloniais da dominação econômica, cultural e política da burguesia, a debilidade dessa burguesia em termos de sua situação histórica, associada e dependente, e os parâmetros da conquista da cidadania e da democracia como requisitos da reforma agrária e de outras transformações sociais. Ele fica exposto a várias críticas teóricas e práticas, inclusive o da via reformista, gradualista e por etapas da implantação do socialismo. Não obstante, recupera o entendimento de Marx e Engels a respeito da revolução permanente, segundo o qual ela é produto da luta de classes, não de utopias melhoristas ou humanitárias.
Nessa ocasião, Caio Prado Júnior atingiu o clímax de sua grandeza como marxista, cientista social e agente histórico. Marchando contra a corrente, realizou uma síntese da evolução do Brasil e uma revisão em profundidade de questões concretas, intrínsecas a certos dilemas políticos, como a reforma agrária. Buscou o alargamento do marxismo para adequá-lo às condições históricas variáveis de periferia, da América Latina e do Brasil. E demonstrou como o intelectual, desempenhando seus papéis e sem transcendê-los pela eficácia de partidos, pode alcançar o cume de militância exigente e criativa.
Não carecemos de estar de acordo com ele em tudo para realçar o seu perfil marxista. Basta que enxerguemos a sua coragem de enfrentar sozinho os riscos de errar e a repressão política brutal, para admirá-lo ainda mais dentro e acima de sua produção como historiador, geógrafo, economista, cultor da lógica e da teoria da ciência, homem de ação e político representativo.
Publicado originalmente no jornal Folha de São Paulo em 7 de setembro de 1991.
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O livro conta com a introdução do autor escrita para a edição de 1972 e o consagrado prefácio de Florestan Fernandes para a edição de 1989; além de inéditos texto de orelha do historiador Fernando Novais, quarta capa do cientista político Paulo Sérgio Pinheiro e posfácio da economista Leda Paulani.
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Florestan Fernandes (1920-1995) foi uma das mais brilhantes e comprometidas figuras do pensamento crítico brasileiro. Sociólogo, foi professor da Universidade de São Paulo (USP) de 1945 a 1969, quando teve seu cargo cassado pela ditadura militar e se exilou no Canadá e nos EUA. Foi professor convidado na Universidade de Yale e, quando voltou ao Brasil, lecionou na PUC. Entre 1987 e 1994 exerceu dois mandatos como deputado federal eleito pelo PT. Patrono da sociologia brasileira, foi autor de A integração do negro na sociedade de classes, Educação e sociedade no Brasil, Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, A revolução burguesa no Brasil, entre vários outros.
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