O pensamento feminista negro de Sueli Carneiro para além dos reducionismos de classe e gênero
Yara Frateschi comenta "Escritos de uma vida", de Sueli Carneiro, enfatizando como as contribuições da filósofa são centrais a um fazer filosófico crítico e compromissado com o Brasil.
Por Yara Frateschi.
Escritos de uma vida é uma coletânea de dezoito artigos escritos por Sueli Carneiro entre 1985 e 2009, prefaciada por Conceição Evaristo e apresentada por Djamila Ribeiro. Publicado em 2019 pela Editora Jandaíra, o livro, que não recebeu a merecida atenção nos círculos acadêmicos, é uma viagem no tempo e um convite a rememorarmos momentos marcantes das décadas que sucederam o fim da ditadura. Nesse sentido, é como uma história da redemocratização – desde as articulações prévias à Constituinte, passando pela formação da nova Constituição, pela consolidação dos movimentos de mulheres negras em diálogo e disputa tanto com os movimentos feminista e negro quanto com o Estado – narrada e analisada da perspectiva de uma das mais importantes ativistas e teóricas negras do Brasil. O título também poderia ser Escritos de uma vida dedicada à democracia brasileira. Vale ler em conjunto com a lindíssima biografia da autora, escrita por Bianca Santana, Continuo preta.
Com extensão muito mais curta do que a exigida para uma análise à altura da complexidade de Escritos de uma vida, esta coluna se limita a refletir sobre quanto a intelectualidade de esquerda, assim como as áreas acadêmicas das humanidades (tanto no ensino quanto na pesquisa), perdem ao ignorarem quase que solenemente as contribuições teóricas do feminismo negro brasileiro. Por dever de ofício, interesso-me particularmente pelos impactos dessa negligência na área de filosofia política ou, em termos mais positivos e programáticos, sobre quanto a filosofia política produzida no Brasil pode vir a ganhar em complexidade e brasilidade se se dispor a dialogar com a filosofia antirracista e feminista de Sueli Carneiro.
É evidente que me refiro aqui à intelectualidade de esquerda e à produção teórica (nas ciências humanas) hegemônicas, representadas com precisão na figura do “Eu Hegemônico” com o qual Carneiro ensaia um diálogo na apresentação de A construção do outro como não-Ser como fundamento do Ser, sua tese de doutorado defendida em 2005, absurdamente ainda não publicada em livro. Há vozes dissonantes em todos os campos, cada vez mais, mas ainda insuficientes para uma urgente reconfiguração da esquerda – que não raro ainda insiste na estranha prioridade sem gênero e sem raça da luta de classes – e da pesquisa em ciências humanas, particularmente na filosofia prática, que ainda é majoritariamente produzida por homens brancos em perspectiva eurocentrada.
Se hoje podemos vislumbrar transformações consistentes nesses campos é porque a juventude negra, com inegável protagonismo das mulheres negras, está forçando a porta dos partidos de esquerda e das salas de aula exigindo participar ativamente da política, dos programas de curso e da produção do conhecimento. Daí o caráter revolucionário e transformador da ação afirmativa prevista na Lei de Cotas de 2012 (com efeitos diminutos nas universidades estaduais paulistas, que resistiram o quanto puderam às cotas étnico-raciais). Os passos dessa juventude vêm de longe, como mostram os artigos reunidos em Escritos de uma vida, mas a resistência branca às suas demandas, discursos e perspectivas – não apenas no campo da direita, é isso o que me interessa aqui – também tem sido responsável pelas recalcitrâncias tanto das instituições políticas (como os partidos políticos) quanto das educacionais e de pesquisa, que continuam hegemonicamente sob controle branco de qualidade.
Contudo, além de falhar no compromisso pela democratização efetiva dos espaços de poder e conhecimento – o que, no Brasil, implica compromisso com luta e teorização antirracista e antissexista – penso que perdemos consideravelmente no campo teórico ao não trazer para a agenda o feminismo negro. Isso porque ficamos presos a diagnósticos, a análises das relações de poder e a modelos de democracia incompletos por não alcançarem a complexidade das contradições e intersecções de gênero, raça e classe nas democracias capitalistas contemporâneas, em particular no Brasil. Por isso, faço um convite ao estudo da obra de Sueli Carneiro.
Tríplice discriminação
Considero que o pensamento feminista negro brasileiro alcança essa complexidade ao promover uma radical transformação na compreensão das opressões e das desigualdades em relação às visadas que privilegiam e isolam a classe, o gênero ou a raça de uma perspectiva masculina. Este é o tema principal, assim me parece, a alinhavar os artigos reunidos em Escritos de uma vida, começando por “Mulher Negra”, publicado originalmente em 1985, resultado de um estudo pioneiro que, ao desagregar os indicadores de gênero e raça, trouxe à tona as desigualdades entres mulheres brancas e negras brasileiras. Os números mostravam à época – e continuam a mostrar – que as mulheres negras estavam em situação de desvantagem em relação às brancas em todos os aspectos avaliados, dentre os quais a situação educacional e a posição no mercado de trabalho (estrutura ocupacional e rendimento).
Ao explicitar os números da desigualdade entre brancas e negras, Carneiro pretendia tanto fornecer dados concretos para a formulação de políticas específicas voltadas às mulheres negras quanto explicitar os déficits do movimento feminista e do movimento negro daquela época (alguns persistentes e atuais): o primeiro pouco ou nada sensível ao racismo, o segundo, ainda ligado a uma perspectiva muito masculina, pouco atenta ao sexismo. No que diz respeito ao feminismo, os pontos críticos sublinhados por Carneiro, na metade dos anos 1980, são a “displicência com que a cor tem sido tratada na produção teórica feminista” (2019, p. 16) e a tendência de padronizar experiências diversas generalizando uma “identidade feminina” (2019, p. 48).
Segundo a autora “inegavelmente, o Movimento Feminista Nacional vem lutando historicamente contra as diferentes formas de discriminação sexual que atingem as mulheres em geral” (2019, p.47-48). No entanto, seria especialmente nesse geral que residiriam as dificuldades, visto que “o pressuposto que afirma a identidade feminina como um campo de significações particulares incorre no risco de não considerar a complexidade das relações sociais” (PONTES apud CARNEIRO, 2019, p. 47-8).
Ao sustentar esse tipo de generalização, o discurso feminista uniformiza experiências e apaga a diversidade, tomando a mulher branca como paradigma da identidade feminina, o que, evidentemente, tem um efeito colonizador na medida que “as portadoras de problemáticas distintas tendem a ajustar suas complexidades ao campo explicativo fornecido por essa hipotética identidade feminina” (CARNEIRO, 2019, p. 48). Para qualquer grupo social, independentemente de seu tamanho, a subsunção de sua particularidade a uma suposta identidade feminina produzida pela universalização das experiências específicas do grupo hegemônico é experimentada como uma forma de violência. No caso das mulheres negras é imperativo levar em conta que elas compõem um grupo muito numeroso, longe de ser uma minoria numérica, mas mesmo assim ignorado nas suas especificidades. De acordo com Carneiro, este seria o cerne das tensões entre mulheres negras e brancas no interior no movimento feminista, tema que retorna diversas vezes ao longo do livro e cuja solução exige que a variável cor “seja introduzida necessariamente como componente indispensável na configuração efetiva do Movimento Feminista” (2019, p. 49). Há de se considerar que, embora hoje o feminismo brasileiro tenha efetivamente enegrecido, – como demandavam as feministas negras entre os anos 1980 e 2000 – a resistência das feministas brancas em assumir o antirracismo como prioridade na luta e na teoria não está suficientemente superada.
Os dados estatísticos do capítulo da abertura de Escritos de uma vida também mostram que as pessoas negras têm, em geral, acesso limitado ao mercado de trabalho e à mobilidade social em função da discriminação racial e que, dentro desse grupo, as mulheres negras encontram-se em situação de inferioridade (CARNEIRO, 2019, p. 39). Em um quadro mais abrangente, que leva em conta também mulheres e homens brancos e negros, são as mulheres negras que também têm as menores oportunidades. Por essa razão, nenhum marcador isolado dá conta de explicar as especificidades da opressão das mulheres negras, que conjugam as discriminações de raça, sexo e classe (Cf. CARNEIRO, 2019, p. 55).
Divisão sexual e divisão racial do trabalho
Na medida que tanto o racismo quanto o sexismo são componentes intrínsecos da subalternidade no Brasil, cujas lógicas ainda regem, como mostram os dados acima, o mercado de trabalho, a situação desvantajosa das mulheres negras dificilmente será revertida sem políticas públicas que ataquem as duas formas imbricadas de discriminação (Cf. CARNEIRO, 2019, p. 45). Se as mulheres brancas são afetadas por um tipo de divisão sexual do trabalho que as penaliza, as mulheres negras são afetadas pela divisão sexual e também pela divisão racial do trabalho. Se os homens negros são afetados pela divisão racial do trabalho, costumam se beneficiar, com relação às mulheres negras, da divisão sexual do trabalho; ainda assim estão em desvantagem com relação às mulheres e aos homens brancos. Na hierarquia social, as mulheres negras ocupam a base, seguidas dos homens negros, das mulheres brancas e, finalmente, dos homens brancos. O quadro hierárquico indica, portanto, que o combate ao racismo deve ser prioritário, ao mesmo tempo que o combate ao sexismo, afinal “a distância entre homens e mulheres negras expressa o resultado do machismo e do sexismo presentes nos mecanismos de seleção social” (CARNEIRO, 2019, p. 57).
O diagnóstico da hierarquia social e racial no Brasil fica cada vez mais completo ao longo do livro, incorporando dados relativos à violência (e ao genocídio urbano dos homens negros jovens); ao controle da reprodução com vistas ao branqueamento da sociedade pela esterilização maciça de mulheres pretas e pardas (política do governo Maluf em São Paulo como apontado no ensaio “Expectativas de ação das empresas para superar a discriminação racial”, originalmente publicado em 2002); à ausência de mulheres negras nas instâncias institucionais do poder (presente em “Mulheres negras e poder: um ensaio sobre a ausência”, de 2009); à educação, que recebe atenção muito especial de Carneiro por ser reveladora das artimanhas do racismo brasileiro, que provoca analfabetismo, evasão escolar e participação ínfima da juventude negra no ensino superior, fatores que obstam a mobilidade social dos negros e negras (como presente nos artigos “Expectativas de ação” e “Pela permanência das cotas raciais nas universidades brasileiras”, ambos de 2010).
Os dados compõem o quadro de um país dividido “em dois países apartados um do outro” (CARNEIRO, 2019, p. 129) e que mostra o impacto avassalador do racismo mesmo entre pessoas da mesma classe social. Em um momento anterior à lei de cotas em 2012, Carneiro estava argumentando, fortemente embasada nos números, que políticas universalistas de cunho social (por exemplo, cotas para pobres) não superariam as desigualdades raciais. Daí a limitação dos diagnósticos construídos a partir da proeminência do fator classe social, pois tendiam (tendem) a negar a dimensão verdadeira da apartação racial. Raça estrutura classe no Brasil, como dirá a autora anos depois.
Uma análise complexa das opressões
O ponto que me interessa sublinhar aqui é que desse diagnóstico emerge uma análise mais complexa das opressões e das relações de poder do que aquelas que vinham sendo formuladas, no mais das vezes, dentro das matrizes teóricas marxistas, feministas e feministas de esquerda. Antes de Kimberlé Crenshaw cunhar o termo “interseccionalidade” e muito antes do conceito perder a sua acepção feminista negra original, Sueli Carneiro e Lélia Gonzales desafiavam, no Brasil, tanto o reducionismo de classe da esquerda ortodoxa quanto o reducionismo de gênero do feminismo hegemônico, sublinhando a tese da tripla opressão: uma significativa subversão das visadas teóricas que continuavam centradas na luta de classes, como se racismo e sexismo fossem epifenômenos do capitalismo. Aliás, é uma marca frequente do feminismo teórico negro no Brasil detectar antes na escravização, do que no capitalismo, a origem das opressões interligadas de gênero e raça em solo nacional. Isso não quer dizer que o capitalismo não seja um obstáculo à justiça social ou a causa de nossas mais agudas formas de opressão, evidentemente. Contudo, há contradições anteriores e persistentes.
Vale recordar que, para Lélia Gonzalez – referência constante em Escritos de uma vida – o limite das abordagens socioeconômicas é que elas deixam um “resto” no campo do simbólico e da cultura, que o marcador classe, sozinho, não consegue dar conta de explicar (GONZALEZ, 2019, p.239). Daí ter passado ao largo da esquerda tradicional – que se tome a crítica dela a Caio Prado Jr. – que o mito da democracia racial exerce a sua violência simbólica de maneira muito especial sobre a mulher negra. Portanto, para entender o lugar social no qual se situam as mulheres negras, Gonzalez precisou romper esse limite teórico abrindo caminho, junto com Carneiro, para abordagens mais complexas e completas da discriminação no Brasil. Naquele mesmo momento dos anos 1980, Carneiro insistia na necessidade de superar o limite teórico imposto pela centralidade do marcador classe, pois ao voltar-se para a situação concreta das mulheres negras na distribuição dos benefícios sociais ela detecta “contradições ainda mais arcaicas do que a luta de classes” (CARNEIRO, 2019, p. 57). O mesmo a respeito do marcador gênero que, isolado da raça e da classe, não consegue explicar as múltiplas violências que recaem sobre as mulheres brasileiras, no plural.
Isso não significa, absolutamente, abandonar a perspectiva de classe. Como aponta Rosane Borges, o pensamento feminista negro brasileiro, “ao decretar sua autonomia frente à teoria marxista, nunca desertou de um campo que interpela a divisão de classes, ainda que tomando outras categorias e outros parâmetros que não aqueles nativos da teoria marxiana” (BORGES, 2016, p. 49).
Estupro colonial
Outro aspecto que atesta a complexificação analítica do feminismo teórico negro dos anos 1980 promovida por Gonzalez e Carneiro é a contestação do discurso, predominante em parte importante da esquerda feminista, a respeito do patriarcado. Se fazia sentido a um certo grupo de mulheres detectar no patriarcado a fonte da opressão de gênero – e Carneiro não o nega –, as condições históricas das mulheres negras e as suas experiências diferenciadas, inclusive familiares, desde a escravização, impedem a sua perfeita identificação com esse o discurso, mais adequado às mulheres brancas (Cf. CARNEIRO, p. 50). Isso posto, será preciso buscar outras fontes para tentar compreender, na história brasileira, a discriminação e os estereótipos específicos que afetam as mulheres negras que, de tão persistentes, ainda impedem que acessem os bens sociais e usufruam da plena cidadania. O que exige, por sua vez, um enfretamento crítico do discurso que apaga da identidade nacional o elemento fundante, que é o estupro colonial: “No Brasil, o estupro colonial perpetrado pelos senhores brancos portugueses, sobre negras e indígenas, está na origem de todas as construções da identidade nacional e das hierarquias de gênero e raça presentes em nossa sociedade […]” (CARNEIRO, 2019, p. 151).
Dessa relação subordinada da escrava ao senhor, origina-se uma população mestiça que é um dos pilares estruturantes da “democracia racial” – ou seja, de um mito construído pelo apagamento do estupro colonial – e também os estereótipos que estigmatizam as mulheres negras, na figura da bela mulata e da mãe preta (ver, por exemplo, o ensaio “Gênero e Raça na sociedade brasileira”, de 2002, publicado em Escritos de uma vida, que deve ser lido juntamente com “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, de Lélia Gonzalez, originalmente de 1984, publicado na coletânea Pensamento feminista brasileiro). Em franca tensão com narrativas diversas sobre nossa formação (a maioria construída por homens brancos, aliás), a tese de Carneiro é a de que o “discurso da identidade nacional possui uma dimensão escondida de gênero e raça” (CARNEIRO, 2019, p. 151). É essa dimensão escondida que alimenta a indiferença e o cinismo com relação à violência racial e de gênero, o que tornava (torna) urgente a construção de um outro discurso sobre a identidade nacional que não mais encubra as nossas violências fundantes.
Se gênero e raça são construções sociais, Carneiro insiste que é preciso investigar como se deram e se dão essas construções no Brasil – inclusive em sua conjugação –, até para que possamos compreender a formação das mentalidades racista e sexista brasileiras. Esse é o momento no qual a filósofa Sueli Carneiro aponta para o chão das particularidades, sinalizando que qualquer teoria política, social, crítica ou da justiça comprometida com o Brasil requer atenção à nossa história e às nossas próprias construções simbólicas e culturais. Essa, aliás, é uma marca do pensamento feminista negro, oriunda do compromisso primeiro com as experiências concretas dos sujeitos situados histórica, social e culturalmente.
A democracia e os seus princípios universais: liberdade e igualdade
No entanto, a teoria de Sueli Carneiro não se realiza plenamente no âmbito do particular, pois também está comprometida de uma maneira muito particular com os universais. Num movimento teórico que transita continuamente entre o particular e o universal (o que Patrícia Hill Collins chamaria de “tensão criativa”) o diagnóstico da imbricação específica entre racismo e sexismo no Brasil convive com a defesa inconteste de um modelo de democracia não meramente formalista – pois a própria democracia é tomada como um “valor inegociável” – fundado nos princípios da liberdade e da igualdade (Cf. CARNEIRO, 2019, p. 108-109). No artigo “Tempo Feminino”, publicado originalmente em 2000, a autora historiciza esse compromisso com princípios: “
As mulheres da minha geração compreenderam o sentido das palavras liberdade e igualdade em função da sede que a ausência de liberdade e de igualdade nos provocou. E essa sede era tão intensa que transformou as noções de liberdade e igualdade nos princípios mais caros às pessoas de nossa geração […]
Escrito há 21 anos – muito antes da extrema direita ganhar novamente o poder combinando trajes ultraneoliberais e ultraconservadores –, o texto continua assim, um tanto visionário:
[…] pois além de entender que liberdade e igualdade são valores intrínsecos e inegociáveis para a pessoas humana, descobrimos também que para conquistá-las e mantê-las é preciso muita disposição de luta e uma vigilância permanente para defendê-las, porque liberdade e igualdade são bens que estão sempre sendo colocados em perigo por ideologias autoritárias, fascismos, neofascismos, por diferentes variações do machismo, pelo racismo e as discriminações étnicas e raciais, pelos fundamentalismos religiosos, pelos neoliberalismos, pelas globalizações (CARNEIRO, 2019, p. 108-9).
Se a democracia é um “valor inegociável” é também porque Carneiro aposta que ela seja o “único antídoto de que dispomos contra as diferentes formas de autoritarismos presentes no mundo” (2019, p. 109).
Nesse momento, no qual passamos por um rápido e acelerado processo de desdemocratização e de desconstitucionalização, vale ainda voltar aos textos reunidos em Escritos de uma vida para rememorar o engajamento amplo dos movimentos sociais no processo da Constituinte, que terminou na Constituição de 1988, comemorada pela autora em diversos artigos e também em “Viva a Constituição Cidadã”, publicado no seu aniversário de dez anos. Se esses textos interessam também do ponto de vista das teorias da democracia e da filosofia política contemporâneas é porque, na minha interpretação, avançam na construção e na justificativa de um modelo que ao mesmo tempo que desafia a tradicional desconfiança da esquerda marxista (e agambeniana) com relação ao direito – lido na chave do esquema estrutura-superestrutura – também afronta o formalismo da tradição liberal, inclusive da igualitária.
Nem marxista, nem liberal
Nem marxista, nem liberal, Carneiro aposta na democracia constitucional sem descuidar da pergunta sobre as condições de possibilidade de sua realização concreta, que dependem de muito mais do que o ordenamento institucional e de uma boa Constituição (como sabemos muito bem hoje!), embora não possa prescindir de ambos, a começar por políticas públicas de enfrentamento do racismo, afinal este é “um impasse para a consolidação da democracia” e para a “realização plena da condição humana” (CARNEIRO, 2019, p. 133). Se a defesa inconteste da democracia constitucional, baseada em princípios, não é feita em trajes formalistas liberais é porque, para Carneiro, essa defesa é feita com engajamento concreto na superação dos seus entraves: o racismo é, ao mesmo tempo, entrave para a democracia, para a realização da condição humana e também para a implantação da “justiça igualitária no Brasil” (2019, p. 138). O mundo girou, nós construímos uma alternativa de governo à esquerda no Brasil, a questão racial veio à tona, aprovamos a lei de cotas, fomos derrotados pela extrema direita, o racismo se tornou mais violentamente explícito e o diagnóstico de Sueli Carneiro naquele início de milênio permanece atual.
Redistribuição e reconhecimento: Sueli Carneiro com Nancy Fraser
Além de não ceder ao antagonismo tradicional entre marxismo e liberalismo – potencializado pela esquerda ortodoxa brasileira ainda hoje, como se houvesse apenas duas alternativas –, Carneiro também não parece atraída pela polarização entre redistribuição e reconhecimento incensada em intenso debate entre o fim dos 1990 e o começo dos anos 2000. Por ter um olhar atento aos aspectos materiais da opressão – e ao neoliberalismo (Cf. CARNEIRO, 2019, p. 111) – assim como aos seus elementos simbólicos e culturais, a filósofa se alia a Nancy Fraser para defender que o combate às injustiças no Brasil requer políticas que ataquem tanto a má distribuição de recursos materiais quanto a falta de reconhecimento e o desprezo simbólico.
Em “Mulheres e movimento”, ensaio originalmente de 2003, Carneiro postula, com Fraser, um conceito de justiça capaz de abarcar tanto redistribuição quanto reconhecimento (Cf. CARNEIRO, 2019, p. 212), aliada também a outras lideranças feministas, como Guacira César de Oliveira. Integrante da Articulação de Mulheres Brasileiras, ela assim expressa a convergência entre as demandas feministas e a teoria da justiça bidimensional de Fraser:
[…] reafirmamos que os movimentos de mulheres e feministas querem radicalizar a democracia, deixando claro que ela não existirá enquanto nãohouver igualdade; que não haverá igualdade sem distribuição de riquezas; e não há destruição de riquezas sem o reconhecimento das desigualdades entre homens e mulheres, entre brancos e negros, entre urbanos e rurais, que hoje estruturam a pobreza. Não almejam a mera inversão dos papéis, mas um novo marco civilizatório (GUACIRA pud CARNEIRO, 2019, p. 213, grifos meus).
No início de 2003, Sueli Carneiro – quem ao longo do livro dialoga com os textos e documentos produzidos pelo movimento de mulheres e mulheres negras naquelas duas décadas – comemora que finalmente o combate ao racismo, até então questão periférica na agenda feminista brasileira, torna-se uma das suas plataformas estruturais (Cf. CARNEIRO, 2019, p. 215). A Plataforma Política Feminista, resultante da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, incorpora, no parágrafo 11, a agenda do feminismo negro e a tese da tríplice opressão, articulando explicitamente “justiça de gênero, de raça e de classe”. A Plataforma não deixa de explicitar, contudo, que os entraves à justiça de gênero, raça e classe estão dados por um sistema representativo que, impregnado de sexismo, racismo e classismo, consolidou “o poder hegemônico de face masculina, branca e heterossexual”; estão dados pela concentração de riqueza e pela ordem neoliberal (Cf. CARNEIRO, p. 214). Daí que o modelo de democracia que vemos emergir em Escritos de uma vida requeira também – além de uma Constituição cidadã, que criminalizou o racismo e destituiu o pátrio poder – a democratização efetiva das instâncias políticas decisórias para que deixem de ser majoritariamente brancas e masculinas e um Estado forte e presente, que “desenvolva políticas púbicas afirmativas para a superação da pobreza” e para a promoção da justiça social de gênero, raça/etnia e classe. Em “A construção do outro como não ser como fundamento do ser”, essa exigência aparece nos termos de um novo pacto racial, em diálogo com a obra de Charles Wade Mills.
Para além de Foucault e Habermas
Como procurei sublinhar até aqui, o pensamento feminista negro, tal como elaborado na obra de Sueli Carneiro, apresenta-se com uma complexidade teórica que contribui para a superação de antagonismos clássicos no campo da teoria e da filosofia política. Por fim, gostaria de sugerir que a sua potência teórica também é capaz de explicitar as limitações do acirrado embate entre habermasiano/as e foucaultiano/as, do qual tantos nos ocupamos nas últimas décadas, talvez de maneira estéril. No campo da filosofia feminista, esse antagonismo revelou os seus déficits na medida em que colocou em lados opostos teorias da sujeição e da emancipação. Que se tome, por exemplo, o embate entre Judith Butler e Seyla Benhabib nos anos 1990, com diversas ramificações no Brasil, que talvez tivesse tomado outro rumo se ambas tivessem se deixado tocar pelo pensamento feminista negro de Angela Davis e Patricia Hill Collins, autoras que, como Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez, souberam teorizar a sujeição sem sacrificar a agência ou a possibilidade da emancipação, bem como teorizar a agência sem negar a realidade da sujeição.
Os artigos reunidos em Escritos de uma vida, assim como a tese de doutorado, A construção do outro como não-Ser como fundamento do Ser revelam que o pensamento feminista negro de Sueli Carneiro, fundadora do Geledés, ao mesmo tempo em que investiga a fundo as relações de poder/opressão/sujeição (uma demanda da tradição foucaultiana) busca, nos interstícios da sociedade, as ações que resistem e apontam para a transformação social (uma demanda da tradição da teórica crítica). Se as mulheres negras são protagonistas dessa teoria é porque encerram em si mesmas a complexidade da tripla opressão à qual resistem prática e teoricamente, pavimentando o caminho de uma nova utopia concreta.
Embora o inovador conceito de “dispositivo de racialidade” (uma das grandes contribuições de Carneiro no campo teórico) tenha uma base na teoria dos dispositivos de Foucault, ouso dizer que a filósofa destoa significativamente das abordagens feministas de matriz foucaultiana no seu característico desinvestimento utópico (que se veja, por exemplo, a seção “Novas utopias e as agendas feministas” do artigo “Mulheres em movimento”). Carneiro não parece pensar fatalisticamente que toda conquista emancipatória necessariamente se converte em sujeição, tanto que aposta na democracia e é autora de uma filosofia prática que contesta o cânone filosófico ocidental ao se reconciliar com a diversidade humana, celebrada por ela como “o maior patrimônio da humanidade” (2019, p.115). É uma filosofia da democracia radical assentada nos princípios da liberdade, da igualdade e da diversidade. É ainda uma filosofia que faz a política dialogar com a ética, afinal “sem valores e princípios o que exercitamos é um simulacro de liberdade e igualdade” (2019, p. 114). Bem sabemos.
Diversidade, universalismo e utopia
Que não se confunda a exaltação da diversidade feita por Sueli Carneiro com o discurso ufanista do caráter plural da nossa identidade nacional, pois se este esconde a realidade da hierarquia racial, Carneiro a traz à tona com vistas à sua superação (Cf. CARNEIRO, 2019, p. 138). Que não se confunda também o viés universalista dessa filosofia com os universalismos substitucionalistas (para usar uma expressão feliz de Seyla Benhabib), que tomam a experiência de certos grupos sociais como paradigmáticas dos seres humanos enquanto tais; ou com os universalismos abstratos e burgueses, que abdicam de pensar as condições particulares e concretas da realização dos valores universais. Na minha leitura (assumo o risco), Carneiro é universalista na medida em que almeja a efetivação da liberdade e da igualdade para todos e se revela defensora inconteste dos direitos humanos. Quando a extrema direita está no poder violando sistematicamente os direitos humanos, mais vale defender o universalismo do que enterrá-lo, e a filósofa mostra que é possível defendê-lo e justificá-lo teoricamente sem matar o outro e a sua razão.
Sueli Carneiro expõe os termos da sua utopia emprestando uma frase de Aimé Césaire que diz que há “duas maneiras de se perder: por segregação encurralado na particularidade ou por diluição do universal” (p. 184):
A utopia que perseguimos hoje consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica que anula a diversidade. Ser negro, sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Realizar a igualdade de direitos e tornar-se um ser humano pleno e prenhe de possibilidades e oportunidades para além da condição de raça e gênero é o sentido final dessa luta (CARNEIRO, 2019, p. 184, grifo meu).
De um ponto de vista filosófico, esse “atalho” deixa entrever uma visada realmente complexa e extremamente rica a respeito de uma das mais antigas e perenes questões da filosofia prática ocidental, que é a relação entre o particular e o universal. Mas este é assunto para outro texto. Contento-me em terminar sublinhando que as sutilezas e complexidades desse pensamento construído nos atalhos é prenhe por não cair nas armadilhas de antagonismos teóricos estéreis. E justamente por isso está à altura dos enormes desafios que o tempo presente nos impõe.
Finalmente, para quem ainda não abandonou a expectativa de fazer filosofia com história (crítica) da filosofia e com compromisso com o Brasil, vale ler a obra de Carneiro porque com ela compreendemos que uma filosofia feminista brasileira não pode se contentar em contestar o sexismo ou em corrigir a cegueira de gênero da filosofia ocidental, que são traços marcantes do cânone, da Antiguidade à Contemporaneidade. É preciso ainda contestar o racismo contra negros – explícito em grandes nomes do cânone moderno –, assim como a negligência da questão racial – uma característica surpreendente de diversas teorias da democracia, da justiça e do feminismo contemporâneos. Enfim, cumpre desnaturalizar a supremacia masculina e branca do cânone e o epistemicídio que ele promove, que têm nos atrapalhado de filosofar por aqui.
Confira a segunda aula do curso de curso de Introdução ao pensamento feminista negro, dedicada à obra de Sueli Carneiro e ministrada por Rosane Borges, com mediação de Carine Nascimento.
Referências bibliográficas
BORGES, Rosane. Feminismos negros e marxismo. Margem Esquerda, n.27, p.44-51, 2016.
CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Jandaíra, 2019.
CARNEIRO, Sueli. Entrevista. Margem Esquerda, n.27, p.11-21, 2016.
GONZÁLEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
HILL COLLINS, Patricia. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Trad. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo, Boitempo, 2019.
SANTANA, Bianca. Continuo preta: a vida de Sueli Carneiro. São Paulo: Companhia da Letras, 2021.
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Yara Frateschi é professora livre-docente do Departamento de Filosofia da Unicamp e pesquisadora do CNPq. Para a edição n. 33 da Margem Esquerda, revista semestral da Boitempo, entrevistou, junto com Carla Rodrigues e Maria Lygia Quartim de Moraes, a filósofa estadunidense Judith Butler. Colabora com o Blog da Boitempo com a TV Boitempo esporadicamente.
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