Feminismos pós-coloniais e a crise afegã: o retorno à política do véu e o Orientalismo gendrado
No espaço do leitor, Bruna Gonçalves analisa como a narrativa política centrada no véu, como símbolo da opressão da mulher muçulmana, reforça a opressão colonialmente imposta e tira o foco de questões essenciais do conflito.
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Por Bruna A. Gonçalves.
À esquerda, uma mulher branca, loira, seus cabelos à mostra, seu rosto maquiado. Seu colo visível, preenchido por acessórios. Roupas à sua escolha: o cachecol vermelho, em contraste a um suéter branco. À direita, a mesma mulher apresenta-se no que se anuncia como o dia seguinte, 16 de agosto de 2021. Seus cabelos agora são cobertos por véu negro. Seus ombros, pescoço e colo, sobrepostos por vestes da mesma cor. Apenas sua face é deixada à mostra, em composição de hijab e abaya, em versão moderada de cobertura corpórea afegã normalmente associada àquelas cujas faces encontram-se escondidas pelo tecido da burqa ou cujos olhos são recobertos pela frente de um niqab.
Vinte anos depois, a imagem da correspondente internacional da CNN Clarissa Ward substitui a comparativa popular do entre séculos, composta por afegãs de minissaia dos anos 1960 e suas filhas recobertas após a revolução islâmica nacional. Sua repercussão diante da nova investida talibã dá-se quase como um flashback, uma viagem no tempo aos tempos áureos da Guerra contra o Terror. Mediante esforços, pode-se ouvir a voz de Laura Bush nos canais de notícia ao fundo, clamando que os povos livres e civilizados levantem-se em favor das mulheres afegãs, representantes da sucumbência e retrocesso do país e sua respectiva cultura pré-ocupação estadunidense:1 “a luta contra o terrorismo é também a luta pelos direitos e dignidade da mulher.” A cultura é retomada como cerne do debate público ocidental.
Como nenhuma mulher cristã ou judia diante do conflito, o corpo da mulher muçulmana velada faz-se tema de pronunciamentos oficiais de Nancy Pelosi. Faz-se a imagem da guerra, o objeto imaginado da imposição ideológica e, fundamentalmente, campo de discussão geopolítica. O véu, em suas mais variadas formas (burqa, hijab, niqab, chador, khimar), fundamenta o clamor popular pela intervenção militar “humanitária” internacional e a nova derrubada do Talibã. A mulher muçulmana é o mais novo-velho objeto de pornografia humanitária do Ocidente.
A política do véu no século XXI
No auge da popularização do debate político a respeito dos véus islâmicos, foi alegando suposta promoção da liberdade das mulheres muçulmanas residentes em seus respectivos territórios que França, Bélgica, Suíça, Luxemburgo, Dinamarca, Áustria e Bulgária ironicamente proibiram absolutamente a opção dessas pelo uso da burqa e do niqab. Conforme descrito por Nicolas Sarkozy, presidente francês à época da entrada em vigência da proibição nacional,2 a liberdade de mulheres vestirem-se conforme suas crenças representava uma paradoxal violação à interpretação estatal de liberté, evidentemente prioritária no contexto.
A tal interpretação foi, não à toa, atribuída a colonialmente instaurada superioridade valorativa e acadêmica eurocêntrica, apoiada de forma generalizada pelas principais instituições políticas e jurídicas ocidentais. Seguindo o entendimento, a Corte Europeia de Direitos Humanos, diante de contestação da norma francesa, por exemplo, criou jurisprudência favorável a tal concepção de liberdade: aprovando decisão com 15 votos favoráveis e 2 contra, a Corte regeu contra a mulher paquistanesa velada que, lendo-se como privada de seus direitos, protocolou petição contra a França, baseando-se nos artigos regionais referentes a seus direitos à privacidade, liberdade de religião e expressão, não-discriminação e tratamento inumano em 2011.3 A decisão atribui maior viabilidade à argumentação nacional, a qual delega à norma o papel de suprir a desigualdade de gêneros propagada pela vestimenta e pela religião a ela conectada, indiferentemente à liberdade religiosa, à igualdade étnica ou ao multiculturalismo.
Comprovando prática interpretativa generalizada, os casos demonstram evidente descolamento da preocupação ocidental com a discrição governamental de ditar o que é ou não um código de vestimenta aceito às mulheres em seus territórios. Logo, embora o temor sobre a retirada de direitos de mulheres e minorias de gênero seja válido diante da ocupação talibã, particularmente tendo em vista as medidas adotadas pelo regime entre 1996 e 2001, parece controverso que a inquietação hespérica seja motivada pela potencial imposição do uso de véus em público ou, utilizando-se dessa como símbolo, pela precariedade de direitos sociais e econômicos vivenciada diante do conflito. Antes, tal como regem as decisões europeias e os discursos da ex-primeira-dama estadunidense, direcionam seu foco à piedade àquelas que não vivenciam a suposta liberdade de escolha sobre seu estilo de decote ou o comprimento de suas saias, colocando como prioridade máxima que se pareçam com a imagem da mulher ocidental.
Assim, pouco foram afetadas as críticas quando, poucos dias após a repercussão da imagem, Ward veio à público manifestar-se pontuando a inverossimilhança da conclusão viral. Conforme seu pronunciamento, a adoção de véus não foi abandonada na região após a queda do Talibã no início do século, de tal forma que a primeira fotografia não representa corretamente a situação anterior à atual retomada do poder pelo grupo. Em público, as vestes de Ward eram similares nos dias 14, 15 ou 16 de agosto por razões antes culturais e religiosas do que governamentais, enquanto as imposições talibãs surgem com conteúdos muito mais sombrios do que a aparência feminina.
O objetivo das reações é único: de forma (demasiadamente) simplificada, traçar crítica imanente ao que se assume ser o automático retrocesso de direitos das mulheres promovido pela tomada do grupo e, principalmente, pela imposição da religião islâmica na região, tendo pelas vestes o símbolo – e a razão – essencial de submissão, sem mais aprofundamento geopolítico do caso. Ainda, e em camada mais profunda da problemática, combater o mal representado por homens não-brancos demonizados no pensar ocidental. Como resultado, reproduz o estereótipo danoso de associação entre a região geográfica pluralmente composta do Oriente Médio, a religião muçulmana, a violência e a submissão feminina de forma generalizante e, inevitavelmente, condescendente, reproduzindo a “outrificação” da cultura não-branca no contexto global.
Orientalismo gendrado e o pensar ocidental
Embora para a população em sentido amplo a reprodução do problemático discurso humanitário ocidentalizado seja produto do inconsciente, diante da absorção da associação entre a diferença cultural e religiosa e a violência de gênero por este, tal movimentação não emerge sem propósito racionalizado e historicamente construído. Não à toa, desde o início da Guerra contra o Terror o homem muçulmano é posto como inimigo oficial do ocidente, em substituição aos povos indígenas, aos russos, aos chineses e aos alemães que ocuparam o papel de vilão nos blockbusters hollywoodianos do século XX. Sua imagem, longe de condizente com a plural realidade sociocultural dos quatorze países (quinze, se contados os territórios palestinos) do subcontinente e dos indivíduos que os residem, é resultado de uma longa construção política derivada da ocupação colonial, descrita já em 1978 por Edward Said em seu consagrado trabalho, Orientalismo.
Na descrição de Said, a imagem impregnada no subconsciente ocidental e no pensar coletivo é produto imediato da construção cultural unilateralmente produzida pelos poderes neocoloniais diante do encontro das tradições, pautada essencialmente na diferença ontológica e epistêmica regional e no ponto de vista hierarquizante de uma superioridade étnico-racial europeia. Na descrição de posteriores estudos pós-coloniais e decoloniais (Cf. MIGNOLO, 2012; QUIJANO, 2012; MALDONADO-TORRES, 2000),a construção hierárquica parte do objetivo doloso de subordinação de povos provenientes do Sul Global, permitindo a apropriação de seus territórios e riquezas e a sua desumanização para fins de trabalho, tal como inicialmente proposto na colonização das Américas alguns séculos antes. Sua disseminação, por sua vez, deriva mutuamente de uma validação exclusiva da epistemologia europeia e iluminista, de forma retroalimentar com a lógica da superioridade, e da postulação dessa como narrativa universal, despersonalizada e descontextualizada; logo tida como verídica, científica, e livre de valores subjetivos derivados do pensamento colonial ou outras circunstâncias de dominação.
A partir do consumo do saber ocidental iniciado nos séculos XVIII e XIX, consolida-se o que Said chama de Orientalismo, pensar4 que concebe o Oriente como nada mais do que uma criação do imaginário ocidental a partir de sua experiência relacional-colonial e em perspectiva valorativa previamente determinada, pautada na diferença abismal e seus respectivos estereótipos. Em tal descrição, a região aparece como objeto dependente, ao qual ausenta agência (SAID, 1978, p. 3); contexto homogêneo barbárico e evolutivamente rudimentar, condicionado ao auxílio “civilizatório” ocidental para alcançar a modernidade. No geral, narra-se o que se tem como o oposto do Ocidente, o “outro”, o “não-europeu”, e a ameaça que este representa à manutenção dos valores ocidentais.
Diante da narrativa, revisitada intensamente após os eventos do 11 de setembro, o homem muçulmano aparece como naturalmente perigoso e preso a tradições arcaicas, à violência e à rispidez, intrinsecamente ligado à opressão, ao extremismo e, particularmente, ao terrorismo. A mulher, por outro lado, adquire posição fluida ao longo dos séculos entre figura de desejo e sensualidade exótica, em objetificação de seu corpo colonizado, e de submissão, silenciada pela religião e pelo patriarcado. A figura feminina é lida à luz e imagem dos pressupostos ocidentais de liberdade e igualdade de gênero, e subsequente ignorância diante dos contextos histórico-culturais, políticos e religiosos que a rodeia, de tal forma a ser sujeita a processo de re-vitimização e silenciamento, em reprodução do chamado “orientalismo gendrado”. A suposta liberdade acaba por impor desejos externos à finalidade humanitária, produzindo narrativa impositiva e essencialista sobre a identidade e condição da mulher muçulmana e reduzindo sua existência a danoso estereótipo de fraqueza e incapacidade social.
Nesse contexto, o direcionamento da atenção ocidental à condição da mulher muçulmana em simultânea ignorância das demais vítimas de opressão de gênero em função da condução cultural, quando descrito por Lila Abu-Lughod (2013, p.88), constitui expressão contemporânea do conceito descrito por Leila Ahmed como “feminismo colonial”. Conforme as autoras, é essa a narrativa ocidental de salvação da mulher não-branca do homem não-branco,5 representada por líderes coloniais do século XIX que, opondo-se aos direitos políticos de mulheres inglesas e promovendo o movimento de dominação sociopolítica do Sul Global, criticavam aos brados a opressão da mulher colonizada pelo homem colonizado, embora continuassem oprimindo-as de sua posição. O feminismo colonial representa a apropriação das vozes de mulheres colonizadas, determinando a imposição de narrativas sobre sua condição e a posição de salvador do poder colonial. Na era contemporânea, este então encontra seu paralelo no feminismo liberal, mainstream, ou hegemônico,6 segundo o qual a liberdade individual formal – particularmente aquela imediatamente visível – faz-se o fim essencial, em desconsideração de complexidades estruturais e histórico-sociais do sujeito observado e, de forma imediata, sua agência.
Parafraseando Abu-Lughod,7 é não apenas questionável o quanto a campanha de fato contribui com as vítimas, mas especialmente o quanto é acompanhada por outras iniciativas: quanto aqueles que se satisfazem com a pornografia humanitária da mulher velada de fato clamam por uma redistribuição de riquezas para que mulheres em situação de conflito – no geral – possam libertar-se das condições político-geográficas a elas impostas? Quantos se preocupam com a garantia de seus direitos básicos materiais? Com a política de auxílio ao refúgio ofertada pelos países ocidentais? Com as condições dos refugiados a alcançarem comunidades em situação de paz? Até que ponto o interesse é não com libertá-las do que julga como o fardo de não serem feitas à luz e imagem do corpo ocidental e sim efetivamente com a sua vulnerabilidade diante da autocracia? Por fim, ainda que a última represente de fato interesse legítimo, até que ponto o feminismo ocidental se daria por satisfeito caso a suposta salvação resultasse em contexto de liberdade distinto da interpretação iluminista da mesma, em adequação contextual do sentido de igualdade de gênero?
Neo-orientalismo: reflexão e consequências
Antes de uma iniciativa imparcial humanitária diante de circunstâncias políticas extremas – de fato existentes –, a emergência recente da centralidade da mulher velada no debate internacional é fruto de um padrão de elementos discursivamente construídos por uma estratégia colonial evidente: a de problematização religiosa-cultural, ainda que diante de crise humanitária. Assim, embora aparentemente inofensivo e caridoso, o discurso de Laura Bush reforça verdade artificialmente criada e imposta de estigmatização do “outro” através de suas vítimas, sujeitas a auxílio ocidental apenas até que se tornem palatáveis e independente das condições negativas às quais são submetidas por esse – tal qual foram pela invasão promovida por Bush no início dos anos 2000.
Assumir o véu como símbolo de opressão e promover neste o foco de uma narrativa política é, fundamentalmente, promover opressão colonialmente imposta, tirando o foco de questões essenciais do conflito que preocupa a região afegã e, inevitavelmente, as minorias locais; é ato imediato de silenciamento das vítimas que clamam por auxílio diante de necessidades contextuais específicas, distantes do mero direito de aparentar como uma mulher ocidental.
Notas
1 A paráfrase é resultado de combinação entre a entrevista concedida pela primeira-dama em 17 de novembro de 2001 à rádio PBS, no programa PBSNews Hour, transcrito por Abu-Lughod na obra posteriormente referida (pp. 30-31), e entrevista disponível no canal do Youtube da Goldman Sachs, publicada em 2016.
2 Loi n° 2010-1192 du 11 octobre 2010 interdisant la dissimulation du visage dans l’espace public.
3 S.A.S. v. France, julgado em 1 de julho de 2014, Application 43835/11.
4 Said (1978, p. 3) utiliza-se do conceito Foucaultiano de ‘discurso’ para definir o conceito de Orientalismo, narrando-o como a dominação culturalmente concebida da Europa sobre o “Oriente” em termos sociopolíticos, militares, ideológicos, científicos e imaginativos.
5 A ideia original da frase é formulada por Spivak (2012, p. 119), que pontua o êxtase ocidental com mulheres do Sul Global como a narrativa de que, pondo em prática a oposição criada com o homem do Sul Global põe-se a salvar outro sujeito que recai em sua suposta ameaça. Em suas palavras, “homens brancos […] salvando mulheres de pele escura de homens de pele escura”.
6 Na literatura decolonial, o conceito de “hegemonia”, emprestado dos escritos de Gramsci, refere-se não apenas ao ativismo liberal, mas às expressões sociais ocidentais dos mais variados espectros políticos, incluindo aqueles marxistas. A leitura, particularmente criticada por autoras dos feminismos subalternos, reconhece nestes falha em diferenciar tradições epistêmicas distintas e circunstâncias estruturais às quais diferentes grupos são submetidos dentro de uma mesma classe, acabando por ignorar interseccionalidades e promover narrativa dominante, ainda diante da intenção revolucionária.
7 Em inglês, no original, Abu-Lughod (2013, p. 42) pergunta: “How many who felt good about saving Afghan women from the Taliban are also asking for a radical redistribution of wealth or sacrificing their own consumption radically so that Afghan, African or other women can have some chance of freeing themselves from the structural violence of global inequality and from the ravages of war? How many are asking to give these women a better chance to have the everyday rights of enough to eat, homes for their families in which they can live and thrive, and ways to make decent livings so their children can grow? These things would give them the strength and security to work out, within their communities and with whatever alliances they want, how to live a good life. […] Could we only free Afghan women to be ‘like us,’ or might we have to recognize that even after ‘liberation’ from the Taliban, they might want different things than we would want for them? What would be the implications of this realization?”
Referências bibliográficas
ABU-LUGHOD, Lila. Do Muslim Women Need Saving? Harvard University Press: Cambridge, 2015.
MALDONADO-TORRES, Nelson. La descolonización y el giro des-colonial. Tabula Rasa: Bogotá – Colombia (9), 2008, pp. 61-72.
MIGNOLO, Walter. Local Histories/Global Designs: Coloniality, Subaltern Knowledges, and Border Thinking. Princeton University Press, 2012.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (ed.). La colonialidade del saber: eurocentrismo y ciências sociales, perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000, p. 178-246.
SAID, Edward. Orientalism. Routledge: London, 1978.
SPIVAK, Gayatri. An Aesthetic Education in the Era of Globalization. Harvard University Press: Cambridge, 2012.
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Bruna Gonçalves é bacharel em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), na qual obteve honras por seu trabalho de conclusão de curso na temática de feminismos decoloniais. Atualmente, é mestranda em Filosofia e Teoria do Direito na FDUSP e em Direito Europeu e Internacional dos Direitos Humanos na Universiteit Leiden, na qual também é bolsista através do programa Leiden Excellence Scholarship (LExS).
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