Da guerra no Afeganistão à guerra feminista

Berenice Bento argumenta como desejos de dominação de países imperialistas têm encontrado nas lutas das mulheres um artifício que justifique a violência que empreendem contra outros povos.

Protesto de mulheres em Cabul, em 3 de setembro de 2021. Foto: Stringer/Reuters.

Por Berenice Bento.

O desejo de dominação e controle dos Estados Unidos e de outros países com DNA imperialista encontrou nas lutas das mulheres um artifício para produzir a justificativa necessária para a violência contra outros povos. Para que obtenham vitória, guerras adjacentes foram desencadeadas. A mais notável, a guerra entre os feminismos.

Como nomear as disputas internas entre os feminismos? Há algum tempo há uma guerra não declarada entre os feminismos. Certamente, o feminismo de mulheres negras e brancas estadunidenses que estão engajadas na luta pela autodeterminação do povo palestino, a exemplo das vozes de Angela Davis e Judith Butler. Seria possível colocá-las juntas à congressista democrata Carolyn Maloney, que vestiu uma burca e fez um discurso em 2001 para, supostamente, defender as mulheres afegãs? Elas vivem em um país ocidental e fazedor de guerras. Seria suficiente nomeá-las sob o enganoso guarda-chuva “feminismo ocidental”? Eu posso incluir outro termo, “feminismo branco ocidental”. Então, todas as mulheres brancas ocidentais são cúmplices das políticas imperialistas? Os marcadores regionais (ocidental) e de raça (branca) têm como efeito reinstaurar dois tipos de determinismo que deveriam ser combatidos: o determinismo geográfico e o biológico. As discussões sobre alianças, coalizações, consciência das estruturas de gênero, classe, sexualidade e religião são apagadas. O feminismo da congressista, por seu apego e defesa dos interesses do Estado, pode ser tipificado como “feminismo de Estado”. Voltarei a esse ponto.

Em ensaio anterior apontei, de forma ainda insipiente, a noção de mulher-moeda no mercado moral-global. Como o feminismo de Estado tem instrumentalizado a vida de mulheres? Qual a função da mulher-moeda? O que se está disputando quando se apresenta de forma simulacral a situação de parte de uma população (a mulher) como causa necessária e suficiente para a invasão e ocupação por uma potência de um país?

Há dois momentos em que a mulher-moeda foi lançada no mercado moral-global como nunca antes observado na história contemporânea. O primeiro momento foi quando aconteceu a invasão do Afeganistão pelos Estados Unidos. O segundo, em agosto último, quando o Talibã tomou o poder em Cabul. Uma verdadeira “cabeça d’água” discursiva formou-se em torno da condição da mulher afegã. Nesses dois momentos, o feminismo de Estado foi fundamental para mover a opinião pública local e globalmente.

Vamos para 2001. Laura Bush, esposa do presidente Bush, disse: “Eu sou Laura Bush e estou fazendo o discurso desta semana no rádio para dar início a um esforço mundial para enfocar a brutalidade contra mulheres afegãs”.

Um mês antes, outubro de 2001, a congressista republicana Carolyn Maloney, de Nova York, usou uma burca durante um discurso de 2001 no Congresso sobre os direitos das mulheres afegãs. Ela disse:

Qualquer pessoa que conheça, antes de 11 de setembro, como o Talibã trata as mulheres, deveria ter reconhecido que o Talibã é capaz de fazer quase tudo. O Talibã controlou 90% do Afeganistão desde 1996, quando declarou unilateralmente o fim dos direitos humanos básicos das mulheres. As restrições à liberdade das mulheres no Afeganistão são incompreensíveis para a maioria dos americanos” (grifos meus).

Esses dois discursos podem ser lidos como momentos inaugurais do feminismo de Estado.

Duas mulheres de/no poder que desejam fazer coincidir os seus interesses com os de todas as mulheres, transformando-se em referentes morais-globais. Estamos diante de uma operação metonímica própria da retórica orientalista (Cf. SAID, 2015). Tomam para si a chave do banco mundial da moralidade, cujo lastro está na busca reiterada de se tornar referência universal de todas outras moralidades. A moral, moeda abstrata, passa a ser encarnada no corpo da mulher-moeda.

Em agosto último, essas vozes se levantaram novamente para apontar o erro dos Estados Unidos em saírem do Afeganistão. Nem uma palavra sobre os escombros e os crimes contra humanidade cometidos contra povo afegão pela potência ocupante foi proferida. “Mulheres afegãs” são deslocadas do contexto em que vivem, em um processo de coisificação de suas vidas. Esse foi o segundo momento de visibilidade global do feminismo de Estado.

Se há novas estratégias discursivas que passem a circular nas esferas públicas globais, como justificar a interrupção da ocupação? Em 01 de setembro, as cenas de terror que tomaram conta da cidade de Cabul, com milhares de pessoas fugindo, fizeram a opinião pública estadunidense inclinar-se pela manutenção da ocupação que já durava 20 anos. O presidente Joe Biden fez a contabilidade das perdas. Segundo ele:

Depois de mais de US$ 2 trilhões gastos no Afeganistão, um custo que os pesquisadores da Brown University estimaram seria de mais de US$ 300 milhões por dia durante 20 anos no Afeganistão – por duas décadas – sim, o povo americano deveria ouvir isso: US$ 300 milhões por dia durante duas décadas. Se você pegar o número de US$ 1 trilhão, como muitos dizem, ainda são US$ 150 milhões por dia, por duas décadas. E o que perdemos como consequência em termos de oportunidades? Recusei-me a continuar em uma guerra que não estava mais a serviço do interesse nacional vital de nosso povo. E, acima de tudo, depois de 800.000 americanos servindo no Afeganistão – eu viajei por todo o país –, serviço corajoso e honrado; depois de 20.744 soldados e mulheres americanos feridos e a perda de 2.461 militares americanos, incluindo 13 vidas perdidas apenas esta semana, recusei-me a abrir outra década de guerra no Afeganistão. Temos sido uma nação em guerra por muito tempo. Se você tem 20 anos hoje, nunca conheceu uma América em paz.

Não há uma única palavra sobre os mortos, mutilados, deslocados afegãos ao longo dessas duas décadas. Certamente, ele também não disse quanto o país (as empresas com contratos fraudulentos, a indústria armamentista, os insumos) ganhou. Esse será um segredo de Estado. Tampouco menciona os escombros e ruínas que deixaram no Afeganistão. Aqui está o efeito prático da transformação da mulher em instrumento, em moeda. O que se ganha com a circulação dessa moeda? Um país inteiro.

O Estado antifeminismo

A invasão do Afeganistão representa um turning point (um novo ponto de partida) para que se discutam os sentidos de “feminismo”.  O último livro de Rafia Zakaria, Against White Feminism (2021), retoma essa discussão da utilização pelas autoridades americanas da situação das mulheres afegãs para justificar a invasão de 2001. Para Zakaria:

E a razão pela qual a chamo de guerra feminista, a primeira guerra feminista, é porque, até então, as feministas americanas pelo menos funcionavam como um controle do Estado. Eles eram contra a guerra. Eles eram contra invasões e intervenções injustas. Mas quando isso aconteceu, você sabe, as grandes organizações feministas e feministas proeminentes, incluindo Gloria Steinem, apoiaram a incursão no Afeganistão, dizendo que isso estabeleceria a democracia, o que em última análise seria bom para os direitos das mulheres […] No Afeganistão, as mulheres afegãs retrocederão 200 anos. É por causa disso, é porque esse tipo de uso indevido do feminismo, em grande parte liderado por mulheres brancas e ocidentais que queriam modificar o Afeganistão à sua própria imagem, da maneira que melhor viam, falhou completamente

Na mesma entrevista, Mahbouba Seraj, coordenadora da Rede de Mulheres Afegãs, afirma: “A Sra. Rafia está sendo um pouco injusta. […] Não é desse jeito”. E começou a detalhar o que mudou na situação da mulher nas duas últimas décadas:

Do ponto de vista da educação, há muito mais meninas agora que vão para a escola, se formaram nas escolas e estão prontas para cuidar de suas vidas e manter-se em progresso. Da mesma forma, há professoras, médicas, enfermeiras e engenheiras […] E, com sorte, a educação é algo pelo qual lutaremos e que continuará. E para mim também é interessante ver o que vai acontecer sem o impulso do Ocidente e das mulheres e o dinheiro das ONGs e tudo isso.

Ao mesmo tempo, Mahbooba Seraj conclui dizendo que sente um alívio absoluto ao ver as últimas forças americanas partindo. “Agora somos capazes de descobrir o que faremos nesta nova era.”

Estamos diante de duas pensadoras e ativistas afegãs com posições divergentes. Não estou me alinhando a nenhuma posição. Apenas aponto que as disputas de interpretação (com seus efeitos políticos) sobre avanços, recuos, lugar da mulher são múltiplos na sociedade afegã. Em um ponto as duas estão de acordo: com o Talibã, a mulheres terão que lutar para manter suas conquistas e o passado recente dos milicianos do Talibã não deixa qualquer margem para esperança de um governo democrático com políticas de equidade de gênero.

Os debates e interpretações não estão limitados aos espaços acadêmicos ou midiáticos. Mulheres afegãs, desde agosto, continuam indo semanalmente às ruas. No dia 04 de setembro, dezenas se manifestaram para pedir um lugar no governo talibã, direito de trabalhar e de continuarem estudando. Um dia antes, um alto comandante dos milicianos talibãs afirmou que elas serão levadas em conta, mas não para o Executivo nem para nenhum outro cargo de responsabilidade.

As mulheres se concentraram em frente à sede do Governo provincial em Herat, a terceira maior cidade afegã. Nos seus cartazes, podíamos ler: “Não tenham medo, estamos todas juntas” e “Nenhum Governo pode sobreviver sem o apoio das mulheres”. Há muitas formas de colocar a vida das mulheres em perigo. No Afeganistão, proibir as mulheres de trabalhar é condenar famílias inteiras à fome e a outras precariedades, pois são elas as responsáveis por suas famílias e representam 30% da força de trabalho do país. A manifestação foi brutalmente reprimida pelo Talibã. Várias mulheres e jornalistas ficaram feridas.

Alguns dias depois, em 12 de setembro, 300 mulheres, vinculadas às escolas religiosas (as madrassas) e cobertas da cabeça aos pés defenderam em Cabul o Emirado Islâmico e protestaram contra a influência ocidental.

“A cultura ocidental não tem lugar no Afeganistão e a educação mista é o primeiro passo para ela”, declarou uma mulher que se identificou como diretora de uma madrassa. Elas falaram em nome de todas as afegãs:

“As mulheres que protestam contra o Emirado Islâmico não representam o Afeganistão, são uma minoria. Nós somos a maioria. As afegãs não gostam da democracia da cultura ocidental […] Estamos contentes pelo Emirado não ter permitido nenhuma mulher nos altos cargos do Governo e por implementar a lei islâmica. Viva o Afeganistão!”

Aqui, ao contrário do que acontece com o feminismo de Estado, vemos mulheres que dão sustentação às políticas antifeministas do Talibã e utilizam o marcador “ocidental” para declarem guerra às outras mulheres. Possivelmente, aquelas mulheres que foram duramente reprimidas nas manifestações do dia 04 de setembro não tiveram nenhuma solidariedade das que se diziam legítimas representantes das mulheres afegãs contra os valores ocidentais, as que falaram sob olhares atentos dos milicianos do Talibã. Ou seja: o direito ao trabalho, à educação e à equidade de gênero é reduzido a “valores ocidentais”. O que o feminismo de Estado e o antifeminismo de Estado têm em comum? Mulheres que se dizem representantes de outras mulheres e o fazem para justificar políticas de opressão. O que diferencia o feminismo de Estado estadunidense é a utilização da retórica da “mulher oprimida” como moeda global em suas políticas imperialistas. 

A superexploração da imagem da mulher oprimida se transforma em um signo que se apresenta como suficiente. Quando eu digo “mulher afegã” ou “mulher palestina”, desencadeia-se um conjunto de imagens vinculadas a uma cadeia maior de significantes: não pode andar na rua, não tem voz, não estuda. Nessa suposta identidade fechada e completa, encontramos seu esvaziamento. É um signo vazio, que pode ser preenchido a partir dos interesses do Estado, como fez agora o Talibã. Estamos diante da mulher-moeda, mas não no âmbito do feminismo de Estado, mas de um antifeminismo de Estado. Essa talvez seja a grande mudança do Talibã, que entendeu que é preciso fazer outro tipo de guerra para disputar suas posições. Eles também estão na disputa moral-global e aprenderam a fazer a mulher-moeda circular a seu favor.


Referências bibliográficas
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2015.
ZAKARIA, Rafia. Against white feminism. Nova York: W. W. Norton & Company, 2021.

***

Berenice Bento faz parte do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília.

2 Trackbacks / Pingbacks

  1. Política sexual de janeiro a junho de 2024 (Parte 2) | SPW – Português
  2. Política sexual de enero a junio de 2024 (Parte 2) | Sxpolitics – Espanhol

Deixe um comentário