A impossibilidade do consenso das “Diretas Já” no “Fora Bolsonaro”
Seja qual for o rumo que tomaremos enquanto país, certamente as forças políticas alinhadas ao neoliberalismo colonial brasileiro desejarão silenciar as lutas e os movimentos populares e manter a militarização da política em níveis ‘aceitáveis’ para o modelo liberal de política.
Por Edson Teles.
Tem-se falado, da esquerda à direita, em retomar o consenso e a pluralidade da campanha pelas “Diretas Já!”, que reivindicou eleições para presidência da República como saída da Ditadura. Parece-nos que vale um esforço de memória sobre aquele acontecimento histórico visando entender o que significa mobilizar seus sentidos nos dias atuais. Entre a primeira metade dos anos 1980 e os trágicos momentos em que vivemos há algumas semelhanças e profundas diferenças.
Vivemos um governo autoritário no Estado de Direito sucateado, sob direitos democráticos que convivem com permanentes estados de exceção (notadamente na produção da violência de Estado). Tal quadro se agrava com a extrema militarização da política, resultado de um processo iniciado anos atrás e que se consolida nas barbaridades de uma ideologia da caserna guiando a lógica de administração dos territórios e das populações.
A conexão com o tempo passado se favorece ainda dos discursos ameaçadores de derrubada dos poderes constitucionais por meio da violência e dos elogios ao AI-5, seguidos de pedidos de intervenção militar. Para deixar tudo ainda mais tenso e inseguro, os comandantes das Forças Armadas fornecem salvo conduto aos atos golpistas ofertando o valor simbólico das armas para a intimidação institucional. Isso sem entrar em detalhes sobre a pilhagem dos bens públicos e da entrega de nossas riquezas (e vidas que habitam junto a elas), aos moldes de como era feito pelos militares durante a Ditadura.
Realmente, a situação se assemelha à certa narrativa nacional, e oficiosa, da redemocratização. Contudo, a campanha pelas eleições diretas coroava um rico processo de oposição ao governo ditatorial que vigia já há 20 anos. No ano de 1984, os famosos “comícios pelas Diretas” estouraram em praticamente todas as cidades brasileiras. Nas capitais dos estados tais eventos políticos reuniam parcelas consideráveis da população, com mais de um milhão no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Estava para terminar a Ditadura governada por cinco generais estrelados (Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo) que criaram os DOI-Codis e institucionalizaram a tortura como razão de Estado, fabricando máquinas de morte e terrorismo contra opositores e, também, contra a população negra, pobre e periférica.
A opinião pública era cerceada, os jornais censurados e jornalistas eram cassados e presos (inclusive sendo assassinados, como no caso de Vladimir Herzog, em 1975). Por outro lado, jornais e canais de televisão (o meio de comunicação de massa em um mundo sem whatsapp), como a Rede Globo, veiculavam a versão oficial dos governos, colaborando para fabricar a memória fake de um país em desenvolvimento e, mais tarde, de que havíamos vivido meramente uma “ditabranda”. Não deixa de ser curioso ver hoje os âncoras do Jornal Nacional circulando em redes oposicionistas como anunciadores de uma grande frente política salvadora.
Nas instituições da República, a Constituição eleita e votada em 1946 foi jogada no lixo, o Congresso Nacional e outras casas legislativas foram fechadas várias vezes e o judiciário se transferiu para as cortes militares e ainda contou com a estratégica lentidão dos tribunais civis. A diversidade partidária foi trocada por dois partidos, que nos anos 1960 e início dos 1970 eram chamados de partidos do “sim” e do “sim, senhor” (MDB e Arena; ou talvez, Arena e MDB). No Senado, parte significativa dos parlamentares eram “biônicos” (indicados pelos militares); não havia eleições para presidente, governadores e prefeitos de capitais.
Na metade dos anos de 1970, a luta armada havia sido derrotada, seus militantes restantes eram cassados e muitos foram assassinados e tiveram seus corpos desaparecidos. A oposição não institucional começava a ganhar corpo nos movimentos populares e nas lutas sociais. Nascia, em nova configuração, os movimentos feminista e negro, se articulavam as oposições sindicais, retornavam as entidades estudantis e se organizavam as periferias. Surgiam coletivos como o Movimento do Custo de Vida, os Comitês de Luta Contra o Desemprego, que se juntavam às comunidades eclesiais de base e aos clubes de mães, assim como com as mulheres em luta por creches. As chamadas “forças democráticas” se reuniam em torno da campanha pela anistia, ampla, geral e irrestrita.
Diante da fome e do desemprego e sob o impacto da expectativa de redemocratização, o povo periférico radicalizava as formas de luta, com a explosão de uma série de revoltas. Eram protestos mais ou menos espontâneos que, sempre em paralelo e com certa proximidade em relação aos movimentos sociais organizados, exigiam o direito à vida e denunciavam a violência de Estado; protestavam contra a péssima qualidade e alto preço do transporte público; demandavam emprego com salário digno; entre outras reivindicações.
As revoltas culminaram, no ano de 1983, com os grandes saques e quebra-quebras, nas várias capitais e principais cidades, com destaque para o “Quebra-quebra” de abril, quando as grades do Palácio dos Bandeirantes, sede do governo de São Paulo, foram derrubadas por populares e durante algumas horas se assistiu à batalha dos manifestantes contra a Tropa de Choque. Do general presidente aos líderes das forças democráticas, inclusive os de esquerda, foi unânime a condenação da ação política radicalizada, apesar de usar de força infinitamente inferior à violência cotidiana sofrida.
Gestava-se o pacto racial a partir do qual a política viria a ser o ato legitimado pelas instituições do Estado ou sob a supervisão dos grandes movimentos autorizados (sindicatos, entidades representativas, partidos etc.). Na nova democracia, a ação de revolta deveria continuar sob controle e desqualificada. Com isso, salvava-se o aparato repressivo, penitenciário e a doutrina militar de segurança pública. Não se atacaria mais os opositores, mas permaneceria ativa a violência de Estado e o “genocídio do povo negro”, como denunciavam os movimentos de luta antirracista.
Foi nesse contexto de certa desqualificação da luta política de contestação que no ano de 1983 surgem as primeiras manifestações pelas eleições diretas, com comícios em Goiânia e São Paulo (em frente ao estádio do Pacaembu). Aos poucos, a mobilização juntou no mesmo palanque lideranças da oposição democrática (Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Miguel Arraes, Leonel Brizola), da esquerda (Luiz Carlos Prestes e Lula) e, até mesmo, de apoiadores da Ditadura que começavam a romper com o regime militar (pouco depois fundariam a Frente Liberal, embrião do atual DEM).
Trocava-se a diversidade das ruas pelo discurso homogêneo da saída consensual da Ditadura. Sob antagonismos enormes, pois havia um abismo entre os discursos de Lula e de Tancredo Neves, prosseguia-se no fluxo de produção dos novos lugares e sujeitos da política. O povo na praça escutaria os líderes que, de cima do palanque, orientariam os seguidores de acordo com suas projeções para a nova democracia.
A campanha foi derrotada e as eleições diretas rejeitadas em votação no Congresso Nacional. Eram necessários 320 votos favoráveis, mas foram apenas 298 pela eleição direta, com 65 votos contrários, 3 abstenções e 113 ausências (estratégia do partido do governo para esvaziar a votação). Meses depois se articularia a saída permitida pelos militares e elites políticas e empresariais: eleição indireta via Colégio Eleitoral (Congresso Nacional) da chapa Tancredo Neves (líder conservador da oposição), presidente, e José Sarney (líder do partido do governo militar), vice-presidente. Como sabemos, o primeiro morreu de forma estranha e o presidente civil da redemocratização foi quem apoiou a Ditadura em altos cargos de mando (e que seguiu fiador dos governos democráticos seguintes).
A pluralidade da campanha “Diretas Já” era limitada pela anulação da radicalidade das lutas populares e o consenso se estabeleceu em torno do silêncio sobre os crimes e as estruturas violentas do passado (não se permitia, por exemplo, falar em responsabilização dos agentes de Estado e dos governantes generais).
Hoje, sob práticas genocidas de governo e com a ameaça e o incentivo explícitos para o golpe contra as formalidades e práticas de uma democracia liberal, não estamos saindo de uma Ditadura. Antes, vimos que o atual governo foi eleito sob tutela dos militares e com amplo apoio das elites econômicas e a simpatia declarada de partidos de direita, como a dos arrependidos tucanos. Na prévia da aliança da direita liberal com os arautos da Ditadura, se fez o golpe de verniz midiático judicial contra a democracia de baixa intensidade das últimas décadas.
As “forças democráticas” atuais têm outras contas a fazer. Trata-se de articular a melhor opção para cada uma delas chegar ao pleito presidencial de 2022. Não é unânime a necessidade de saída do presidente, ou se é melhor tê-lo como alvo. Ou ainda, como fazer para chegar a um segundo turno que não seja Lula versus Bolsonaro, sob o risco dos golpistas de ontem (2015-16) terem de engolir a volta do antigo desafeto. Também não se tem certeza se as saídas militarizadas não seriam melhores para grupos do Centrão e para grandes corporações do sistema financeiro e do agronegócio.
Não se trata aqui de ser contra as amplas alianças, as quais me parecem necessárias para colocar abaixo o vírus do fascismo instalado no corpo institucional da nação. Porém, pretendemos trazer à tona parte do que foi a experiência dos anos de transição controlada. Pois seja qual for o rumo que tomaremos enquanto país, certamente as forças políticas alinhadas ao neoliberalismo colonial brasileiro, “democráticas” ou não (falo dos que aceitam ou venham a aceitar a campanha “Fora Bolsonaro”), desejarão silenciar as lutas e os movimentos populares e manter a militarização da política em níveis “aceitáveis” para o modelo liberal de política. E sabemos que isso se dará sob o discurso do consenso, da paz, da reconciliação e da democracia.
No último dia 18 de agosto, Edson Teles foi o convidado do Entrevistas Jacobinas, da revista Jacobin em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, que foi ao ar no canal da editora Autonomia Literária. Teles comentou as teses presentes em seus livros O que resta da ditadura: a exceção brasileira (Boitempo) e Espectros da ditadura: da Comissão da Verdade ao bolsonarismo (Autonomia Literária), que organizou com Renan Quinalha.
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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade do n. 19 da revista Margem Esquerda. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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