Tática de motim e a construção do golpe
Abre-se uma ação tática que se movimenta pelas ameaças de ruptura que alimentam o real projeto de Bolsonaro e suas hordas neofascistas.
Por Milton Pinheiro.
A cena política brasileira encontra-se insoluvelmente convulsionada em virtude da condensação das mais diversas crises. Contudo, essas particularidades da convulsão têm na crise política a centralidade do fator mais explosivo da conjuntura em curso.
O governo de extrema direita do agitador fascista, Jair Bolsonaro, tem se movimentado de forma articulada para impulsionar não as premissas do que seria uma ação administrativa para governar, mas, pelo contrário, orienta-se por caminhos táticos, os mais diversos, que possam tornar possível a sua estratégia política. Para tanto, ele precisa de ações que organizem e deem sentido concreto ao seu ponto de chegada: o seu profundo desejo de estabelecer um projeto vitorioso de ruptura.
O exame apurado do governo nos permite avaliar que Bolsonaro constituiu uma razão operativa e age de forma paulatina para tornar esse projeto viável. Esse caminho tático tem oferecido trilhas para que ele se movimente a partir da lógica do caos controlado que opera o conjunto das intervenções administrativas, realize alterações no perfil funcional do Estado brasileiro através do golpe por dentro das instituições, controle – via Centrão – o Parlamento, desenvolva, como elã ideológico, um ataque sem trégua ao STF, exercite um determinado controle político do PGR, avance, a partir das relações com a burguesia monopolista, na destruição dos serviços públicos, tenha como agitação e propaganda uma pauta de comunicados obscurantistas que movimenta seu instrumental ideológico como eixo da inflexão para animar as hordas neofascistas do cercadinho da política e, o que é mais grave, constrói, com a participação de muitas hordas de extrema direita, uma articulação subterrânea neofascista dentro das Forças Armadas e nas PMs.
Esse cabedal que caracteriza a base ideológica de Bolsonaro é produto cultural e político dos impasses da transição política brasileira, em sua passagem da ditadura de 1964 para o retorno ao Estado da democracia formal. O aparato da repressão foi mantido em um novo arcabouço político. As contradições da lei da anistia, que premiou o terrorismo de Estado, tornaram-se o ponto de partida para a defesa do militarismo, para o elogio à tortura e para a ofensa aos torturados, exilados e mortos pelo regime de 1964.
Por outro lado, o país neste momento está dominado pela mais profunda crise econômica do século XXI. Apresenta um desemprego enorme que, adicionado a um quantitativo de desalentados, ultrapassa as 30 milhões de pessoas. A carestia, a fome, a parca oferta de atendimento social prestado pelo Estado, somadas à crise da covid-19, constituem de forma objetiva as portas abertas para a justa possiblidade de convulsão social, mas também para a aparição entre a população de propostas neofascistas.
Mesmo com essa iniquidade social esgarçando o tecido societário, as políticas econômicas do governo são voltadas para aumentar os lucros das diversas frações da burguesia que se locupletam a partir da sua posição no bloco do poder, transformando o Brasil em um balcão de oportunidades para agentes tóxicos que agem para se constituírem em novos bilionários.
Governo e Parlamento têm aprovado pautas regressivas em relação as questões trabalhistas, sociais e, agora, querem destruir – com a contrarreforma administrativa (PEC 32) – os serviços públicos e os direitos do funcionalismo dos três segmentos da república. A PEC 32, se aprovada, vai reintroduzir no Brasil o clientelismo político existente no começo do século XX. Além disso, abre-se a possibilidade do Estado se transformar numa carteira de negócios através da privatização de muitos dos seus serviços e do ataque sem limites ao fundo público.
A incapacidade deliberada do governo Bolsonaro de enfrentar a situação brasileira torna-se, portanto, uma crise construída, que se soma à pauta antinacional das privatizações, alimenta os privilégios dos militares enquanto burocracia de Estado a serviço do governo, reforça a política internacional de articulação com forças neofascistas, alavanca a pauta obscurantista e o sentido de ruptura, tudo isso, coloca em movimento o campo da extrema direita sob a liderança do agitador fascista, Jair Bolsonaro.
A crise da pandemia e a questão da vacina evidenciaram que, para além do Centrão no Parlamento, existe também um Centrão nas Forças Armadas que age movido por interesses nos ganhos que os negócios por dentro do Estado, através da corrupção, permitem. A respeito deste último, os estudos sobre o período da ditadura burgo-militar de 1964 confirmam o quanto a corrupção era ativa nas Forças Armadas. Contudo, com uma imprensa submissa ou censurada naquela época, a divulgação dessas ações sempre foi silenciada.
O Brasil se encontra numa conjuntura muito complexa, com elevado grau de risco diante das ameaças de ruptura institucional. O presidente ferido na batalha política em curso, com baixa popularidade e muitas denúncias sobre si e sua família, alardeia que não consegue governar em virtude das ações de controle/fiscalização do Supremo Tribunal Federal (STF) e do pacto federativo (ataques aos governadores). Abre-se, portanto, uma ação tática que se movimenta pelas ameaças de ruptura que alimentam o real projeto de Bolsonaro e suas hordas neofascistas.
A base social de Bolsonaro, sua vanguarda neofascista, o próprio presidente da República, segmentos palacianos das Forças Armadas, hordas neofascistas na reserva remunerada das FFAA, comandantes militares, um contingente expressivo dentro das PMs, empresários fascistas situados no agronegócio, a base parlamentar, os pregadores do comércio da fé (sejam eles neopentecostais ou católicos), artistas populares decadentes, tendo a presença indelével dos ativistas que operam no balcão da pequena política, têm naturalizado a narrativa da necessária ruptura institucional como forma de resolver os problemas do país…
Para além dessa perspectiva citada, age-se, também, para criar no senso comum a urgência da ruptura. A extrema direita e o presidente da República começaram a organizar procedimentos golpistas pela lógica do motim. E, para isso, localizaram o sentido cívico do 7 de setembro como arcabouço ideológico/midiático para essa possiblidade.
Está em curso uma grande articulação, com características subterrâneas e públicas, para criar a partir da presença do seu bloco de assalto nas ruas, no 7 de setembro, a inflexão necessária para operar a ruptura desejada pelo projeto de Bolsonaro.
A esse movimento de fratura no sistema da democracia formal, segmentos do Parlamento, setores do Judiciário, governadores e imprensa corporativa se movimentam para operar um pacto de convivência política. A questão chave a ser entendida é que essa mediação não interessa a Bolsonaro e ao seu bloco de assalto. O necessário freio de emergência não foi operado pelo Judiciário e o Parlamento, que seriam o impedimento do presidente.
Portanto, abriu-se uma bifurcação para a ação na cena política. Na trilha do motim, que pode se consolidar como golpe ou não, estão situadas forças poderosas da burocracia de Estado e do capital monopolista. Milhares de militares estão sendo dispensados do desfile das forças militares. Lideranças das Associações de PMs afirmam que em caso de crise institucional estarão cumprindo ordens do presidente. Existe uma sinalização de invasão em prédios públicos de outros poderes da república. A direita está chamando para o combate nas ruas.
Na outra possibilidade aberta pela bifurcação política, temos algumas questões e muitas fragilidades. Primeiro, existe uma parte importante da esquerda brasileira incapaz de examinar a realidade concreta em movimento, ao tempo em que age de forma dúbia por conta do processo eleitoral de 2022. Segundo, nessa mesma esquerda se manifesta, mas também em setores do campo da oposição ao governo, uma compreensão de que o Brasil tem uma institucionalidade sólida. Terceiro, grassa no senso comum uma visão de que não haverá golpe, mas, se houver, “o que isso tem a ver comigo?”.
Ainda no lado esquerdo dessa bifurcação política, presumo, encontra-se estacionada uma parcela significativa da estrutura sindical brasileira que se movimenta apenas por questões corporativas, mesmo assim, com baixa intensidade. Resta-nos, nessa célere conjuntura, alertarmos para o sinal de incêndio: o que fazer?
O motim articulado para o 7 de setembro pode configurar-se como golpe ou não, em sendo golpe qual seria a capacidade de Bolsonaro e seu bloco de assalto consolidarem um regime de exceção? Essas indagações estão no limiar dos acontecimentos. Sendo assim, o embrião da Frente Única de esquerda, proletária e popular têm que se movimentar de forma radical para enfrentar de frente para a história o que virá.
Na radicalidade da resposta, a esquerda e as organizações do campo proletário e popular, têm que avançar na convocatória para que suas bases compareçam às ruas no dia 7 de setembro. É importante que se possa construir a unidade de ação desse embrião da Frente Única, com a perspectiva de estar preparada para os enfrentamentos necessários. O desfecho político, aberto por essa bifurcação, só será positivo para o campo proletário e popular se a esquerda conseguir entender e se preparar para os diversos cenários que a luta de classes apontar.
Afinal, trilhar no sentido das ruas, propugnar pelo trabalho de base, construir a Frente Única, avançar na organização da greve geral como instrumento político nessa etapa da luta de classes, ao lado da luta pela reorganização da classe trabalhadora são instrumentos que se impõem para mudarmos a relação de forças e avançarmos no projeto do Poder Popular.
Às ruas, lá estará o futuro do Brasil.
Milton Pinheiro é Cientista Político e professor titular de história política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Pesquisador na USP, editor-geral da revista Novos Temas e autor/organizador de oito livros, entres eles, Ditadura: o que resta da transição (Boitempo, São Paulo, 2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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