Ruy Guerra: 90 anos

Vavy Pacheco Borges, autora da biografia "Ruy Guerra: paixão escancarada", escreve em homenagem aos 90 anos de um dos grandes nomes do Cinema Novo.

                                             Por Vavy Pacheco Borges.

Neste domingo, 22 de agosto de 2021, festejam-se os 90 nos desse convicto carioca nascido em Lourenço Marques (hoje Maputo, capital de Moçambique), cineasta, dramaturgo, escritor, poeta, letrista, ator e professor. A primeira homenagem que recebeu se deu durante o festival de documentários É Tudo Verdade, no qual foram exibidos alguns de seus documentários sobre o período da revolução moçambicana e outro sobre sua obra. Em entrevista, Ruy manifestou sua esperança de não morrer tão cedo: “pois quero mijar em cima da tumba desse presidente”. Durante a presidência anterior, não abria ou fechava qualquer fala pública sem um estrondoso “Fora Temer”. Nos anos recentes, Ruy tem escrito crônicas e artigos de oposição em jornais e blogs. Até a pandemia atual, participou de passeatas. Seu nome tem feito parte de inúmeros dos protestos políticos de sua classe.

Essa rebeldia vem de longe no tempo e no espaço, tendo o acompanhado por toda sua vida, ao longo da qual  ostentou um posicionamento político com P maiúsculo, embora nunca tenha sido membro de qualquer partido. 

Em seus primeiros anos moçambicanos se deu conta da opressão da ditadura colonial e do racismo intrinsecamente ligados, o que pautou seu percurso de vida e sua produção em diversos meios de expressão. Na família e no Liceu Salazar, escola pública que frequentou, Ruy recebeu uma educação luso-europeia. Ele e seus colegas foram educados por professores degredados de Portugal pela ditadura salazarista, algumas cabeças pensantes críticas que os faziam ler muito, o que acabou formando um certo número de rebeldes ao status quo. A via de expressão desses jovens, apelidados de “os revolucionários” ou “os intelectuais”, foi a cultura. Em entrevista, Ruy afirmou: “Alguns acabaram constituindo uma geração que, em sua maioria, deixou o país e se distinguiu no campo das artes, filosofia […] devido ao contexto político e social em que nascemos e fomos criados […] não por acaso ou por condições psicológicas individuais apenas”. Ruy foi chamado várias vezes para inquéritos pela polícia colonial, o que resultou em um processo movido pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) metropolitana que terminou somente muito depois, com ele já há anos no Brasil .

Em poesia, de meados dos anos 1970, revela-se: “Vivo sobre um corpo de mulher/Que faz de mim gato e sapato/que me foge e me desfolha/e brinca de gato e rato. Vivo sobre três continentes/e isso não me contém/A raiva que trago nos dentes/não sei se me faz mal ou bem. Vivo à sombra de um túnel/do outro lado do sol/e nesta clave difícil/me sustento num bemol”. Foi chamado por Serge Daney no Cahiers du Cinéma de “cineasta viajante”; Chico Buarque, na apresentação de livro de crônicas de Ruy escreveu: “nômade por que cineasta ou provavelmente vice-versa”. Frequentemente é apontado como cidadão do mundo por essa vivência e produção cultural em diversos países situados nos três continentes à beira do Atlântico. Levado por sua paixão por filmar, viajou por África, Europa e América com permanências de maior ou menor duração, mas escolheu o Brasil como seu país de adoção.  Em meados de 1990, passando alguns anos em Lisboa escreveu, em crônica para o jornal O Estado de São Paulo ter “certeza de ser alguém em trânsito”, o que lhe trazia angústias identitárias: era, e ao mesmo tempo não era, moçambicano, português e brasileiro. Nos anos em que ia frequentes vezes a Cuba, escreveu em sua agenda: “Sou brasileiro de trinta anos, quase metade de minha vida esquartejado em vários continentes e países, e me dou o direito de me sentir latino-americano, latino-africano, latino-português, todos com orgulho de quem viveu o sentimento da dor.” Concluía assim por uma sua “esquizofrênica latino-africanidade”. Em meados dos anos 1990, voltou a se fixar no Rio de Janeiro, onde vive até hoje. Gosta de se declarar “um cineasta brasileiro que nasceu em Moçambique”.

Realizou filmes nos seguintes países: Brasil (10 longas, 2 curtas, 2 vídeo-clips); França (1 longa, 1 média, 1 curta); Moçambique (1 longa, 1 série para TV, 3 curtas); Portugal (2 longas, 1 filme para TV, 1 curta); México (1 longa); Cuba (1 filme e uma minissérie para TV); e Argentina (parte final de um longa). Esse périplo por diferentes países deixou traços em sua produção.

De alguma forma, esteve dentro de grandes lances históricos do século XX. Durante suas duas primeiras décadas moçambicanas viveu sob a colonização lusitana autoritária e racista da ditadura salazarista; para lá voltou intermitentes vezes entre  1975/1985, participando da descolonização iniciada por meio da revolução nacional e socialista realizada pela Frente Nacional Libertadora (Frelimo) e que que alçou ao poder Samora Machel. Viveu sob a ditadura militar no Brasil, onde sofreu censuras e detenções. Na Cuba castrista, a partir de sua amizade com Gabriel Garcia Márquez  fez parte do grupo próximo a Fidel Castro, apesar de se posicionar em crônica contra a crítica à produção cinematográfica promovida por Fidel. Sua formação profissional se deu na Paris dos anos 1950, em meio aos primeiros barulhos da Nouvelle Vague e sua luta por um cinema de autor contra o cinema industrial. No Rio de Janeiro  dos anos 1960,  além de ser um dos pilares da produção do Cinema Novo, participou do nascimento da Musica Popular Brasileira (MPB) que se seguiu à Bossa-Nova. Criou mais de 100 letras para jovens nomes como Edu Lobo, Francis Hime, Chico Buarque, Carlos Lyra, Baden Powell, Milton Nascimento. Fez parte do surgimento do Nuevo Cinema Latino-Americano, circulando pelos países da América espanhola como México, Cuba, República Dominicana.

Muitas vezes classificado como cineasta político, Ruy orgulha-se dessa sua marca maior. Para ele, ser político tem um sentido amplo: é estar envolvido com as problemáticas de sua época – e assim se comportou nos diversos locais em que viveu. Para ele qualquer estética é política, dado que traz necessariamente embutida uma determinada visão de mundo ancorada em um conjunto de valores que apresenta, defende ou condena.  Aqueles que analisam seus filmes destacam sua espécie de obsessão pelas áreas de poder e pelos mecanismos repressivos, seja nas estruturas sociais,  no governo ou no ambiente familiar.

Esse é o animal político Ruy Alexandre Guerra Coelho Pereira, que desmente em sua vida e produção artística o dito popular que afirma que todo mundo é incendiário na juventude e bombeiro na maturidade


Confira Ruy Guerra: paixão escancarada, biografia de autoria de Vavy Pacheco Borges, com texto de orelha de Sérgio Miceli e quarta-capa de Cacá Diegues.

No livro, a autora entrelaça as vicissitudes do percurso pessoal de Ruy Guerra às convulsões da conjuntura cinematográfica, cultural e política, em âmbito nacional e transnacional. Recupera o romance familiar, a iniciação no métier, os óbices na travessia e, assim, esboça um retrato confrontado a seus pares em sucessivas etapas: no ambiente acanhado da intelectualidade moçambicana; na turma de estudantes de cinema em Paris; na competição vibrante com colegas de geração já no Brasil. A força do relato deriva do garimpo de materiais pungentes em momentos de transe de uma vida tripartite.

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Vavy Pacheco Borges é historiadora, biógrafa e professora. Escreveu, entre outros títulos, Getúlio Vargas e a oligarquia paulista (1979), Tenentismo e Revolução Brasileira (1992), O que é História (1980), Memória Paulista (1997) e, pela Boitempo, Ruy Guerra: paixão escancarada (2017).

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