Capitalismo catastrófico e miséria brasileira
Temos o privilégio de viver o século XXI na sua dimensão catastrófica. Enfim, no nosso caso, explicita-se de modo candente e exacerbado na conjunção entre o historicamente arcaico (a "miséria brasileira"); e o historicamente novo (o sociometabolismo da barbárie ou a barbárie social). As misérias históricas do passado se mesclam com as misérias históricas do presente do capitalismo global como fase de crise de civilização do capital.
Por Giovanni Alves.
Este texto faz parte de uma série sobre a catástrofe brasileira.
“Obrigado, Cacá Diegues: Bye-bye, Brasil”
Francisco de Oliveira, Brasil: uma biografia não autorizada
Em um de seus últimos escritos, publicado no livro Brasil: uma biografia não autorizada, o sociólogo Francisco de Oliveira (1933-2019) conclui seu breve balanço do Brasil fazendo referência, de modo provocativo, ao escritor Stefan Zweig (1881-1942), autor de Brasil, país do futuro (1941) e ao cineasta Cacá Diegues, diretor do filme Bye Bye, Brazil (1980), marco histórico da crise da dívida externa, “ponto de queda” irremediável do modelo nacional-desenvolvimentista brasileiro. Chico de Oliveira conclui seu texto amargurado (e cético) com respeito ao futuro do Brasil como nação: “Como na longa trajetória em companhia do capitalismo, o liberalismo retirou da façanha em retirar da política, seu caráter agonístico, de decisão, nos termos de Carl Schmitt. Na periferia, o neoliberalismo completou o círculo: a política se tornou irrelevante, uma ‘conversa sem fim’” (Brasil: uma biografia não autorizada, p.78).
Um dos maiores interpretes do Brasil conclui, assim, de modo contundente e deveras pessimista, a odisseia trágica do projeto civilizatório burguês no Brasil. A lucidez e perspicácia crítica do velho Chico contrastam com o otimismo à la Candido (de Voltaire) de parte expressiva da intelectualidade de esquerda que nutre a esperança na “conversa sem fim” da política organizada pelo putrefato Estado burguês no Brasil.
Francisco de Oliveira fez parte da geração de intelectuais que refletiram a civilização brasileira e seu projeto desenvolvimentista. Da mesma verve de Celso Furtado, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, ou ainda Milton Santos, Paulo Freire e Maria da Conceição Tavares, entre outros, Chico de Oliveira descreveu no seu livro Brasil: uma biografia não-autorizada, a ascensão e queda da civilização burguesa no Brasil. Não se trata de uma “chave conjuntural”; ou ainda da espera de “uma política capaz de transformar a pobreza em classe”, como indicam Ruy Braga e Fabio Mascaro Querido, autores da apresentação do livro. A desilusão de Chico de Oliveira com a política é radical e irremediável, pois ele percebe – pelo menos desde o começo da década de 2000 – que, com o capitalismo globalizado, erodiu-se a possibilidade da nação como comunidade política.
Como iremos tratar neste artigo, adentramos no registro da barbárie social, exponencialmente perceptível com a profunda recessão do capitalismo brasileiro e o golpe de 2016. Temos refletido – pelo menos desde 2016, sobre o afundamento do Brasil, caracterizado como sendo um processo catastrófico. Nos encontramos hoje em 2021, o Ano V da catástrofe brasileira. Do golpe de 2016 a Temer; de Michel Temer à prisão de Lula; e da prisão de Lula a Bolsonaro, somando-se a isso, a irrupção da pandemia do novo coronavírus em 2020, assistimos perplexos há anos o apodrecimento do Estado brasileiro e a lumpenização do mundo do trabalho no Brasil. A falência irremediável da civilização burguesa no Brasil tem um nome – e não é neoliberalismo, a mera epiderme da aparência trágica. Ela diz respeito ao capitalismo globalizado e seu novo registro sociometabólico. É disso que se trata a catástrofe brasileira.
Entretanto, diz o ditado popular: “A esperança é a última que morre”; ou ainda, “Brasileiro, profissão esperança” (de 1973), título de um dos musicais de maior sucesso no Brasil (com Clara Nunes e Paulo Gracindo). No Brasil de hoje, poucos intelectuais (ou pesquisadores e professores universitários) têm a dimensão da catástrofe – e não apenas isso, poucos têm uma teoria da catástrofe brasileira cujas raízes dizem respeito à “miséria brasileira” nas condições do capitalismo globalizado. A “miséria brasileira” é de longa data. Ela não se originou com o “capitalismo globalizado” (ou mesmo, com o neoliberalismo vociferante há décadas). De forma catastrófica, ela subiu à tona. A “miséria brasileira” não se reduz apenas ao travo politicista atávico da política brasileira (como pensava o filosófo José Chasin) – incluindo a esquerda. É claro que o politicismo (e a politicagem) é o lado miserável da politicidade no Brasil. Mas a “miséria brasileira” se expõe hoje – mais do que nunca – como traço político-social e espiritual; ou aquilo que Francisco de Oliveira pretendia tratar mais longamente como sendo o “caráter brasileiro”, mas não conseguiu. Deixou-nos um provocante (e criativo) artigo intitulado “Jeitinho e Jeitão” (2012). A miséria brasileira diz respeito a particularidades seculares da formação moral das classes sociais (o “jeitão” da classe dominante e o “jeitinho” do povo brasileiro). É aquilo que Hegel intitulou Sittlichkeit: “um termo em movimento, uma expressão do movimento na qual se conciliam à moral individual no que ela tem de subjetivo, até mesmo de único, e o comportamento objetivo dos membros de uma sociedade regida por um direito e tradições, e governada por um Estado”, como afirmaram Jean-Pierre Lefebvre e Pierre Macherey em Hegel e a sociedade.
A Sittlichkeit ou moralidade oriunda de um capitalismo atrófico, (de)formou os sentidos do moderno no Brasil. O “jeitão” golpista, autocrático e corrupto da classe dominante e seus agregados; e o “jeitinho” das classes subalternas (pobres crédulos, esperançosos, machista-românticos, moralmente hipócritas – católicos e evangélicos). Enfim, como no filme (e romance) Dona Flor e seus maridos, de Bruno Barreto (1976), uma mistura de Vadinho, um boêmio, jogador e alcoólatra que morre subitamente em pleno carnaval de rua, vestido de baiana; e Teodoro, um farmacêutico pacato e religioso. Tanto a ditadura militar, quanto a Nova República, reforçaram o “jeitão” e o “jeitinho” brasileiro. Hoje, a “miséria brasileira” sobe à tona e, mais do que nunca, nos faz pensar: erámos infelizes e não sabíamos.
É curioso que esquerda e direita, nos quase trinta anos de “Nova República”, projetaram no imaginário intelectual-politico da nação a ideia de que nos tornamos um Estado democrático de direito. Como disse a Presidenta Dilma Rousseff, em 2009, a democracia está consolidada no Brasil. É difícil imaginar que nós, intelectuais ilustrados, professores e pesquisadores doutores, ainda acreditamos que pode existir democracia no capitalismo globalizado da periferia. E pior: acreditar no século XXI que o capitalismo globalizado possa ser humanizado com uma regulação estatal.
Enfim, a crise brasileira que se expõe como catástrofe há cinco anos é a falência irremediável do capitalismo na periferia e não se resolve – como nos alertou o velho Chico – com politicismo que impregna hoje – mais do que nunca – a esquerda brasileira. Na verdade, o politicismo, aquilo que Chico identificou como “conversa sem fim”, apodreceu no Brasil como politicagem; e hoje, o que todos fazem no espectro da política institucional é simplesmente, politicagem, como sendo a degradação exponencial da “grande política” que há tempos tinha sido convertida na “pequena política” (como acusava o saudoso Carlos Nelson Coutinho).
A crise brasileira que se iniciou – pelo menos – com o golpe de 2016 e que culmina com o grotesco governo Bolsonaro (Michel Temer e a Operação Lava Jato, com Sérgio Moro, lembram?), pariu Bolsonaro. Mas o coiso é apenas a representação contingente do apodrecimento do Estado burguês-oligárquico no Brasil, um cadáver insepulto pois falta povo para sepultá-lo.
Existem processos profundos do sociometabolismo do capital, em operação há trinta anos de globalismo neoliberal no Brasil, que precisam ser refletidos e criticados (expostos categorialmente) e não apenas descritos empiricamente (como fazem os sociólogos acadêmicos). Bolsonaro não foi um mero acidente da política, mas expressão suprema de profundas mudanças sociometabólicas na burguesia brasileira e nas classes subalternas (o novo e precário mundo do trabalho), expondo em full HD o declínio histórico da civilização burguesa no Brasil.
O Brasil é uma província do capitalismo global, mas não uma província como outra qualquer: ele expressa de modo típico extremo, as misérias do capitalismo global tal como elas se manifestam nas formações históricas periféricas de “via colonial”. Imaginamos que com a Nova República (a Constituição de 1988 e a redemocratização do Brasil), a discussão sobre a forma de entificação do capitalismo brasileiro teria ficado anacrônica. Pelo contrário, mais do que nunca, o capitalismo globalizado e sua crise na década de 2010 expôs ad nausean a “miséria brasileira”.
Para além do politicismo, com o golpe de 2015 – e diria que a partir de 2013 – subiram à tona, sob o acirramento da manipulação operada pelas redes sociais, os sentimentos e os afetos mais profundos da alma brasileira. O golpe de 2016, tal como o de 1964, foi uma operação complexa das “forças vivas” da nação. Mobilizado pela direita rediviva nos movimentos de rua e nas redes sociais (pela primeira vez, a direita “sai do armário”, não precisando da alcunha de “centro”); pelo Congresso Nacional “eleito pelo povo” (em 2014); pelo Supremo Tribunal Federal, guardiões da Justiça e da Constituição; e pelas grandes redes de TV e rádio, jornais e fake news. Enfim, expôs-se à luz do dia, o Brasil da ordem político-oligárquica, o Brasil da estupidez e da aberração cognitiva da classe média. Enfim, o Brasil da ignorância popular, verdadeiro (e bem-sucedido) projeto de dominação da classe dominante brasileira. Com o debacle da Nova República, percebemos que éramos infelizes e não sabíamos.
O período do lulismo nos iludiu, acreditando que a democracia estava consolidada no Brasil, que caminhávamos a passos largos para um capitalismo mais humano e inclusivo – como até hoje intelectuais de esquerda liberal (que não aprendem com a história), acreditam no capitalismo “do bem”. Mas o capitalismo globalizado frustrou o sonho dourado do país do futuro, hoje – sem futuro. A crise estrutural do capital no século XXI; a explosão das contradições sociais acumuladas por décadas; o movimento nos bastidores da burguesia rentista-parasitária, os senhores da Casa Grande da Colônia exportadora de commodities – enfim, decidiram encerrar a “festa da cidadania” e a criar as condições para um novo patamar de acumulação do capital na periferia do capitalismo globalizado – sob a aparência do Estado democrático de direito. A rigor, desde 2016, vivemos num “Estado de exceção”. Foi uma excepcionalidade jurídico-legal o impeachment de Dilma e a prisão de Lula pela Operação Lava-Jato. A “normalidade” no Brasil é a exceção (durante a ditadura militar, Congresso e Judiciário – tal como a mídia – funcionavam “normalmente”).
O grande projeto nacional da classe dominante brasileira é a “produção da ignorância cultural”. É sobre ela que se reproduzem a dominação política e a superexploração da força de trabalho, traço estrutural da precariedade cronicamente estrutural do Brasil. No Brasil da catástrofe, o que se destaca como traço da nova “normalidade burguesa” é, por um lado, a desindustrialização e a ampliação do setor de comércio e serviços metropolitanos, historicamente caracterizados pela baixa produtividade, remunerações miseráveis e incipiente organização sindical; e por outro, a disseminação da “uberização”, a nova precariedade salarial e o novo modo de manifestação da superexploração da força de trabalho. No alvorecer da Quarta Revolução Industrial, o mundo do trabalho urbano no Brasil foi dessubstancializado na sua capacidade de produzir riqueza.
Fica a pergunta: qual o metabolismo social num país de “uberizados” – ou melhor, um país de trabalhadores informais (o trabalho informal, quer dizer, sem formas)? Como dar forma àquilo que não tem forma? Falta a dialética do senhor e do escravo, pois o escravo imagina-se senhor. Mesmo que não se auto-represente como empreendedor, a quem os ditos “uberizados” se opõem? Como operar a clássica “negação da negação” para aqueles cuja negação “não tem sentido”? Fica a canção tema do filme Dona Flor e seus dois maridos (“o que será que será, o que não tem governo, nem nunca terá […] o que não tem juízo”). Enfim, a promessa frustrada de civilização salarial no Brasil continha em si, a perspectiva de um mundo do trabalho formal, com forma, organizado e sujeito de direitos, capaz de negociação coletiva. Mas, bye bye Brasil. Hoje, a categoria de entregadores e motoristas de aplicativos representam a maior categoria de “assalariados” no Brasil – ditos “trabalhadores por conta própria” (em 2019, mais de 4 milhões eram trabalhadores da Uber e do Ifood). Ao utilizarmos a palavra “assalariados” para “trabalhadores autônomos” e “trabalhadores por conta própria” expomos categorialmente, a subalternidade estrutural que funda o trabalho sem forma dos supostamente “autônomos” e “por conta própria”. Repõem-se mais uma vez, o que tem caracterizado a modernidade grotesca à brasileira: o regime historicamente “de exceção” da forma salarial. No século XIX, o Brasil foi o país em que existiram liberais escravistas e negros monarquistas. No século XXI, percebe-se que, mais uma vez, o moderno se reproduz por meio do arcaico. Enfim, adentramos na modernidade, explorando o trabalho escravo para fornecer commodities às metrópoles capitalistas.
No Brasil, a dialética manifesta-se à “flor da pele”. No país da ordem e do progresso, a dialética é como o mico leão-dourado. O que se expõe com vigor, com o desmanche da modernidade “meia-boca”, é aquilo que temos denominado depois de István Meszáros de “sociometabolismo da barbárie”. Enfim, dialeticamente, somos o país do futuro. O futuro (da civilização do capital) já chegou – e está entre nós: Bolsonaro, colapso ambiental e “uberização” do trabalho, trabalho sem forma, informal e informacional à la Indústria 4.0 característica do modo de ser do capitalismo global em sua fase senil, incorporada pelo Brasil. Temos o privilégio de viver o século XXI na sua dimensão catastrófica. Enfim, no nosso caso, explicita-se de modo candente e exacerbado na conjunção entre o historicamente arcaico (a “miséria brasileira”); e o historicamente novo (o sociometabolismo da barbárie ou a barbárie social). As misérias históricas do passado se mesclam com as misérias históricas do presente do capitalismo global como fase de crise de civilização do capital.
É importante resgatar o movimento da temporalidade histórica de longo prazo. A primeira grande recessão do pós-guerra, em 1973, inaugurou o período histórico de crise estrutural do sistema do capital, caracterizado pelo declínio histórico da taxa de lucro no plano global e pela sobreacumulação de capital e intensificação da concorrência internacional. A vigência do capitalismo global – contraditoriamente – representa a longa era de declínio histórico do capitalismo como sistema mundial; ou ainda, o fim da sua ascensão histórica no Ocidente. É com o capitalismo global que o sistema do capital expõe seu declínio histórico (e muitos imaginam que o problema seja só o neoliberalismo).
Continua na próxima coluna da série.
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo, 2000) e Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo, 2011). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.
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