Borba Gato e as classes dominantes
Nenhuma cidade destrói tão bem a memória dos trabalhadores quanto São Paulo, “locomotiva do Brasil”, que puxa os demais vagões para o inferno. Aqui, entretanto, é um dos pontos chave em que se pode sabotar toda a malha de violências exercidas contra a população brasileira.
Por Lincoln Secco.
O caso Borba Gato foi analisado sob diversos ângulos: o valor estético da obra, seu pertencimento ao bairro, o significado histórico, a violência (ou não) envolvida na queima da estátua, o acerto (ou erro) político em queimá-la, equívocos (in)voluntários na preparação dos detalhes operacionais etc. Houve até quem, no campo progressista, resgatasse formas da estética popular nordestina que estariam presentes no monumento.
O que ainda não perguntamos é: qual o significado de um monumento para as classes dominantes hoje? A ideia de que elas constroem uma memória que busca foros de universalidade através da escolha de preservação ou esquecimento de um determinado patrimônio ainda é válida?
Em São Paulo, as chamadas classes conservadoras procuraram criar uma infraestrutura intelectual para difundir uma versão do seu papel na História do Brasil. A Primeira República foi pródiga na constituição de uma ideologia que se materializou em mapas, livros didáticos, escolas públicas, bibliotecas, monumentos. Seu zênite foi a guerra civil de 1932, em que a imagem do paulista como líder da nação e portador do progresso foi massificada.
Mas o momento de 1932 foi o zênite e também o início do declínio. Hoje, as classes dominantes não têm nenhum interesse na formulação de uma ideologia nacional e, portanto, na constituição de qualquer memória compartilhada. A recuperação fascista do passado é falsa, como sabemos, destituída do vigor de um projeto.
A dominação no Brasil sempre prescindiu do consenso dos governados. Mesmo para aquelas classes conservadoras da Primeira República, a questão social era só um caso de polícia. Aqueles laivos de preocupação intelectual estavam deslocados de sua prática dominante, marcada pelo uso do Estado apenas para fins próprios. O seu liberalismo pragmático não admitia sequer as primeiras e tímidas reformas do Governo Provisório de 1930 na questão trabalhista. Foi preciso uma guerra para convencê-las. Ainda assim, elas transformaram o combate militar num exercício de demonstração de força para moderar o novo regime. Como já afirmei antes, São Paulo é o verdadeiro poder moderador da república brasileira. A cada tentativa de reforma popular, lá estarão as elites paulistas e as aliadas para limitar e, se possível, derrotar qualquer governo que não lhes interesse.
A hegemonia paulista foi seletiva e exercida sobre outras classes privilegiadas regionais. Para os trabalhadores sobrou a coerção. Não é por outra razão que, apesar de alguns momentos de monumentalização de seu passado, as classes dominantes no Brasil persistem na prática do esbulho colonial e enxergam o país como mero território onde labutam pessoas que não têm nada em comum com elas, especialmente a cor da pele. Isso explica a destruição do Museu Nacional, da cinemateca, da escola pública, igrejas coloniais e abandono de seus próprios monumentos. E em São Paulo a derrubada constante de prédios históricos para criar casas comerciais como as da Havan ou templos neopentecostais.
O fogo na estátua foi a primeira ação que transformou a estátua de Borba Gato em algo significativo e propiciou debate sobre sua figura histórica. Ele esteve abandonado e espremido entre corredores de ônibus e maculado pela poluição. Galo devolveu a ele seu passado de exterminador dos oprimidos. E a partir disso, colocou mais um tijolo na construção dos movimentos populares. Ele situou naquele lugar uma escultura social. Uma classe em luta não materializa uma ideologia em monumentos, ela não porta outra ideologia e critica a todo o momento suas própria ações passadas. Ela erige uma memória de lutas, tenta preservar seus documentos e seus espaços de organização. Mas eles não são monumentos contemplativos e sim lugares de pertencimento e participação.
A burguesia destrói ou se apropria dos espaços da classe trabalhadora o tempo todo. Ao transformar, por exemplo, a estação Júlio Prestes, antes frequentada por todos, num lugar exclusivo de sua sociabilidade, ressignifica aquele patrimônio. Quando há mais de um século houve a demolição da Igreja de Nossa Senhora dos Homens Pretos de São Paulo para construir um banco (monumento ao deus Mamon), os interessados justificaram-na com a “feiura” do templo religioso. Galo pode dizer aos seus algozes que Borba Gato não é particularmente belo…
Nenhuma cidade destrói tão bem a memória dos trabalhadores quanto São Paulo, “locomotiva do Brasil”, que puxa os demais vagões para o inferno. Aqui, entretanto, é um dos pontos chave em que se pode sabotar toda a malha de violências exercidas contra a população brasileira.
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Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. É organizador, com Luiz Bernardo Pericás, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, e um dos autores do livro de intervenção da Boitempo inspirado em Junho Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colabora esporadicamente para o Blog da Boitempo.
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