Ode de amor a Cuba

"Nós, que amamos Cuba e seu povo, esperamos que sigam na rota da emancipação e do futuro"

Por Mauro Iasi.

“A desencanto, opóngase deseo.
Superen el erre de revolución.
Restauren lo decrépto que veo
Pero déjanme el brazo de Maceo
Y, para conducirlo, su razón.”
Silvio Rodriguez

Minha geração aprendeu a amar Cuba por um motivo muito simples. Para nós, Cuba representa a consciência da possibilidade de vitória, como dizia Che Guevara. Nosso comandante afirmava que, uma vez dadas as condições objetivas (a miséria, a fome, o latifúndio e o domínio imperialista), faltavam em nosso continente as chamadas “condições subjetivas” e, entre elas, “a mais importante, que é a consciência da possibilidade de vitória através da violência contra os poderes imperialistas e seus aliados internos” (GUEVARA, 1981, p.47). O domínio sobre nossos povos se reveste na forma da impossibilidade contra classes economicamente poderosas, que controlam as formas políticas e meios militares de aniquilação, de maneira que a ação dos revolucionários que impõe derrotas a este inimigo tão poderoso acaba por abrir a possibilidade da consciência de que podemos enfrentá-los e, em certas condições, vencê-los.

Nosso continente, que sofreu sempre de massacres diários e derrotas sangrentas, viu como um alento de esperança jovens alçando a bandeira da dignidade e da rebelião. Catarticamente, vivemos essa vitória como nossa. A corajosa e improvável vitória dos revolucionários cubanos contra a brutal ditadura de Batista e os interesses imperialistas com todo seu enorme poder. Como costuma acontecer, vivemos esse primeiro momento com paixão e, como nas paixões, idealizamos o ser amado, potencializando seus traços positivos e relativizando aquilo que não nos agrada. Para nós, a Revolução Cubana era fruto de uma enorme ousadia e coragem, mas desconhecíamos as condições que permitiram a essa ousadia se efetivar como vitória revolucionária. Para muitos desta geração, bastava ter vontade, deixar crescer as barbas e subir em direção à serra mais próxima para dirigir as massas até a vitória.

Desconhecíamos o sacrifício e o empenho na organização do Movimento 26 de julho, a resistência nas cidades e a luta clandestina, tudo se ofuscava diante da imagem luminosa do guerrilheiro heroico que descia dos montes para castigar os poderosos e libertar os oprimidos. Por isso, conhecemos e admiramos primeiro a Fidel, Che, Camilo, mas muitas vezes desconhecíamos por completo a importância de Frank País García, Célia Sanches e Vilma Espín. Assim como se exaltava Antônio Maceo, general da primeira guerra de independência de Cuba, mas se esquecia da mulher corajosa que lutou e criou seus filhos, incluindo Maceo, para lutar pela liberdade, a companheira Mariana Grajales Cuello, que depois emprestou seu nome para o batalhão de mulheres que lutaram na guerrilha, as chamadas “Marianas”.

Da mesma maneira, idealizamos os métodos e estratégias de luta, esquematizados grosseiramente na teoria dos focos guerrilheiros e da luta armada sem o necessário conhecimento das condições de seu desenvolvimento e complexidade de sua operação. As aparências enganam aos que odeiam e aos que amam, já dizia o poeta, e desta maneira os inimigos de Cuba a atacaram transformando-a em uma caricatura de terror e desumanidade, centro do chamado “perigo vermelho” no continente americano e inimiga da liberdade. Nós, que amamos Cuba, corremos o risco de transformá-la em uma caricatura da mesma forma, como uma espécie de paraíso de princípios e virtude. Sabemos que o anticomunismo se funda em mentiras e manipulações grosseiras e nosso amor, em grande medida, em fatos. No entanto, devemos compreender que a Revolução Cubana é bela não por não apresentar contradições e erros, mas pela forma como os enfrenta e busca superá-los. Acredito mesmo que é ainda mais bela por causa disso do que pela idealização abstrata de um processo revolucionário imaculado.

Foi assim nas diversas tentativas de buscar um caminho próprio para o desenvolvimento econômico na ilha revolucionária, primeiro diminuindo a dependência da produção açucareira, seguido das tentativas de industrialização e depois a volta à produção de açúcar e a busca da safra recorde. Foi diante do fracasso dessa última e das consequências para a população que Fidel, dirigindo-se diretamente às massas, fez um de seus mais  emocionantes discursos, uma autocrítica profunda e pública. Foi também este espírito que levou Che, como ministro da economia, a defender o que se chamou de economia “pressupostária”, criando um único sistema integrado de empresas estatais que não utilizariam em suas trocas o dinheiro como equivalência, assim como sua convicção de que não se poderia desenvolver a economia socialista com os meios legados pela ordem do capital.

Cuba buscou seu caminho e, muitas vezes, errou nesta busca. Na fala que marca a fundação do Partido Comunista de Cuba, em 1965, dirigindo-se aos seus camaradas que naquele momento se envolviam acaloradamente na disputa sobre os caminhos da revolução e os modelos (soviético, chinês, etc.) que deveriam seguir, Fidel alerta que:

A diversidade das situações conduzirá inevitavelmente a uma infinidade de interpretações. Aqueles que derem interpretações corretas poderão dizer-se revolucionários; aqueles que derem interpretações exatas e que as apliquem de uma forma consequente triunfarão; aqueles que se iludam ou não se mostrem consequentes com o pensamento revolucionário fracassarão, serão substituídos e suplantados, porque o marxismo não é uma propriedade privada, inscrita em qualquer registro fundiário – é a doutrina dos revolucionários, escrita por revolucionários, desenvolvida por outros revolucionários, apenas para revolucionários.

No mesmo sentido, os revolucionários cubanos lutaram contra desvios políticos. No momento da distribuição de casas e apartamentos na reforma urbana, alguns dirigentes escolhiam para si as melhores moradias. Che não apenas os fez devolver como pediu que se imprimisse na carteirinha partidária os seguintes dizeres: o comunista é o primeiro a morrer e o último a comer. Deve ser o primeiro a se oferecer para as atividades mais difíceis e o último a recolher seus benefícios. Certa vez, discutindo com os CDRs (Comitês de Defesa da Revolução) sobre o sectarismo, avaliava que a violência revolucionária, necessária no auge da luta, corria o risco de se tornar o caminho de acerto de contas e autoritarismos de alguns dirigentes. Em suas palavras, “a forma de resolver problemas concretos estava sujeita ao livre arbítrio de cada um dos dirigentes”. Quando tratava desses desvios, afirmava que era uma ilusão imaginar que eles acontecessem sem que o povo soubesse. Para enfatizar seu ponto de vista sobre as tarefas de defesa da revolução, nosso comandante afirmou no mesmo texto, a respeito de contra quem se luta para defender a revolução:

Contrarrevolucionário é aquele que luta contra a revolução, mas também é aquele senhor que, valendo-se de sua influência, consegue uma casa, consegue depois dois carros, viola o racionamento e obtém depois tudo o que o povo não tem; pode ostentar seu bem ou não, mas de qualquer maneira ele o possui. Este é um contra revolucionário, esse sim tem que ser denunciado imediatamente; aquele que utiliza de influências boas ou ruins em proveito pessoal ou no de seus amigos, é contra revolucionário e tem que ser perseguido com raiva, perseguido e aniquilado. (GUEVARA, 1981, p. 157)

Na década de 1980, em pleno período da chamada “retificação”, um jornal da Juventude Rebelde inaugurou um suplemento exclusivamente destinado a charges, que abriu uma campanha contra o que denominava de “humor de redundância”, isto é, os batidos desenhos de um guerrilheiro chutando a bunda do Tio Sam ou qualquer coisa parecida. No lugar, aparecia um humor crítico, como o verdadeiro humor deve ser, apontando desvios e erros na construção da ilha socialista, práticas e desvios que denominavam de “sociolismo” (referente ao privilégio que depende de quem você conhece). Em um desses desenhos, há um funcionário em sua escrivaninha cheia de papeis e carimbos e uma goteira que cai bem no meio de sua mesa. O funcionário diz: “és malo, pero ven de arriba!”. Em outra charge, vê-se uma sala repleta de produtos importados: whisky americano, TV e vídeo cassete, aparelhos de som. Na porta ao fundo da sala há uma mulher lavando os pratos na cozinha e um homem, sentado em uma poltrona com um boné do Mickey Mouse, lendo um livro de Marx de cabeça para baixo.

Vejam, não deixei de amar Cuba por isso, muito pelo contrário, amei ainda mais. Gente muito parecida com a gente, cheia de problemas e contradições, que sabe rir de suas mazelas, mas também um povo com uma dignidade e firmeza que não vi em nenhuma outra parte.

Cuba tem muitos e enormes problemas, não qualquer problema, mas daquele tipo que acaba chegando até a vida cotidiana e imediata das pessoas, carências naquilo que é básico. A lista dos méritos da Revolução Cubana é conhecida e reconhecida mesmo por adversários (na saúde, na educação, na cultura, na ciência e em muitas áreas), mas não devemos esquecer que Cuba é um país pobre e com poucos recursos, agravado por um criminoso bloqueio imposto pela maior potência econômica e militar do planeta. É verdade, mas também é verdade que o bloqueio não produz apenas desvios econômicos, mas também políticos e éticos. Pequenas ou grandes injustiças e insatisfações que, vez por outra, afloram como agora.

O imperialismo está sempre pronto para tentar provocar e manipular os descontentamentos na esperança sempre presente de varrer do mapa a má influência da Revolução Cubana. Faz isso através do bloqueio e de uma variada gama de sabotagens que conhecemos: financiando largamente grupos contrarrevolucionários, sabotagem, atentados, manipulação de informação e contrapropaganda. A pergunta é: por que, diferente de outras sociedades, Cuba persiste e segue seu caminho?

Não creio que o imperialismo compreenda verdadeiramente este fenômeno, pois toda ideologia implica em um autoengano. Eles estão convencidos de sua própria caricatura. Para eles, trata-se de uma ditadura brutal e cruel que se mantém só pela força e repressão, portanto não conseguem entender que em meio a tantas dificuldades ainda exista um povo digno e rebelde, que defende a Revolução e persiste. Lamentavelmente, alguns companheiros equivocados partilham da mesma caricatura, ainda que com esperanças distintas.

Nosso autoengano pode ser acreditar que este sentimento e esta persistência podem seguir se não forem alimentados de forma justa e adequada, que é eterno porque corresponde à alguma natureza ou essência inalterável, o que sabemos não é verdade. Nunca devemos esquecer, dizia ainda Che Guevara, “para fazer uma autocrítica sadia, que a direção econômica da revolução é responsável pela maior parte dos males burocráticos”, que o sucesso ou fracasso dos caminhos econômicos escolhidos são sentidos pela população e essa reage. A transição socialista é a difícil jornada que nos leva da velha sociedade até o comunismo. Nessa transição, também afirmava Che, “a velha sociedade pesa e seus conceitos pesam constantemente na consciência dos homens”. Podemos e devemos esperar, daqueles que constituem uma vanguarda revolucionária, que enfrentem altivamente as dificuldades, mas é ilusão descabida exigir das massas que não reajam a privações. As contradições econômicas e seus efeitos nas massas não derivam apenas de ideias e valores da velha ordem não superados, mas da objetividade da transição.

Che sabia muito bem disso. Dizia nosso comandante:

A nova sociedade em formação deve competir muito duramente com o passado. Isto se faz sentir não apenas na consciência individual, na qual pesam resíduos de uma educação sistematicamente orientada para o isolamento do indivíduo, mas também pelo próprio caráter desse período de transição, onde permanecem as relações mercantis. A mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista; enquanto existir, seus efeitos se farão na organização da produção e, em consequência, na consciência. (GUEVARA, 1981, p. 179)

Algo se plantou nestes anos de transição em Cuba, algo que se expressa em sua contraditoriedade como uma nova consciência em construção, mas como toda forma de consciência está irremediavelmente presa à objetividade da qual emana. Tal objetividade é a base material tanto para o avanço da consciência como para determinar seus limites. Como sempre, o resultado depende da luta de classes. Nós, que amamos Cuba e seu povo, esperamos que sigam na rota da emancipação e do futuro, mas a história pode impor derrotas. Diante dos riscos de recuo, respondemos como o mestre Sílvio Rodriguez:

Me vienen a convidar a arrepentirme
Me vienen a convidar a que no pierda
Me vienen a convidar a indefinirme
Me vienen a convidar a tanta mierda

(…)

Dirán que paso de moda la locura
Dirán que la gente es mala y no merece
Mas, yo partiré soñando travesuras
Acaso multiplicar panes y peces

(…)

Dicen que me arrastraran por sobre rocas
Cuando la revolución se venga abajo
Que machacarán mis manos y mi boca
Que me arrancarán los ojos y el badajo

(…)

Yo no sé lo que es el destino
Caminando fui lo que fui
Allá Dios que será divino
Yo me muero como viví
Yo me muero como viví
Yo me muero como viví

Leituras para aprofundar a reflexão:

Che Guevara e o debate econômico em Cuba, de Luiz Bernardo Pericás

Fidel Castro: biografia a duas vozes, de Ignacio Ramonet
Água por todos os lados, de Leonardo Padura
Margem Esquerda#2, com dossiê temático cobre a Revolução Cubana
Margem Esquerda #20, com entrevista exclusiva com um dos mais importantes intelectuais cubanos da atualidade, Fernando Martínez Heredia

Aqui no Blog da Boitempo:
As manifestações em Cuba, por Luiz Bernardo Pericás
Cuba e o coronavírus, por Luiz Bernardo Pericás
Che: economia e revolução, por Luiz Bernardo Pericás
Fidel Castro e a questão ambiental, por Luiz Bernardo Pericás
O Fidel que conheci, por Ignacio Ramonet
Cem horas com Fidel, por Ignacio Ramonet
Te doy una canción: viva o 59° aniversário de Moncada, por Mauro Iasi
Te doy una canción II: 54° aniversário da Revolução Cubana, por Mauro Iasi
“Na morte de Fidel”, um poema de Boaventura de Sousa Santos

Referências bibliográficas
GUEVARA, Ernesto Che. Cuba: excepición histórica o vanguardia en la lucha anticolonialista. In: SADER, Eder; FERNANDES, Florestan (Orgs.). Che Guevara. São Paulo: Ática, 1981.


Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

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