Educação especial, filosofia e crítica da sociedade capitalista

No espaço do leitor, Demetrio Cherobini defende, a partir da análise da educação especial, que a tarefa de aprender e de se desenvolver amplamente está associada à superação do capitalismo e não a uma adaptação passiva à essa realidade.

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Por Demetrio Cherobini.

Quando Antonio Gramsci afirmou que “todo homem é filósofo”, não estava dizendo que todos somos iguais, nem propondo a inexistência de diferença na qualidade entre os conhecimentos dos indivíduos. Sua tese é mais sutil: todos possuem, no plano intelectual e prático, noções sobre “o que é” e “o que deve ser”, ou seja, uma concepção de mundo e uma ética. Nesse sentido preciso, todos são filósofos.1  

Além disso, há a filosofia própria do senso comum – desagregada, não refletida, contraditória –, e a filosofia “profissional” – unitária, coerente, organizada. De acordo com Gramsci, é possível transitar de uma à outra, isto é, passar da “filosofia do senso comum” à consciência filosófica aprimorada. Tal condição está aberta a todos e pode ser proporcionada por meio da educação.

Essas considerações valem também para as pessoas com necessidades especiais. A “filosofia espontânea” de cada um desses sujeitos se revela nas representações simbólicas elementares, na linguagem, na sua cultura popular etc.

Por exemplo, quando uma criança com necessidades especiais usa palavras ou sinais que significam “pai” e “mãe”, está expressando a noção do mundo imediato como uma totalidade – a família – cujas partes diferentes – ela, seu pai e sua mãe – se relacionam de maneira determinada, se definem a partir das relações estabelecidas entre si, têm comportamentos práticos permitidos ou proibidos no trato de uns com os outros, e assim por diante.

Há, portanto, filosofia nas palavras. Essa representação de mundo, por certo rudimentar, pode ser aprimorada em sua unidade e coerência internas se o sujeito que a cultiva for devidamente educado visando esse objetivo.

Mas por que, em geral, os indivíduos com necessidades especiais não chegam a um grau de consciência filosófica (ou científica) superior ao senso comum, e por que aproveitam pouco o seu potencial? Pela mesma razão que a maioria absoluta das pessoas também não o faz no capitalismo: o fato de esta sociedade usar a educação principalmente no intuito de preparar para o trabalho, e não para o desenvolvimento das múltiplas capacidades humanas.

O capitalismo, calcado naquilo Marx chamou de trabalho abstrato, se organiza a partir da exploração da mais-valia no processo de produção de mercadorias, e a multifacetada estrutura que compõe os diversos tipos de trabalho concreto dessa sociedade está subordinada a tal princípio.2 Esse fenômeno está na base do surgimento do hierárquico e contraditório sistema das ocupações laborais, das rústicas às requintadas.

Grande parcela dos trabalhos da sociedade capitalista global exige pouca formação educacional. A educação se ajusta a isso, desenvolvendo as mínimas capacidades “abstratas” requeridas pelos empregos de baixa qualificação: um pouco de leitura e escrita, cálculos matemáticos elementares, habilidades manuais simples, senso estético adequado às exigências do mercado, princípios ético-políticos burgueses etc. Os empregos de alta qualificação – via de regra muito especializados e também unilaterais – são, relativamente, em menor quantidade, e para preenchê-los as oportunidades educativas são afuniladas e organizadas em espaços restritos que tendem a privilegiar os estudantes com os recursos materiais necessários para ingressar nos melhores cursos preparatórios.

Logo, a possibilidade ou a impossibilidade de aprender e se desenvolver em larga escala não têm a ver apenas com as características individuais das pessoas – psicológicas ou orgânicas –, mas com o objetivo geral que a sociedade se propõe realizar – no caso do capitalismo, a exploração dos trabalhadores e o lucro capitalista3 – e o modo como usa a educação para isso.

À educação institucional caberá o papel de municiar, com certos tipos de conhecimentos, os indivíduos e, junto com as demais instituições, direcioná-los para as diferentes ocupações capitalistas. A maior parte desses sujeitos, por suposto, é conduzida a se adaptar a trabalhos de pouca qualificação, ou acaba compondo o exército de desempregados funcionalizados pelo sistema, desamparados, embrutecidos, esquecidos, marginalizados ou, às vezes, objetos da caridade alheia e de auxílios governamentais. Em tal condição, dificilmente conseguem desenvolver qualquer tipo de capacidade humana verdadeiramente digna desse nome.

Nesse contexto, a conclusão se impõe: a grande maioria dos indivíduos da classe trabalhadora, incluindo-se aí os com necessidades especiais, só poderá ir além da formação educativa elementar e rudimentar se envidarem seus esforços na luta pela superação da sociedade capitalista e realização de uma formação social diferente, auto-organizada no sentido de proporcionar o máximo de tempo livre para que os sujeitos desenvolvam o seu rico potencial humano.

Em outras palavras, aprender e se desenvolver amplamente tem a ver com vencer o capitalismo e não com se adaptar passivamente a ele. Até lá, a embrutecedora média abstrata ditada pela forma singular que adquire o trabalho sob o domínio do capital será a regra organizadora das atividades educacionais formais para todas as pessoas.4


1 Ver Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, vol. 1. Introdução ao estudo da filosofia; A filosofia de Benedetto Croce. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2013.
2 O trabalho abstrato é o responsável pelo valor das mercadorias, ao passo que o trabalho concreto cria as suas características úteis. Ver Marx, O capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
3 Tudo em torno do incessante e insaciável processo que Marx, em O capital, denominou de valorização do valor.
4 Não se quer dizer com isso que os sujeitos não devam participar dos espaços formais e instituídos da sociedade capitalista. Trata-se, em verdade, de não criar expectativas mistificadas em relação a eles como locais de educação integral. A formação dos homens e mulheres omnilateralmente desenvolvidos só é possível após o processo de revolução e transição socialistas e mediante a participação em organizações dedicadas a esse propósito. Esse movimento revolucionário exige, por certo, uma educação crítica do capital, que necessita ser levada a efeito pelos instrumentos autônomos de luta da classe trabalhadora, segundo a ideia da revolução permanente. É uma educação, portanto, conforme a teorizada por Mészáros em algumas de suas principais obras. Ver, a esse respeito, Mészáros, O poder da ideologia e O desafio e o fardo do tempo histórico, no qual se encontra o célebre ensaio Educação para além do capital. As pessoas com necessidades especiais devem, certamente, participar desse movimento.

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Demetrio Cherobini é educador especial, cientista social e doutor em Educação.

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