O sujeito da revolução
Quem faz a revolução? O partido, a classe, o povo? Jodi Dean analisa essa eterna questão marxista a partir da história da Revolução Russa.
Por Jodi Dean.
Para alguns, a questão da autoria da revolução já está mal colocada. Processos ocorrem. Dinâmicas se desdobram. Crises se desenrolam. As revoluções têm uma lógica própria e abordá-las como se fossem resultados planejados e deliberados de decisões de agentes conscientes é começar por um erro categorial. Mas a questão do sujeito da revolução não se reduz a uma consideração da agência consciente. Este ponto já estava claro para Georg Lúkacs, em 1924. Em Lênin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento, Lukács afirma um paradoxo da causalidade revolucionária: o partido é “ao mesmo tempo produtor e produto, pré-condição e resultado do movimento revolucionário de massa.” A revolução molda seus a(u)tores. O sujeito que faz a revolução não pré-existe à ela; o sujeito é um efeito da revolução.
Alain Badiou e Slavoj Žižek também contribuem para dissipar a ficção de um sujeito agencial da política. Badiou apresenta o sujeito como resposta a um evento-verdade. Žižek defende que o sujeito é uma fissura, uma falha, ou vazio. Badiou nos fornece a figura do convertido, discípulo, militante, ou partidário. Žižek nos traz o Cogito. Com relação ao sujeito da política e, mais especificamente, ao sujeito da revolução, seriam tais teorias compatíveis? Seria o sujeito da verdade o mesmo sujeito da fissura? Quando o povo é o sujeito da política, a resposta é afirmativa.
Na tradição marxista, o povo é dividido e disruptivo, presente retroativamente na insistência de multidões de mulheres, trabalhadores, soldados e camponeses. Jamais a unidade da nação ou a completude de uma sociedade reconciliada, o povo é o sujeito do qual dá provas a revolução. Lukács invoca o povo neste exato sentido quando explica a transformação dialética do conceito de povo na caracterização que faz Lênin da Revolução Russa: “O conceito vago e abstrato de “povo” teve que ser rejeitado, mas somente a fim de que um conceito revolucionário, distintivo, de “povo” – a aliança revolucionária dos oprimidos – pudesse se desenvolver, a partir de um entendimento concreto das condições da revolução proletária.” A história de China Miéville da Revolução Russa dá corpo a essa ideia. Miéville nos apresenta uma revolução que irrompe através do que poderia impedi-la, atrasá-la ou arruiná-la. Trata-se de uma “interrupção messiânica” que “surge a partir do quotidiano.” É indizível, “e, no entanto, resulta da culminação de exortações cotidianas.” Indo além de qualquer partido ou classe que possa contê-la, a revolução manifesta o povo como o sujeito coletivo da política. A revolução forja seus a(u)tores através dos efeitos que atestam a força do povo dividido. O povo faz a revolução que faz o povo.
Outubro
Outubro, de Miéville, apresenta a realidade da revolução como uma acumulação acelerada de efeitos: a força dos muitos fora-do-lugar, o colapso da ordem, dos costumes e do cálculo e o impulso arrebatador do inesperado tomam conta das pessoas, à medida em que a sociedade se torna natureza. Grupos e agentes lutam para conduzir os eventos – ou ao menos para evitar que sejam esmagados por eles. Alguns são bem sucedidos, tanto apesar quanto em função de seus melhores esforços: “os revolucionários cometeram erros grotescos.” Os resultados não são determinados nem pela melhor teoria nem pelas melhores práticas, embora um trabalho de organização paciente e amplo ajude a orientá-los numa direção específica. E ainda que a contingência seja a força principal – “a insurgência tem gatilhos estranhos” – a sequência aberta da política emancipatória admite uma outra forma de poder, a do povo revolucionário. O evento da revolução é a luta pelo povo e por meio do povo – é a luta do povo.
Neste sentido, três aspectos da história de Miéville se destacam – multidões, infraestrutura e divisão. Miéville menciona o tempo todo o poder das massas nas ruas. Os números importam. No início de 1917, mais de 400.000 trabalhadores viviam em Petrogrado. 160.000 soldados estavam aquartelados na cidade. No dia 9 de janeiro, 150.000 trabalhadores entraram em greve. 30.000 fizeram greve em Moscou. A 14 de fevereiro, 100.000 ainda estavam em greve. No dia 22, os chefes da fábrica Putilov impediram o acesso de 30.000 trabalhadores. O dia seguinte era o Dia Internacional da Mulher. Radicais organizaram discursos, encontros e celebrações que vinculavam a guerra, o custo de vida altíssimo e a situação das mulheres. “Mas nem mesmo eles esperavam o que aconteceria em seguida.” As mulheres saíram em massa das fábricas e marcharam pelos bairros mais militantes de Petrogrado, “enchendo as ruelas com números crescentes de adeptas.” Os homens chegaram e se juntaram a elas. Eles gritavam não apenas por pão, mas pelo fim da guerra e pelo fim da monarquia. “Sem que ninguém tivesse planejado, quase 90.000 mulheres e homens bradavam pelas ruas de Petrogrado.” No dia seguinte, 240.000 pessoas entraram em greve. Os números continuaram a ser relevantes durante a primavera e o verão. 400.000 pessoas nas ruas de Petrogrado em Junho. 50.000 desertores do fronte afluindo para a cidade. Meio milhão de pessoas protestando no dia 4 de Julho.
Embora seja uma questão numérica, a força da multidão está para além disso, sempre despertando as intensidade afetivas que impulsionam uma revolução. As multidões de famintos esperando pão diante de padarias desabastecidas são “cadinhos de dissidência.” As multidões irrompem, liberam, destroem e pilham. Elas bloqueiam e dominam. Invadem arsenais da polícia, tomam as armas e matam a polícia. Invadem prisões, arrebentam portas e liberam os presos. Elas avançam, atacam e saem em debandada. Multidões são jubilantes, raivosas, militantes, crédulas, furiosas, incandescentes, exultantes, exigentes, indignadas. Elas ocupam espaços e não podem ser detidas. Elas insistem, clamam e debandam. As multidões se manifestam na forma de camponeses tomando a terra, deserções em massa dos soldados, trabalhadores transformados em milícia armada. À medida que se instalou a reação de setembro, as multidões também apareceram como catástrofe: “comunidades de proletários famintos atacavam casas em bando, caçando ao mesmo tempo comida e especuladores de comida.” Multidões trazem fogo e fúria, o “cheiro de fumaça e o berro de macacos,” “niilo-embriaguez apocalíptica.” Metáfora e metonímia, as multidões são o grito de raiva da rua e a energia radical da cidade.
Miéville trata das materialidades da revolução. Sim, do nível de desenvolvimento das forças produtivas russas – como na maioria dos relatos da revolução de 1917, a burguesia fraca e o atraso econômico do país não deixam de ser mencionados – mas também das diversas infraestruturas da revolução: trens, estradas de ferro, bondes, linhas telefônicas, letreiros, prensas e pontes; vidros quebrados, balas ricocheteantes e irrupções de eletricidade. A mídia tem um papel; os jornais do partido, é claro, mas também o telégrafo: “com a notícia da revolução a própria revolução se espalhou.” Algumas armas são “imundas demais para serem usadas.” Outras carecem de munição. Um plano demanda um sinal específico: uma lanterna vermelha erguida a um mastro. Ocorre que ninguém possui uma lanterna vermelha e, quando finalmente se encontra uma lanterna substituta, é quase impossível erguê-la. O sinal chega com dez horas de atraso. A contingência acompanha a infraestrutura material da revolução tanto quanto suas multidões.
Formas políticas também são componentes da infraestrutura da revolução. Na Rússia de 1917, a mais famosa delas é o soviete. Ela evoca uma clássica forma de associação do campesinato russo e repete o revigoramento revolucionário dessa forma, ocorrida em 1905. Em fevereiro de 1917, ela surge das ruas. “Ativistas e agitadores de esquina” pedem o retorno dos sovietes “em panfletos, em vozes ruidosas saídas do meio da multidão.” Sinal e forma do poder popular, os sovietes se espalham de modo viral pelo país. O soviete exprime também a tensão do impasse e da acomodação de 1917 entre revolução e reforma, o Soviete dos Deputados Soldados e Operários em sua relação de poder dual com a Duma.
Talvez a mais notória das infraestruturas de forma política da revolução, ao menos aos olhos de certa esquerda contemporânea, seja o partido. Mas enquanto muitos hoje apresentam o partido como uma máquina militar baseada na disciplina de ferro, um aparato centralizado capaz de dominar toda a sociedade numa situação revolucionária, Miéville nos mostra um sem-número de partidos revolucionários, ora cooperando ora brigando, tentando navegar uma situação que mudava rapidamente. Os bolcheviques não são sequer os bolcheviques de Lênin, mas sim uma mistura contraditória de disciplina e desobediência unidas pelo debate ideológico numa forma política que respondia a condições revolucionárias. Em março, Lênin ainda está em Zurique. Os bolcheviques estão divididos em relação à oposição ao Governo Provisório. O Comitê de Petrogrado aprova uma revolução “semi-menchevique”. Ao retornar, Lênin ataca violentamente seus companheiros por seu mero apoio limitado ao Governo Provisório. A falta de disciplina dos bolcheviques o exaspera. Ele defende a passagem para o segundo estágio da revolução: nenhuma colaboração com a burguesia; poder nas mãos do proletariado e dos camponeses mais pobres. O apoio dos bolcheviques não é automático. Lênin tem que lutar para obtê-lo. Ele nem sempre vence e, mesmo quando obtém vitórias, os bolcheviques acabam sendo muitas vezes presenças minoritárias nos vários sovietes dos quais participam. Nos dias difíceis e confusos de julho, o partido fica para trás em relação a trabalhadores e soldados cada vez mais militantes. Stalin esboça um vago panfleto que “aspirava a uma unidade de propósito e análise, uma influência, que o partido não possuía.” Em setembro, Lênin está numa relação francamente antagonista com seu próprio partido. Isolado em suas convicções, seus escritos censurados, ele não só desobedece uma instrução direta do Comitê Central como também oferece sua resignação. Como o divórcio que não sai do papel, a resignação não ocorre. O partido permanece dividido.
O soviete e o partido são apenas duas das formas políticas que fornecem uma infraestrutura à revolução. Outras formas incluem modos diversos de associação política – congressos, conferências e comitês. Incluem também a polícia, o exército e suas diferentes organizações, algumas reacionárias, outras radicais. Havia os Batalhões Femininos da Morte, estabelecidos pelo governo Kerensky, bem como os cossacos armados que se recusavam a tiranizar o povo. O conjunto de táticas e os momentos em que usá-las são também componentes da infraestrutura de uma revolução: demandas, “explicação paciente,” acordos, slogans. Neste sentido, a própria teoria é parte da infraestrutura da revolução, uma das maneiras pelas quais seus atores compreendem o que está acontecendo e o que deve ser feito. Miéville explora a indeterminação da teoria, a forma como seus aderentes optam por caminhos diferentes. Um caso exemplar é o entendimento do marxismo como designando uma linha do tempo particular para a revolução: a revolução proletária deveria ser antecedida da revolução burguesa. Essa teoria ditava aos apoiadores do soviete, no início do período dual, que seu papel era pôr freios à revolução: “aqui estava a hesitação daqueles cujo socialismo ensinava que uma aliança estratégica com a burguesia era necessária e que, independentemente do quão desordenado fosse o fluxo de eventos, ainda havia estágios por vir, que era a burguesia que devia tomar o poder primeiro.”
Com as multidões e infraestruturas da revolução vêm as divisões. As divisões concentram, intensificam e impulsionam a revolução. A concentração, intensificação e impulso expõe o que parece ser, de uma perspectiva, obstáculos ao poder revolucionário do povo, como uma demonstração de sua força. Várias divisões consolidam-se em binários: soviete vs. Duma, com outras aparatos governamentais perdendo a importância; pró ou contra a guerra, com distinções mais sutis ficando de lado; o povo vs. a burguesia, sendo os diferentes interesses do proletariado e do campesinato eclipsados por sua oposição comum a um governo que não está disposto a acabar com a guerra; revolução e contrarrevolução, à medida que as forças reacionárias contra-atacam. Há até mesmo uma concentração da divisão entre os politizados e os não-engajados. Miéville observa uma queda drástica nos índices de votação entre maio e setembro e um paralelo aumento no nível de militância dos que se dispuseram a votar; o centro não consegue se sustentar. Cada concentração de divisões sociais e políticas intensifica o momento político: o poder dual fortalece os trabalhadores e soldados representados no soviete e enfraquece o Governo Provisório; deserções em massa ampliam as perdas no fronte e exacerbam a violência e escassez nas cidades; a crise econômica se inscreve com sangue no lombo dos pobres; bolcheviques são presos, justiceiros vagam pelas ruas e, através do país, surgem pogromistas antissemitas de ultradireita. Em julho, “havia confrontos por toda a parte, que tomavam às vezes formas sórdidas.” A concentração e intensificação da divisão impulsionam a revolução. Esse impulso é a revolução mesma – não somente as multidões e a infraestrutura mas também a dinâmica que as une, energiza e dirige. Um partido dá instruções. As multidões as ignoram. Os partidos fazem apelos à unidade, mas não conseguem encontram maneira de se unificar. Planos falham. Multidões surpreendem a todos com um mar de cartazes vermelhos. Contrarrevolucionários esmagam oponentes. A revolução segue em frente, apesar de inúmeros obstáculos, de incontáveis tentativas de apaziguá-la e contê-la. O povo é a fissura entre expectativa e resultado, a força divisora que excede todos os canais disponíveis.
A superação de obstáculos, o desafio que eles põe e a resposta que engendram, é o motor da revolução. Os acontecimentos ignoram a hesitação daqueles socialistas convictos de que a hora da revolução proletária ainda não chegou. Sua angústia histórica, independentemente do quão bem fundada na teoria marxista, responde e se confronta com a força do povo revolucionário – multidões, desertores, agitadores, e até mesmo contrarrevolucionários. O real da revolução irrompe sem pedir passagem, quer queiram eles quer não. Sovietes através do país, bolcheviques através dos sovietes, dão forma à revolução fornecendo espaços em que as pessoas se enxergam como sujeitos da revolução. As multidões fornecem o suplemento afetivos de tais espaços. Mesmo as divisões entre os socialistas – bolcheviques e mencheviques, Lênin e seu próprio partido – funcionam como obstáculos capacitadores, por meio dos quais as pessoas se reconhecem como sujeitos da revolução. À medida que as divisões se concentram e se intensificam, são feitas decisões. A correção dessas decisões é determinada nas ruas, no curso de sua interação com a multiplicidade de circunstâncias cambiantes. A intensificação do processo torna algumas ideias, táticas e slogans melhores em alguns momentos e piores em outros. A eficácia das táticas e slogans aponta para o povo como sua causa, e não para os partidos ou facções que as introduzem. Lênin tem que apelar aos camponeses e também aos trabalhadores, porque eles são o povo.
Outubro nos apresenta Outubro como o evento da revolução. O evento ganha força através de combinações conflitantes de multidões, infraestruturas e divisões. A força do povo excede as teorias, associações e medidas pronunciadas por vezes em seu nome, por vezes para controlá-lo ou contê-lo. Por um lado, sua força revolucionária aparece independentemente de ser desejada, prevista ou autorizada, seus efeitos se manifestando pela travessia ou superação de cada obstáculo. Por outro lado, são as tentativas de entender, mobilizar, canalizar e ganhar o apoio do povo dividido que apresentam a revolução a si mesma. O fato desta apresentação, a necessidade de mediação, impulsiona a revolução, quer esteja a apresentação certa ou errada. A luta pela apresentação da revolução duplica e modula a própria revolução. O povo como sujeito da revolução é um efeito dos obstáculos que ele teve que superar para afirmar seu poder. Nem público passivo das ações do palco político, nem massa inerte posta em movimento pelos partidos incitadores e muito menos vítima de processos fora de seu controle – o povo está presente nos efeitos acumulados da revolta que aponta para o povo dividido como seu sujeito.
O sujeito da verdade
Badiou apresenta o sujeito político como o sujeito de uma verdade. Ele emerge em resposta a um evento-verdade. Esta resposta consiste de duas operações: uma aposta e um processo. O sujeito é efeito de ambos.
Algo novo, algo previamente inexistente, ocorre. Uma nova verdade perturba o cenário em que aparece. Esse evento de uma nova verdade cria um problema. Se o evento fosse compreensível a partir dos termos de seu contexto, não seria um evento, mas simplesmente reafirmaria compreensões já existentes, confirmaria expectativas. “Nada nos permitiria dizer: aqui começa uma verdade.” Esse “nada” ou ausência de permissão dá lugar a uma aposta: um evento ocorreu. A aposta é a resposta que faz surgir o sujeito como o correlativo necessário de um evento-verdade. Sem a resposta de um sujeito, não há verdade. A resposta inicia “um processo infinito de verificação da verdade.” Esse é o processo de examinar o evento-verdade, traçar suas repercussões, buscar suas implicações. O processo é aberto, “movido pelo acaso.” Trata-se de um território não mapeado. Badiou refere-se a esse esforço como um “exercício de fidelidade.” “Sujeito” é, portanto, o nome para uma resposta composta de duas ações – uma decisão e um procedimento. Como escreve Badiou: “Um sujeito é um lance de dados que não abole o acaso, mas que realiza o acaso pela verificação da ação que o funda como sujeito.” O “sujeito” é o ponto central de uma ação – não o lançador mas o lance – e o esforço fiel de levar a cabo tal ação.
O acaso – uma aposta – figura tanto no processo de fidelidade como na decisão inicial de um evento-verdade. Pois ao mesmo tempo em que o procedimento de verificação resulta em novos experimentos, novo conhecimento, novos efeitos, a “verdade não pode ser completada.” Não há um terreno final ou último, embora a ficção da completude possa ser teorizada. O processo de verificação constrói a verdade do evento ao qual ele responde, manifestando não certeza mas fidelidade.
Badiou usa revoluções, marcadas por datas como 1792 e 1917, para demonstrar como o sujeito da política é o sujeito da verdade. Eventos ocorrem. Essa ocorrência é a emergência de um sujeito – sem um sujeito, não poderia haver um evento. O sujeito responde pelo trabalho de verificação da nova verdade. Esse exercício de fidelidade não pode ser completado. Ele excede o evento que lhe dá origem, ao mesmo tempo em que esse excesso faz parte da verdade do evento. Badiou apresenta Lênin como um “revolucionário subjetivo” (não o sujeito da revolução), fiel à Comuna de Paris e à Revolução Francesa. Ao contrário dos que o cercavam, Lênin foi fiel a eventos em vez de doutrinas. E a fim de evitar que a história da Rússia se torne a história da França, devemos notar também a fidelidade de Lênin à revolução de 1905, bem como sua sensibilidade aos que estavam ao seu redor, para organizar companheiros, sovietes de trabalhadores, soldados e camponeses, as multidões que habitavam as ruas. Devemos reconhecer, em outras palavras, a resposta de Lênin ao povo como sujeito da revolução no trabalho coletivo de verificação que o produz.
Após essa descrição do sujeito, Badiou desenvolve o conceito de “corpo subjetivizável”, isto é, o corpo de verdade que se constitui em torno de um evento. Esse conceito delineia as dimensões materiais da fidelidade: os procedimentos de verificação constituem um novo campo coletivo, que aparece como uma constelação que inclui a afirmação primordial do evento-verdade, procedimentos de verificação e suas consequências. Por meio do corpo, a verdade ganha acesso ao mundo, disciplinando os fiéis que aos poucos incorpora. O conceito de corpo subjetivizável expressa o fato de que o sujeito da verdade deve ser um sujeito coletivo, “um Sujeito que – mesmo empiricamente – não pode se reduzir a um indivíduo.” A verdade é conduzida, provada e realizada nas e por meio das práticas de coletivos, tais como partidos e sovietes.
O conceito de corpo subjetivizável permite a Badiou dar conta de efeitos subjetivizantes que vão além da fidelidade. Ele introduz dois novos tipos de sujeito, o reativo e o obscuro. Como o sujeito fiel, eles também respondem ao evento-verdade, o primeiro com o objetivo de conter os efeitos do novo corpo, o último a fim de destruí-los. “Todos os três são figuras do presente ativo no qual uma verdade até o momento desconhecida trama seu curso.” Todos os três são figuras coletivas, incorporações de respostas, escolhas, “adesões individuais.” Sua interdinâmica, a luta entre eles, modula o desenvolvimento do corpo de verdade. Badiou usa a sequência política leninista como exemplo: enfrentar a contrarrevolução armada exige que o partido revolucionário adote uma disciplina organizacional de estilo militar.
Acompanhando o corpo subjetivizável está a Ideia. Por meio da Ideia, o indivíduo é incorporado ao corpo ou processo de verdade. Badiou escreve: “a Ideia é a mediação entre o indivíduo e o Sujeito da verdade – em que “Sujeito” designa aquilo que orienta um corpo pós-evental no mundo.” A Ideia é o meio pelo qual os indivíduos tornam-se parte de algo maior que eles próprios.
Poder-se-ia esperar que as investigações de Badiou sobre o sujeito da verdade como sujeito político ampliariam vários elementos do corpo de verdade, talvez em termos de angústia, superego, coragem, justiça, partido, luta de classes, ditadura do proletariado e comunismo, como ocorre em Teoria do Sujeito. Aqui o filósofo já apresenta o sujeito como “nem causa nem base.” Ele escreve: “Ele se sustenta no que polariza, e tolera os efeitos de preceder-se no espaço: sempre invisível no excesso de sua visibilidade.” Marx e Freud nos fornecem uma tal descrição do sujeito com o proletariado e o inconsciente. Ambos os pensadores encontram o sujeito nas fissuras de uma ordem, no movimento de seus efeitos. Com relação ao marxismo em especial, Badiou identifica o partido como corpo da política. O partido é necessário mas não suficiente para o sujeito da política. Ele não garante nada. “Mas para que haja um sujeito, para que se encontre um sujeito, deve haver apoio de um corpo.” Assim, novamente, o partido não é o sujeito; é a condição de possibilidade do sujeito político. Ele enxerga o sujeito a partir de seus resultados.
Em A hipótese comunista, Badiou adota uma linha diferente. Ele teoriza sobre a decisão individual de fazer parte de um corpo de verdade. O que em Teoria do sujeito aparecia como resposta coletiva, toma a forma, em A hipótese comunista, de uma decisão individual. Em teoria do sujeito ele ilustra a subjetivação e o processo subjetivo com a insurreição popular e o partido. Em A hipótese comunista, esses elementos são substituídos pela participação do indivíduo num processo político via mediação de uma Ideia. A Ideia permite ao indivíduo imaginar-se, autorizar-se como ser político por meio de sua incorporação em um novo Sujeito.
A Ideia combina os três registros teorizados por Lacan: o real de um procedimento de verdade, a inscrição desse real na história por meio da produção de um novo campo coletivo ou Simbólico, e o elemento imaginário individual. A Ideia do comunismo, escreve Badiou, “é a operação imaginária pela qual uma subjetivação individual projeta um fragmento do real político na narrativa simbólica de uma História.” A Ideia do comunismo permite ao indivíduo tornar-se o militante.
A ideia desloca o sujeito. Ao invés de interpretar o sujeito como compreendendo em si mesmo uma verdade evental, um corpo subjetivizável e operação imaginária, Badiou empodera a Ideia. A ideia do comunismo persiste, disponível para os indivíduos mas independente de um sujeito. Ela conserva-se destacada das pessoas. Hoje, insiste Badiou, “comunista não pode mais ser o adjetivo qualificador de uma política.’ A Ideia deve ser retomada sem “qualquer uso predicativo.” Nada de partido comunista, política comunista, movimento comunista, revolução comunista – apenas o comunismo como uma Ideia por meio da qual um indivíduo se reconhece e constrói sua luta.” A priorização da Ideia também separa o comunismo da história, que Badiou trata necessariamente como uma história do estado e, portanto, de amarras. Seu objetivo é livrar-se da visão sufocante da história que apresentava o comunismo como seu telos inevitável. A história, ou um arranjo específico de fatos, não pode ser deduzida diretamente de um evento-verdade. A verdade não é senão o processo aleatório de fidelidade a um evento. Assim, mesmo que, para um indivíduo, “a Ideia apresente a verdade como se fosse um fato,” a história não é capaz de verificá-lo.
Quanto mais Badiou enfatiza a Ideia como apoiando e autorizando o indivíduo (mas a fazer o que?), mais efêmero se torna o corpo subjetivizável. Ao invés de ser um novo campo coletivo, acumulação material de processos de verificação ou um conjunto expectativas coletivas disciplinadoras, o corpo subjetivizável ou registro simbólico do sujeito torna-se ou constrangido por uma concepção simplista, estanque e unidimensional do estado ou arrebatado por um corpo glorioso, configurado por meio de sua subtração em relação ao estado. A efemeridade do corpo subjetivizável subtraído manifesta-se na separação operada por Badiou da prática em relação ao simbólico e em sua inserção no registro do real: “A prática deveria obviamente ser entendida como o nome materialista para designar o real.” Manifesta-se também no tratamento de Badiou dos nomes próprios como corpos-de-verdade – Spartacus, Thomas Münzer, Robespierre, Toussaint Louverture, Blanqui, Marx, Lênin, Rosa Luxemburgo, Mao, Che Guevara. Figuras históricas, grandes homens e mulheres assumem o lugar da forma adjetiva perdida do comunismo, sua capacidade de designar uma organização de luta, um partido. Badiou escreve:
“Nesses nomes próprios, o indivíduo comum descobre indivíduos gloriosos, distintos, que servem de mediação para sua própria individualidade, como prova de que pode superar sua finitude. A ação anônima de milhões de militantes, rebeldes, lutadores, como tais irrepresentáveis, combina-se e conta-se como uma só no símbolo simples e poderoso do nome próprio.”
O militante se imagina como Lênin ou Che, regozijando-se com tal autoidentificação. Em contraste com a subjetivação imaginária do militante que se enxerga como um grande líder revolucionário, ao mesmo tempo em que se subtrai do estado, Badiou reconheceu, em Teoria do sujeito, a necessidade de um corpo político, o partido, como “sujeito-suporte de qualquer política.” Escreve ele: “O partido é o corpo da política, em sentido estrito. O fato de haver um corpo não é em absoluto garantia de que exista um sujeito… Mas para que possa haver um sujeito, para que se possa encontrar um sujeito, é indispensável o suporte de um corpo.”
Nos trabalhos mais recentes de Badiou, o comunismo perdeu seu corpo. Ele persiste na Ideia, isto é, no imaginário, como as figuras de grandes heróis singulares (e apenas uma heroína). Distantes do povo, não fazendo mais parte do corpo que delimita o sujeito da política, os companheiros são reduzidos a fãs, e as relações práticas por meio das quais eles se disciplinam até formar um componente da infraestrutura revolucionária estão enfraquecidas, quando não esquecidas. Badiou trata dessa perda com uma dose de incerteza: “se a forma-partido está obsoleta” e “se é verdade que a era dos partidos” acabou no anos 60 e 70. Ele continua a reconhecer a necessidade de organização, de disciplina política e o imperativo de preservar a fissura do evento. No entanto, pensa ele, estamos presos ao problema organizacional herdado do século XX, o problema da relação ou do encontro entre o partido e o estado, fissura eventual e formalização fiel de sua genericidade igualitária.
A análise de Badiou ilumina, no entanto, como e porque estamos nos libertando. Multidões levantes e a energia das massas reunidas nas ruas fazem pressão sobre a autoridade do estado, alterando “a relação entre o possível e o impossível.” Essa energia indica o poder da genericidade igualitária contra as amarras identitárias. Badiou usa Lênin (e Mao) para ilustrar o ponto: o sujeito da revolução foi mais do que o proletariado; foi o povo (Badiou fala em “todo” o povo, o que pode ser enganoso; melhor é reconhecer sua divisão constitutiva, geradora). O poder do genérico é preservado por organizações políticas fiéis à ruptura igualitária. Em Multidões e partido, eu teorizei o partido comunista como a forma de fidelidade à descarga igualitária. Ele mantém a fissura aberta, impedindo sua obliteração pelo capital e o estado. Durante a última década, protestos, manifestações e revoluções incitaram o surgimento de novas organizações políticas – muitas delas partidos – para dar forma ao desejo coletivo expresso na ruptura da multidão. Partidos e associações atestam o desejo das pessoas por mudanças igualitárias e fazem-no presente como evento. Nas palavras de Badiou, “a organização é o mesmo processo que o evento.” Tais organizações não são o partido de Lênin ou Mao – e os partidos de Lênin e Mao nunca foram simplesmente os partidos desses dois grandes líderes, mas sempre organizações múltiplas, repletas de divisões e em constante mudança. Também não se trata de “não-partidos,” mas sim de novos experimentos com a forma partido num novo cenário. Badiou condensa o partido comunista em suas apresentações históricas. Mas sua descrição da inextricabilidade entre organização e evento, verdade e corpo subjetivizável, nos indica que o partido permanece uma forma insuperável para o movimento comunista sob o capitalismo. Sem organização, não há evento.
Badiou escreve: “Uma organização política é o Sujeito de uma disciplina do evento, uma ordem a serviço da desordem, a guarda constante de uma exceção. Trata-se de uma mediação entre o mundo e mudar o mundo.” O partido é o corpo subjetivizável da verdade, o fiel condutor do evento que a ruptura sobreviva. Badiou faz referência explícita ao sujeito lacaniano, isto é, à lei simbólica como formalização do desejo. O sujeito lacaniano barrado nos conduz à desordem e à exceção, ao povo como fissura. Os guardiões de uma exceção sabem que o povo como sujeito revolucionário da política sempre e forçosamente excede o partido que lhe encerra.
O sujeito como fissura
Por décadas, Žižek tem desenvolvido e defendido uma visão do sujeito como negatividade autorreflexiva. Expresso como vazio primordial, fissura na estrutura, pulsão de morte, o fora-de-lugar, falha de realização, sujeito lacaniano barrado, autoalienação hegeliana da substância ou simplesmente Cogito, o sujeito de Žižek é universal – “trata-se da universalidade de uma fissura, um corte: não a característica universal subjacente, compartilhada por todos os particulares, mas o corte de uma impossibilidade que lhes atravessa.” Quais são as implicações dessa visão do sujeito para nosso pensamento sobre a política, a revolução e o comunismo?
Žižek argumenta que a “aposta da hipótese comunista” é que o sujeito cartesiano vazio fornece a base de uma política: “o nome político do sujeito cartesiano esvaziado é o proletário, um agente reduzido ao ponto vazio de uma subjetividade sem substância. Uma política de emancipação universal radical só pode se basear na experiência proletária.” Ao invés de ser um designador sociológico de um estrato empiricamente definido da sociedade, o “proletariado” aponta para o sintoma do capitalismo, aquele ponto exterior dentro do sistema que encarna suas contradições. Na condição de coveiro produzido pelo próprio capitalismo, o proletariado é necessário para a continuação e o fim do sistema, sendo ao mesmo tempo sua condição e seu limite. Por esse motivo, o proletariado é uma classe que só pode conquistar poder político na medida em que se abolir como classe. Sua vitória equivale a sua eliminação, à destruição das condições que o produzem. Qual seria, então, a “experiência proletária” que sustenta uma política de emancipação universal radical? Presumidamente, é a negatividade – limite, perda e negação. O modo de produção capitalista é em si próprio um ponto limite da política proletária. Enquanto a manutenção desse sistema restringir o horizonte político, os trabalhadores continuarão a ser explorados e qualquer “melhoria” no sistema aumentará sua exploração. Do mesmo modo, seja numa fábrica, indústria, ou na economia como um todo, qualquer ganho para o capital implica uma perda para os trabalhadores. A tecnologia (trabalho morto) beneficia os capitalistas (mas somente no curto prazo) e prejudica os trabalhadores – da linha de montagem com seus aumentos de eficiência e descapacitações à computadorização e robotização. Quanto mais o trabalhador produz, menor o valor de seu trabalho. Sob o capitalismo, quando as lutas dos trabalhadores são vitoriosas no curto prazo, acabam derrotadas no longo prazo e resultando num aumento do empobrecimento da classe trabalhadora. Um incremento dos níveis de sindicalização e dos salários gera fuga de capitais e offshoring. Fábricas fecham. O desemprego cresce. A negatividade da experiência proletária é capaz de basear uma política de emancipação universal radical porque ela distende e atravessa as barreiras constitutivas do sistema capitalista.
Žižek também expande a ideia de proletariado, enfatizando a proletarização como processo de redução a uma subjetividade sem substância. Ele escreve:
“O que nos une é que, em contraste com a imagem tradicional do proletariado que não tem “nada a perder a não ser seus grilhões,” corremos o risco de perder tudo: o risco é que seremos reduzidos a sujeitos abstratos, desprovidos de qualquer conteúdo substancial, destituídos de nossa substância simbólica, nossa base genética fortemente manipulada, vegetando num ambiente inóspito. Essa ameaça tripla à totalidade de nosso ser nos torna todos proletários, reduzidos a uma “subjetividade sem substância”, como escreveu Marx nos Grundrisse.”
As redes comunicativas da economia capitalista global, a biotecnologia intrusiva, e as indústrias baseadas em combustíveis fósseis destroem o mundo que produzem. No entanto, o impacto de tal destruição é distribuído de maneira desigual. Assim, Žižek enfatiza uma quarta dimensão da proletarização: a exclusão. Essa quarta dimensão introduz o corte da política, o fato de há alguns que experimentam diretamente e encarnam os processos de proletarização que outros podem continuar a ignorar. Žižek baseia-se em Ranciére: os excluídos são a parte de parte nenhuma, desprovidos de um lugar legítimo no interior do corpo social. O capitalismo comunicativo, biopolítico e baseado em carbono produz a ordem social da qual eles estão excluídos. Enquanto excluídos, eles são o ponto sintomático universal dessa ordem. Mais uma vez, trata-se de um ponto formal: na medida em que o sistema se baseia na exclusão, incluí-los significa derrubar o sistema.
A teorização zizekiana sobre a proletarização como forma de exclusão – ao invés de forma de exploração – obscurece o fato da captura e inclusão do poder do trabalho humano pelo capitalismo. Cercamentos, colonização, imperialismo e despossesão são todos processos pelos quais as pessoas são incluídas no capitalismo. A democracia liberal parlamentar, com suas promessas de direitos, participação, representação e Estado de Direito inclui os trabalhadores como cidadãos, migrantes e trabalhadores convidados. Em democracias liberais capitalistas, a inclusão é um veículo para a exploração – quanto mais trabalhadores competindo por emprego, mais baixos os salários. Sob o capitalismo comunicativo, enfrentamos uma situação em que cada vez mais pessoas trabalham de graça, somente pela possibilidade de um emprego remunerado no futuro. A premissa do “big data” é que não há nenhuma parte da experiência humana que não possa ser capturada, armazenada e explorada como uma nova fonte para o capitalismo. O capitalismo é um sistema que constitutivamente explora as pessoas, não um que constitutivamente as exclui.
O foco de Žižek na exclusão, no entanto, sublinha a divisão ou fissura constitutiva do sujeito da política. Os três primeiros processo de proletarização são inclusivos; eles se aplicam a todos e portanto são inadequados para a articulação de uma política. O quarto inscreve um corte, a marca da subjetivação. Com efeito, os três primeiros denotam uma “subjetividade sem substância,” processos contínuos, circulação sem fim. O capitalismo comunicativo, biopolítico e baseado em carbono é um conjunto de processos sem sujeito, o pano de fundo e substância social da vida contemporânea capaz de incitar, no máximo, uma ética ou um moralismo. Devemos nos preocupar com a mudança climática, com a engenharia genética, compartilhar nossa indignação nas redes sociais. A politização exige a afirmação de uma divisão, um corte no coletivo imaginário “todo mundo,” que não apenas registra efeitos sociais diferenciais mas também os vincula à violência constitutiva do sistema. Esse corte é a inversão em subjetividade sem substância.
O fato de que a base de uma política é uma fissura significa que não há garantias. Não há proteção para qualquer decisão: “nenhum Sujeito sabe”, quer seja ele um intelectual, o partido, ou as pessoas comuns. A existência de tal sujeito é um mito. Por exemplo, nenhum indivíduo jamais sabe exatamente o que quer, a verdade do seu desejo, o porque faz o que faz. A premissa fundamental da psicanálise, o conceito de inconsciente, expressa essa ideia elementar. O problema da noção democrática de soberania popular contribui também para esclarecer o ponto. Ao invés de haver um fluxo harmonioso das pessoas reais, de carne e osso, para o poder coletivo do povo soberano, há um fissura que perturba o todo, desmentindo a fantasia da totalidade ou da ordem. Por mais popular que seja a soberania, o povo e o governo não estão presentes ao mesmo tempo. Onde há o povo, reina o caos e a ruptura. Onde há governo, o povo não está presente. Na medida em que as pessoas nunca estão totalmente presentes – algumas não comparecem, outras não sabiam o que estava acontecendo, ou foram enganadas por um orador poderoso, não foram contabilizadas, discordavam completamente e preferiram excluir-se, foram impedidas de entrar – sua ausência necessária é a fissura da política. Nas palavras de Ranciére, “a realidade denotada pelas palavras “trabalhador,” “povo,” ou “proletariado” jamais poderia ser reduzida nem à positividade de uma condição material nem ao conceito superficial de um imaginário, mas designa sempre uma conexão parcial (em ambos os sentidos), provisória e polêmica, de fragmentos de experiência e formas de simbolização.” Dividido, cindido, impossível, o povo não pode ser politicamente. Ele se torna político somente como um, poucos ou alguns (nunca como encarnação direta, apenas como limite): um nos representa a todos como muitos; poucos tornam as coisas possíveis e organizam, fornecem temas e ideias; alguns fazem todo o trabalho. O povo é sempre não-todo, não apenas porque o múltiplo é aberto e incompleto, mas porque ele jamais pode totalizar-se. O governo de um líder, partido ou constituição compensa por ou ocupa o buraco da conjunção faltante entre o povo e o estado. No entanto, esse governo não é capaz de superar a divisão mobilizada pelo povo; a divisão está na raiz – o antagonismo é fundamental, irredutível.
Žižek vincula a fissura do sujeito a uma defesa de um novo mestre ou líder comunista. Um “verdadeiro mestre” nos autoriza a fazer o impossível, “a pensar para além do capitalismo e da democracia liberal como horizonte último de nossas vidas.” O mestre nos confronta com nossa liberdade, perturbando as coordenados do status quo a fim de liberar possibilidades inesperadas. Žižek toma Lênin como exemplo, o líder capaz de mobilizar os bolcheviques e torná-los mais ativos, vigilantes e engajados. “A função do mestre aqui é realizar uma autêntica divisão – uma divisão entre aqueles que querem se ater aos velhos paradigmas e aqueles que reconhecem uma necessidade de mudança.” Ao contrastar a hierarquia de uma política organizada em torno de um líder central com o horizontalismo do Occupy Wall Street, Žižek insiste que a auto-organização nunca é suficiente. Algum tipo de transferência com um líder “suposto saber” o que o povo quer é necessária: “o único caminho para a liberação passa pela transferência.”
Como a celebração de Badiou dos grandes líderes, o apego de Žižek à figura do mestre transforma o trabalho do coletivo na conquista de apenas um indivíduo, como se os que o seguissem, os que o apoiassem, não fossem de fato a fonte de sua autoridade. O seguidores criam o líder. Sim, o caminho para a liberação passa pela transferência, mas a oposição demasiado simplista entre a multidão autoorganizada e a hierarquia sustentada por um líder carismático apaga o espaço organizacional, as relações entre seguidores, membros, camaradas. O sujeito suposto saber é uma posição estrutural, produzida num espaço de transferência, não se ligando automaticamente a uma figura específica em razão de títulos ou competências. Trata-se de um efeito. Na história do comunismo, o próprio partido ocupou essa posição, assim como o fez o proletariado, o povo e um único líder, este último produzido pelo infame processo de culto da personalidade. O que importa aqui é que o partido organiza um espaço transferencial que oferece uma posição de sujeito suposto saber. Assim, podemos afirmar: não há transferência possível sem o espaço da transferência; não há ruptura com a passividade e, por conseguinte, um engajamento político direto, sem o partido. A formalização, o imperativo da organização, não se reduz à demanda por um líder.
Žižek escreve em outro lugar que “a autoridade do partido não é aquela de um conhecimento positivo determinado, mas a da forma do conhecimento, de um novo tipo de conhecimento ligado a um sujeito político coletivo.” Tal forma implica uma mudança de perspectiva, uma posição política coletiva sobre uma situação que parecia limitada e determinada pelo capitalismo. A perspectiva do partido não vem da religião, nem da lei, nem de ideias individuais, mas do efeito disciplinador da coletividade sobre seus membros. O conhecimento do partido é sempre histérico em certo sentido, na medida que não pode ser satisfeito; sua resposta é “não é isso – ainda.” O partido gera conhecimento por meio da dialética de encontros entre teoria e prática, encontros que mudam os agentes e o terreno de luta e, portanto, necessariamente excedem quaisquer soluções momentâneas que os tenham produzido. A experiência da luta transforma quem luta; as pessoas engajadas são diferentes do que eram antes, com uma nova visão a respeito de seu contexto e possibilidades. Essa nova visão, por conseguinte, afetará o entendimento da teoria. Experiências acumuladas levam a retificações, reavaliações, retornos. A descrição de Mao da teoria marxista do conhecimento é exemplar nesse sentido:
“Em todo trabalho prático de nosso partido, toda a liderança correta é necessariamente “das massas, para as massas.” Isso significa: tomar as ideias das massas (ideias espalhadas e assistemáticas) e concentrá-las (por meio do estudo, torná-las ideias concentradas e sistemáticas), em seguida, ir às massas, propagar e explicar essas ideias até que as massas as tomem como suas próprias, aferrem-se a elas e as traduzam em ação, testando a correção dessas ideias em tal ação. Depois, deve-se novamente concentrar as ideias das massas e uma vez mais retornar às massas, a fim de que as ideias vinguem e sejam levadas a cabo. E assim por diante, repetidas vezes num espiral infinito, de modo que as ideias se tornem cada vez mais corretas, mais vitais e mais ricas.”
O espiral de concentração, ação e teste é infinito. É isso e por meio disso que o partido sabe.
O modelo clássico do dilema do partido revolucionário – o tempo nunca é certo para a revolução; sempre se está precipitado ou atrasado, esperando perpetuamente pelo momento de maturidade – introduz o problema do saber do partido. Aqui não se trata somente de sua ausência de fundamento ou garantia. Trata-se da forma-partido. Manter a fissura aberta, servir de guardião da exceção, exige fidelidade à ruptura igualitária que aponta para o povo como sua causa. O saber do partido organiza o desejo; é o saber de uma falta, porque o povo é o efeito do processo que ele incita.
Embora Žižek não se junte a Badiou na demanda por um comunismo subtraído do partido e do estado, a posição dos dois filósofos coincide com relação ao comunismo histórico. Žižek escreve: “se quisermos renovar o projeto comunista como uma verdadeira alternativa ao capitalismo global, temos que marcar uma ruptura clara com a experiência comunista do século XX.” Dado que ele escreve essas linhas numa introdução a uma coleção dos escritos de Lênin publicada em conexão ao centenário da Revolução Russa de 1917, é difícil entender o que Žižek quer dizer com essa “ruptura clara.” Ele baseia-se num pequeno ensaio de Lênin intitulado “Sobre a Subida de Uma Montanha Elevada,” em que o revolucionário russo descreve a necessidade de se fazer concessões econômicas (a Nova Política Econômica) depois da guerra civil. Žižek sublinha o ponto de Lênin de que comunistas sem ilusões terão a força e a flexibilidade para “começar do começo” sempre mais uma vez. Mas que começo? Žižek diz que não podemos nos apoiar “nos alicerces da época revolucionária do século XX,” mas usa Lênin para basear seu argumento. Lênin nos ensina a tentar sempre mais uma vez, a descer a montanha para tomar um rumo diferente – assim como Mao apresenta o conhecimento marxista como um espiral infinito de aprendizado com as massas, a partir da concentração e teste de suas ideias, pondo-as em prática e aprendendo novamente.
A ruptura (não muito) clara de Žižek estende-se à socialdemocracia – derrotada juntamente com o comunismo em 1989 – bem como à regulação direta da produção pelos produtores. Ele defende que a “esquerda terá que propor seu próprio projeto positivo para além dos limites do estado de bem-estar social-democrático.” Ao mesmo tempo, ele rejeita a revolução radical como fadada ao fracasso e advoga a escolha de demandas modestas “que parecem possíveis embora sejam, na verdade, impossíveis (como o cancelamento da dívida grega ou um sistema de saúde público nos EUA). Fazer surgir o impossível permite que “ a necessidade de uma mudança universal radical… surja por meio de uma mediação com demandas particulares.” A leitura mais generosa é que Žižek estaria identificando objetivo e táticas, uma nova visão da esquerda tornada possível pela exposição dos limites do sistema. O que falta, no entanto, é a ponte entre exposição e ação. A demanda pelo cancelamento da dívida grega tem sido feita repetidas vezes, expondo a brutalidade dos alemães e das instituições financeiras da União Europeia. Na verdade, o fato dessa brutalidade sequer estava em questão: confrontada com uma crise humanitária, a UE continuava a insistir em cortes draconianos de serviços sociais gregos. Do mesmo modo, a demanda por um sistema público de saúde já está presente há muito tempo nos debates da esquerda americana; ela entra no debate mainstream como uma alternativa entre outras, a ser considerada dentro do quadro geral de busca por uma solução de compromisso entre interesses conflitantes e exigências de mercado. O fato de que o sistema não consegue atender às demandas da maioria das pessoas já está claro, e é reconhecido até mesmo pela mídia e políticos tradicionais. O que é necessário não é expor o que todos já sabem, mas transformar o descontentamento em capacidade de agir. A introdução de demandas particulares de partidos convencionais num sistema falido não é o bastante; é preciso concentrar-se no trabalho de base de organizar numa luta política de massas aqueles envolvidos em campanhas locais de temas específicos. Além disso, o foco numa demanda particular não somente obscurece a necessidade de uma política organizada que concentre, intensifique e impulsione as divisões rudimentares que já separam a sociedade mas, ainda mais fundamentalmente, ele ignora a imprescindibilidade do corpo que identifica, que encerra o povo. Aqui não há atalhos – nenhuma varinha mágica que transforme a demonstração da inadequação do sistema em seu colapso ou na construção de algo novo. Para isso, é preciso que haja organização – “deve haver o apoio de um corpo.”
As demandas convolutas de Žižek por uma ruptura clara com a experiência comunista do século XX sugerem a utilidade de uma inversão: o próprio comunismo do século XX foi uma série de rupturas, passos adiante e para trás, falhas e novos começos, ascensos e descidas, combinações e divisões. Não há um caminho direto, certo, para o comunismo (como Marx já havia nos dito no 18 de brumário de Luís Bonaparte). A “ruptura clara” deve ser com a fantasia que esconde a fissura constitutiva da experiência comunista – a fissura do sujeito.
Conclusão
A Revolução Russa de 1917 inaugurou um século de comunismo. A revolução foi irredutível a um partido único, embora o partido comunista tenha se tornado o partido fiel a ela enquanto evento. Os bolcheviques levaram a cabo a revolução como uma revolução do povo, encontrando na confusão de forças e temporalidades a força do povo como sujeito. O fato de o povo ser o sujeito da revolução significa que ele sempre e necessariamente excede o que quer que se faça em seu nome. Significa também que sua presença como povo se dissipa, falha em perseverar, na ausência do corpo fiel. Desde a derrota da experiência soviética e, para muitos, desde a dessecação ruinosa de tantos partidos comunistas envolvidos com o estado, tem sido difícil enxergar o povo como sujeito da política. Fragmentos identitários lutam – em nome de religiões, etnias, nacionalidades – mas o povo raramente se encontra aí como sujeito. A tarefa é criar o corpo que possa encontrar as pessoas. Como forma organizada de fidelidade ao evento igualitário, o partido comunista excede suas histórias específicas; essas histórias mesmas são histórias de cisões e rupturas, histórias de um fissura. Cem anos depois, tal fissura é ainda o povo como sujeito da política.
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* Publicado originalmente em inglês em Crisis and Critique, traduzido por Aukai Leisner para o Lavra Palavra.
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Jodi Dean é professora de teoria política, feminista e de mídia em Nova York, onde também está engajada em trabalho político de base. Formou-se na Universidade Princeton e obteve seus títulos de mestrado e PhD na Universidade Columbia. Seus livros abordam temas como solidariedade, condições de possibilidade para a democracia, capitalismo comunicativo e necessidade de construir uma política que tenha o comunismo como horizonte. É autora e organizadora de diversos livros. Camarada: um ensaio sobre pertencimento político é sua primeira publicação traduzida para o português. Para a edição especial da Margem Esquerda sobre capitalismo digital, assina o artigo “Neofeudalismo: o fim do capitalismo?”.
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