A nova “organização”: Adorno, indústria cultural (digital) e a extrema-direita hoje
Se quisermos pensar a “nova organização” da extrema-direita, precisamos atualizar a teoria da indústria cultural. É certo que ela já havia sido um dos principais instrumentos do fascismo, mas ela não compensava a importância do partido. O mais recente desenvolvimento das forças produtivas promoveu essa mudança.
DAVID PLUNKERT
Por Bruna Della Torre
Nos últimos anos, a influência política da mídia em geral e das redes sociais em particular cresceu de maneira ostensiva. Os exemplos pululam. Em 2009, o comediante e blogueiro Beppe Grilo fundou na Itália o Movimento Cinco Estrelas, que viria a ser uma perigosa força de extrema-direita no país. Os Estados Unidos, berço da indústria cultural, que já haviam eleito os atores Ronald Reagan e Arnold Schwarzenegger, alçaram Donald Trump, empresário e apresentador do reality show “O aprendiz”, ao comando da maior potência militar do mundo. Na Ucrânia, Volodymyr Zelensky, o comediante sem nenhuma experiência política prévia, elegeu-se com um partido fundado em 2018, cujo nome era o mesmo da série televisiva na qual ele representava um presidente, “O servo do povo”. Nayib Bukele ganhou a presidência em El Salvador, o primeiro país a ter o Bitcoin como sua moeda oficial, a partir de uma campanha no YouTube e em outras redes sociais. No Brasil, Jair Bolsonaro, político de carreira, porém irrelevante no cenário nacional, tornou-se conhecido a partir da disseminação de vídeos no YouTube nos quais as coisas criminosas que dizia eram acompanhados da música “turn down for what?” [para que pegar leve?]. Ainda por aqui, somos obrigados a ler nos maiores jornais do país, semana sim outra também, que um grande nome para uma “terceira via” nas próximas eleições é um cidadão cujo maior destaque profissional é substituir Faustão em seu programa dominical.
O que vários desses políticos têm em comum? Além do caráter espúrio, eles partilham do fato de que não dependeram de grandes partidos para se eleger, se tornarem elegíveis ou ganhar força política. Muitos deles recorreram a “partidos Uber”, partidos secundários que tiveram uma função meramente formal em sua eleição. Hoje, Bolsonaro sequer é filiado a um partido. Para a projeção política dessas figuras, as mídias e redes sociais foram muito mais importantes do que o partido. Não é novidade que a ascensão da extrema-direita nos últimos anos esteve diretamente ligada à nova infraestrutura digital que transformou o capitalismo após a crise econômica de 2008. A atuação da empresa Cambridge Analytica em dezenas de eleições não nos deixa a menor dúvida quanto a isso. Entretanto, o debate a respeito da relação entre política e tecnologia tem ficado restrito ao problema da extração de dados, da vigilância e do tecnoautoritarismo. Não que esses problemas sejam menores. Não são. Mas, salvo engano, não dão conta inteiramente do problema que estamos enfrentando. Expressões nebulosas como “fake news” e “pós-verdade”, embora busquem explicar como a manipulação acontece por meio dessas redes, também não parecem suficientes para explicar o sucesso político dessas figuras. Curiosamente, a principal linhagem do marxismo que tratou da relação entre propaganda, fascismo, tecnologia, cultura e capitalismo – a Escola de Frankfurt – é pouquíssimo retomada. Abaixo seguem algumas considerações a respeito de como as reflexões de Theodor W. Adorno podem nos ajudar a compreender o momento presente.
Em 1967, Adorno desceu de sua suposta torre de marfim e foi até a Áustria, a convite da Liga de estudantes socialistas, para debater o novo radicalismo de direita, em ascensão na Europa naquele período. Na Alemanha, o NPD (Nationaldemokratische Partei Deutschlands), fundado em 1964, uma das forças neonazistas mais significativas desde o fim da guerra, ganhava cada vez mais capilaridade no corpo social. O segredo de seu sucesso, afirma Adorno, estava relacionado ao conceito “organização”. Este se apresentava como um movimento para além de qualquer sectarismo partidário. Apostando no efeito Bandwagon, isto é, na ideia de que as pessoas, em um movimento típico de manada, tendem a apoiar aquilo ao qual a maioria adere, o partido se comportava como se já possuísse forte apoio popular. Com o slogan “agora podemos novamente escolher”, ele recorria a uma velha tática utilizada por Goebbels, de desqualificação da política por meio crítica aos “partidos do sistema”, que o NPD rebatizava de “partidos licenciados”, partidos autorizados pelos poderes dos Aliados a atuar na Alemanha Ocidental do pós-guerra. Contrapondo-se à velha política, eles vendiam a abolição da liberdade como a verdadeira liberdade. O “movimento” simulava um descolamento da forma tradicional do “partido” e, com isso, reforçava a aparência de caráter espontâneo e distante dos interesses políticos e econômicos que orientam a Realpolitik institucional. Como fez isso?
Por meio da propaganda, diz Adorno. A partir daí podemos inferir uma tese das mais originais: a indústria cultural é a nova “organização”. Ela pode substituir um partido de massas na construção do fascismo. Não é difícil perceber a atualidade que tem essa reflexão para a compreensão dos casos supracitados.
O que é e o que não é indústria cultural
Conceitos como fetichismo, alienação e ideologia não figuram no hall da fama do marxismo, apesar de serem imprescindíveis para a compreensão do capitalismo na obra de Marx. As teorias da dominação são frequentemente vistas com desconfiança. A teoria da “indústria cultural” é uma dessas teorias e há muitos mal-entendidos em sua recepção. Por isso, vale fazer algumas considerações rápidas para que possamos desfazer essas confusões e atualizar o conceito.
Indústria cultural não é sinônimo de arte popular. Tampouco é um adjetivo para designar “cultura de gente alienada” ou “arte reificada”. Não faz o menor sentido, para Adorno, utilizar essa expressão para designar programas e músicas específicos, pois indústria cultural não é um conjunto de bens culturais. Tampouco se trata de confundir cultura de massas com cultura do “povo” – o termo “massa” utilizado pela teoria crítica refere-se sempre à teoria de Freud e remete, portanto, a uma teoria do enfraquecimento do “eu”. Ademais, indústria cultural não se resume ao problema da comercialização da arte, conforme pensam alguns sociólogos – embora o tornar-se “mercadoria”, no sentido marxiano do termo, esteja em seu cerne.
Indústria cultural é, em primeiro lugar, uma crítica dialética, marxista da cultura. A expressão “cultura de massas” cede lugar à “indústria cultural” justamente para não dar a impressão de que se trata algo espontâneo que emana das massas. Nessa chave, o termo remete ao processo de monopolização da cultura no capitalismo tardio. Indústria cultural trata de reificação e de como esta, enquanto processo objetivo e oriundo da dinâmica do capital, está presente na esfera do lazer como prolongamento da esfera do trabalho. Em seus muitos ensaios a respeito do tema, Adorno insiste no caráter sistêmico da indústria cultural, isto é, no fato de ser um sistema de socialização e subjetivação composto pela televisão, cinema, revistas, rádio, best-sellers, moda, esportes, horóscopo, etc., enfatizando como seus efeitos na percepção e na experiência não podem ser percebidos imediatamente (até mesmo porque a maior parte deles é inconsciente). Ou seja, não basta estudar um programa ou um meio técnico para compreender seu efeito enquanto sistema. Este está ligado ao surgimento da reprodutibilidade técnica, teorizada por Walter Benjamin. Nesse sentido, a teoria da indústria cultural é uma agenda de pesquisa, ainda em aberto. Quem quiser saber mais sobre isso, há um roteiro de leituras introdutórias aqui.
Mas a indústria cultural não se resume a uma agenda de pesquisa relacionada à arte e à cultura. Ela é também uma teoria política. A cartelização da cultura durante a República de Weimar e sua concentração nas mãos da reação, personificada na figura de Alfred Hugenberg, levara Adorno a se interessar pela imprensa, pelo rádio e por outras manifestações culturais e artísticas como um dos principais elementos explicativos da ascensão do fascismo. De um lado, pela mesma razão de sempre, ou seja, pela maneira como a grande mídia – naquela época, o rádio e o cinema, hoje, as redes sociais e a internet – veiculam a agitação antidemocrática. Assim como o rádio carregava o agitador das ruas para dentro da sala de estar, atualmente esse chega até as nossas mãos onde quer que estejamos por meio dos smartphones e das redes. Mas Adorno, por outro lado, preocupava-se também com a forma social da indústria cultural, a partir da qual se solapam as subjetividades, se moldam os desejos, se constrói e se reduz a linguagem com a qual nos comunicamos, se reorganiza a apreensão do mundo por meio de estereótipos, se produzem as identificações com as super stars, que preparam também identificações com líderes políticos fascistas que assumem esse modelo. Conforme destacam Adorno e Horkheimer, a indústria cultural “assume a forma de uma autoridade desinteressada, acima dos partidos” (2006, p. 132). Trata-se de um conceito fundamental para entender o fascismo, pois nela se fundem cultura e publicidade, e, quando se tornam indiferenciadas, a propaganda do existente e a propaganda fascista apresentam-se, elas também, como algo que paira acima da política.
Indústria cultural digital e a extrema-direita hoje
“O fato é que nos tornamos péssimos distópicos – e nossos intelectuais tecnófilos, apaixonados pelo Vale do Silício e por termos como ‘inovação’, são em parte culpados.” Difícil não concordar, a esta altura do campeonato, com a observação de Evgeny Morozov (2018, p. 133). Nem mesmo Adorno foi capaz de prever as proporções e a abrangência que o sistema indústria cultural poderia assumir. Se quisermos pensar a “nova organização” da extrema-direita, precisamos atualizar a teoria da indústria cultural a partir de uma consideração materialista de seus novos desdobramentos econômicos, políticos e culturais.
Antes do advento da internet, os agitadores antidemocráticos precisavam ir às escolas, igrejas, rádios, fábricas, à televisão, etc. Em todos esses lugares e meios, em menor ou menor grau, o acesso possui regras e é limitado. É certo que a indústria cultural já havia sido um dos principais instrumentos do fascismo, mas ela não compensava a importância do partido. O mais recente desenvolvimento das forças produtivas promoveu essa mudança. O surgimento das redes sociais derrubou qualquer barreira para esse tipo de agitação, deslegitimou inclusive os meios de comunicação mais tradicionais e tirou de cena o partido de massas. As redes sociais possuem mais capilarização social que qualquer organização jamais sonhou. As campanhas políticas passaram a ser feitas principalmente a partir das redes, vários dos políticos citados no início deste texto sequer se deram ao trabalho de aparecer em debates televisionados e, vale repetir, a importância do partido em sua eleição foi secundária.
Além disso, concorre para o sucesso desse novo radicalismo de direita o fato de que a indústria cultural, em sua versão digital, continua a se apresentar como “autoridade desinteressada”. Seu caráter econômico se esconde por trás da gratuidade de seus produtos e se torna ainda mais nebuloso pelo fato de que somos nós que produzimos e compartilhamos grande parte dos conteúdos que as alimentam. Como “autoridade desinteressada”, ela não só se apresenta como algo que “paira” acima dos partidos, como torna-se o veículo ideal para uma direita que visa aparecer como alternativa à velha política. O lema bolsonarista “meu partido é o Brasil” visa justamente ultrapassar qualquer sectarismo partidário. Dispensando o partido ou tornando-o secundário, a direita recorre a essa forma acima de qualquer suspeita: as redes sociais.
A nova infraestrutura em questão, no entanto, não criou apenas a base material dessa “indústria cultural digital”, mas igualmente a forma “cultural” que ela assume: o dispositivo binário e behaviorista do “like/dislike”, o efeito de lock-in ligado à monopolização dessas redes e o risco do vício (comparável ao do açúcar e do tabaco), a manipulação das emoções por meio da propaganda direcionada, a lógica do “cancelamento”, da “lacração” e do “tribalismo” (LANIER, 2018, p. 142) entre outras, forneceram o modelo da sociabilidade virtual e das formas de socialização a ela conectadas – para nem mencionar o emprego de estratagemas como bots, algoritmos e disparos em massa com fins de manipulação política nas redes. Nas palavras de Morozov, “eles continuam escavando a nossa psique tal como as empresas de petróleo escavam o solo” (2018, p. 166). Quanto mais direcionada e personalizada é a sua propaganda, menos partidária ela parece.
Trata-se, portanto, de uma convergência entre um aparato objetivo extremamente abrangente e um modelo de subjetivação que favorece imensamente a extrema-direita. O novo radicalismo de direita mobiliza uma política refratária ao diálogo e à reflexão, que está profundamente conectada ao caráter das redes sociais devido, por exemplo: à política do engajamento da atenção que favorece a radicalização de conteúdos produzidos e expostos na rede por meio da utilização de iscas de forte apelo emocional; à capacidade de produzir a sensação de participação política; à “liberdade” para veicular conteúdos preconceituosos sem responsabilização jurídica, na maioria das vezes; à escolha por algoritmos do que as pessoas consomem nessas redes, que produz circularidade de conteúdos e exclusão de tudo que é diferente, facilitando a formação de in-groups e out-groups (ver: Adorno, “A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista“). Esses elementos, entre outros, retroalimentam um autoritarismo cujas bases podem ser as mais variadas possíveis, dilatando-as a ponto de torná-las significativas para a vida política.
Num mundo de precariedade econômica e social que nos coloca num estado permanente de ansiedade, as redes sociais se apresentam como um bálsamo para o sofrimento. Elas ocupam os muitos espaços vazios, de espera e prometem nos livrar de nosso sofrimento a cada mensagem, “meme”, vídeo, etc. Também assim elas garantem maior engajamento que qualquer programa político-partidário.
Por isso, não custa terminar lembrando, com Adorno e Horkheimer (e Marx) que “a indústria só se interessa pelos homens como clientes e empregados e, de fato, reduziu a humanidade inteira, bem como cada um de seus elementos, a essa fórmula exaustiva” (2006, p. 121). Sendo assim, precisamos considerar que a indústria cultural digital nada mais é do que business as usual, embora o “digital” pareça ter se autonomizado em relação ao político e ao econômico. Para isso, precisamos reconhecer a insuficiência das interpretações do fenômeno das redes sociais, por exemplo, a partir de suas contratendências. Análises que se concentram exclusivamente na “agência” das pessoas nas redes sociais recaem no erro de analisar o capitalismo por meio do consumo e numa visão liberal que confia no mercado como a melhor forma de desenvolvimento de nossas subjetividades.
Em sua palestra sobre o radicalismo de direita, Adorno faz um alerta importante: não somos nós, da esquerda, que temos o domínio político e econômico sobre a indústria cultural e sua máquina de propaganda. Embora sejamos obrigadas a habitar as contradições sob as quais vivemos e façamos nossas disputas com o que temos, não podemos nos iludir quanto a isso e é preciso ter um programa. Nesse sentido, é importante retomar uma crítica mais ampla da indústria cultural enquanto forma social e cultural em conjunto com o debate sobre a “política dos dados”, pois a ascensão da extrema-direita tem mostrado que não se trata apenas de manipulação política, mas de um aparato que está sendo capaz, em certo sentido, de transformar as formas tradicionais de “organização”.
Talvez tenhamos perdido nossa capacidade de imaginar distopias, pois todas as que conhecíamos se tornaram realidade. Aquilo que Fredric Jameson chamou de “pós-modernismo” e Mark Fisher de “realismo capitalista” tem justamente a ver com o fato de que nosso horizonte de expectativas encolheu-se até o ponto de quase desaparecer. Isso está muito presente no debate sobre tecnologias e redes sociais. O mundo pós-2008, tão perto no passado, no qual vivíamos sem iPhone, Facebook, Twitter, Uber e AirbnB, parece inimaginável. Precisamos, talvez, então, junto com nossa crítica à indústria cultural, ampliar nossas capacidades utópicas.
Bruna Della Torre participou com Maria Lygia Quartim de Moraes e Helena Silvestre da mesa Marx, gênero e feminismo, que integrou a programação do Dia M de 2021. A mediação foi de Barbara Araújo.
Referências bibliográficas
ADORNO, Theodor W. Aspekte des neuen Rechtsradikalismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2019.
ADORNO, Theodor W. Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
ADORNO, Theodor. W., HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos Filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
ADORNO, Theodor, “A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista“, Margem Esquerda n. 7/Blog da Boitempo.
FISCHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo, a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997.
LANIER, Jaron. Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018.
MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2018.
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Bruna Della Torre é professora substituta no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília, editora executiva da revista Crítica Marxista, pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos de Teoria e Mudança Social (Labemus) e membra fundadora da coletiva Marxismo Feminista. Realizou pós-doutorado no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, doutorado em Sociologia (bolsista Capes) e mestrado em Ciência Social (bolsista Fapesp), todos na Universidade de São Paulo.
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