Capitalismo comunicativo e a forma revolucionária

Mundo, indivíduo, rede ou partido? Jodi Dean defende o partido como a forma capaz de traçar estratégias, de planejar e de se organizar com o olhar para a revolução no capitalismo comunicativo.

Por Jodi Dean.

Este ensaio leva em consideração a forma política pressuposta em questões de resistência e revolução. Ele situa a resistência e a revolução no capitalismo comunicativo, um arranjo caracterizado pela intensa desigualdade na qual o “vencedor leva tudo”, pelo declínio da eficiência simbólica e pela mudança do valor de uso para o valor de circulação dos enunciados comunicativos. Ele mostra como essa configuração flexiona o corpo que a resistência e a revolução pressupõem. É o mundo, o indivíduo, a rede ou o partido? Eu argumento que o partido é a forma que devemos assumir quando perguntamos sobre revolução, porque é o partido que tem a capacidade de traçar estratégias, de planejar e de se organizar com o olhar para a revolução.


Qual a forma política que nós pressupomos (ou negligenciamos) quando fazemos perguntas sobre resistência e revolução? Reflexões sobre revolução – se estamos em um momento ou era revolucionária, se nosso tempo é revolucionário, se a revolução está no horizonte e o que isso pode significar – não são simples assuntos para descrições acadêmicas. Elas têm importância política. Não podemos ser neutros(a) em relação à revolução, isentos(as) na resposta; a resposta tem impacto nas nossas ações – como nos preparamos, em que direção investimos? Eu estou interessada na forma em que nossa ação assume, na forma que a ação se torna possível, na forma que pressupomos quando nos perguntamos sobre resistência e revolução (KORNBLUH, 2019). Minha afirmação é que a forma imperativa para nós hoje é o partido comunista – um partido comprometido com a abolição da propriedade privada, em fazer a produção, a circulação e a reprodução servirem ao povo, ao invés de subordinar o povo à imperativa acumulação de capital. 

Revolução em rede? 

A resistência e a revolução são necessariamente progressivas? Pode a revolução operar como contrarrevolução (ou é a própria contrarrevolução o apagamento da revolução como ruptura necessária para a mudança progressiva)? A resistência é apenas uma defesa do status quo (ou talvez o conjunto de respostas reativas à repressão que incita a intensificação da repressão)? Deve a esquerda abraçar a revolução? A resistência? Ou há algo de conservador nelas? Seriam esses termos oriundos de uma linguagem de derrota que agora devem ser jogados fora e superados? (MAGUN, 2013).

Ao considerar essas questões, nós podemos começar notando a diferença entre a ideia moderna de revolução, como uma ruptura radical, e a noção antiga de revolução, como um círculo de regimes, da monarquia à aristocracia, à oligarquia, à democracia, e então à tirania. Nesta noção antiga, revolução não é uma ruptura radical. É o incessante retorno. 

A tecnologia é nossa correlação contemporânea da visão antiga e preservada da revolução. A cada ano, ou semestre, existe uma descoberta revolucionária de iPhones, carros autônomos, reconhecimento facial, Big Data, tecnologias de vigilância etc. Essas “revoluções” tecnológicas mantêm o status quo capitalista, intensificando sua aderência prática e material às nossas vidas. Nós andamos em círculos, com novos aparelhos e “atualizações” que produzem lixo, apagam empregos e promovem distrações. 

A ideologia contemporânea da revolução tecnológica sustenta o entrincheiramento da hierarquia. Isso acontece por conta da estrutura da lei de potência de redes complexas. Em Linked: A Nova Ciência dos Networks, Albert-László Barabási define as características formais de redes complexas, redes caracterizadas por livre escolha, crescimento e apego preferencial (BARABÁSI, 2002) . Essas são redes onde pessoas voluntariamente fazem ligações ou escolhas. Os sites vinculados ou o número de conexões por site cresce com o tempo, e as pessoas curtem coisas porque outros a curtiram – essa é a parte do apego preferencial. Um exemplo: a maioria de nós já teve a experiência de olhar para um restaurante na rua e ver um que mal tem pessoas, e outro com muitas pessoas. Nós tendemos a ficar hesitantes sobre aquele que não tem muitas pessoas – por que não tem ninguém ali? Aquele com muitas pessoas deve ser bom (então nós podemos ficar dispostos a esperar na fila ao invés de comer no lugar com muitas mesas disponíveis). Ou ainda, pense sobre isso em relação a textos teóricos – nós temos um incentivo para ler livros e artigos que outras pessoas estejam falando sobre. Se ninguém está falando dele, então temos que fazer um esforço maior para fazê-lo parecer importante. Esse é, então, o apego preferencial – pessoas gostam de coisas que outras pessoas gostam. A parte da lei de potência nos conta sobre a forma de distribuição. É geralmente o caso do livro, do restaurante, ou do site mais popular na internet que tem aproximadamente duas vezes mais links/acessos do que o segundo mais popular, que tem duas vezes mais que o terceiro mais popular, e assim por diante até as diferenças insignificantes entre aqueles de baixo na cadeia alimentar, aqueles na longa cauda da curva de distribuição. O “vencedor leva a maioria” ou a regra 80/20 é a característica de redes complexas. Aquele no topo tem significativamente mais do que aqueles embaixo. A forma que a distribuição toma não é uma curva de sino; é uma cauda longa. A pessoa mais popular no Twitter tem cerca de 100 milhões de seguidores; aqueles ranqueados em nono ou décimo têm por volta de 50 milhões de seguidores, enquanto a média das pessoas tem cerca de 200 seguidores.

Em uma configuração de redes complexas, existe uma vantagem de ser o primeiro – todo mundo é influenciado por decisões daqueles que vêm primeiro (de novo, trata-se da parte de um apego preferencial). A estrutura de rede induz competição – por atenção, recursos, dinheiro e trabalhos – em qualquer coisa que é dada como uma forma de rede (DEAN, 2012, p.119–156. Isto leva, então, a dois pontos-chave sobre redes complexas: aqueles que chegam primeiro têm uma vantagem e escolha livre, crescimento e apego preferencial produzem hierarquias – lei de potência onde aqueles no topo têm vastamente mais do que aqueles embaixo. Outra maneira de expressar o mesmo ponto: hierarquias são inerentes às redes. Elas não são imposições transcendentais. Hierarquias surgem de escolhas livres, crescimento e apego preferencial. Livrar-se delas, combatê-las, requer uma imposição, um corte, uma disrupção do sistema que o produz. Livrar-se de hierarquias imanentes requer política. Alguém pode pensar em um espaço ou organização de trabalho: vinte por cento das pessoas fazem oitenta por cento do trabalho. Em salas de aula, seminários ou grupos ativistas, algumas pessoas tomam todo o espaço. Um pequeno número de pessoas tende a falar mais. Tornar o espaço igual requer uma intervenção. 

Eu enfatizei a estrutura de redes complexas porque essa é a característica chave do capitalismo comunicativo, das condições nas quais a gente se encontra. A gente vê esse padrão em todo o lugar: o setor financeiro, por exemplo, “UBS está no topo do ranking com $2.402,8 bilhões ativos sob gestão, mais do que o dobro do seu rival mais próximo (UBS é um banco suíço de investimento multinacional; em segundo lugar vem o Bank of America – Merril Lynch”. Nós vemos o padrão na receita das transportadoras: a maior é Maesrk, com 40.3 bilhões de dólares, a segunda maior é o grupo Mediterranean Shipping, com 28.2 bilhões de dólares, e a terceira maior é o grupo CMA CGM, com 15.7 bilhões de dólares. E nós vemos isso nos fundos de doação das universidades britânicas – em primeiro lugar, Cambridge com 3.25 bilhões de libras esterlinas, em segundo lugar a Oxford com 3.08 bilhões, em terceiro lugar, Edinburgh com 424 milhões, em quarto lugar, Manchester com 235 milhões.

Revolução de quem?

Nos Estados Unidos, uma revolução é celebrada desde que seja republicana. Estou pensando na revolução Reagan, que desviou o significado comunista da revolução operativo ao longo do século XX. Nós poderíamos também destacar o movimento Tea Party, que explicitamente evocou e se alinhou com a Revolução Americana. Essas reapropriações de direita nos mostram que nos EUA a supressão da mudança radical se tornou o nome para o que antes designava a mudança radical. A contrarrevolução expropriou o nome da própria revolução. 

Liberais tendem a rejeitar qualquer tipo de revolução. Os social-democratas também dispensam, desacreditam e temem a revolução. Geoff Mann no livro In the Long Run We’re All Dead [No longo prazo, estamos todos mortos] apresenta o liberalismo keynesiano ancorado no medo da revolução (MANN, 2017). A Revolução deve ser evitada a todo custo. Uma revolução em qualquer forma deve ser temida, rejeitada. De direita ou de esquerda – não importa. Numa repetição da tese de “totalitarismo” do centrismo liberal, o medo mobilizante é o do extremismo. Manter a ordem supera a luta por justiça. 

Existem bons motivos para perguntar sobre a prevalência da revolução para a esquerda. O termo foi reapropriado e desacreditado. Alguns esquerdistas são, eles próprios, céticos sobre a revolução como uma força progressiva. Existem alguns anarquistas, por exemplo, que rejeitam a ideia de tomada de poder, como John Holloway (2002). Eles defendem diferentes tipos de transformação – em relações pessoais, formas de vida, jeitos de se relacionar com a natureza. Ao invés de uma escolha verdadeira – nós podemos tomar o poder, apenas não queremos – essas posições anarquistas refletem a contemporânea e profunda incapacidade da esquerda, sua desconexão com o trabalho organizado e produtivo, isto é, da base material de sua política (DEAN, 2016). Mesmo Slavoj Žižek (dificilmente um anarquista), diz que “em sociedades ocidentais desenvolvidas, o chamado para uma revolução radical não tem poder mobilizador. Apenas uma modesta escolha ‘errada’ pode criar condições subjetivas para uma real perspectiva comunista” (ŽIŽEK, 2017). Faz sentido enfatizar a eficácia prática de “escolhas erradas”, digamos, demandas populares com poder de mobilização levantadas a fim de construir impulso, treinar quadros, desenvolver conexões dentro e entre as pessoas e assim por diante. Mas deve haver algum tipo de corpo capaz de criar demandas em primeiro lugar. A própria ideia de um chamado ou demanda pressupõe um coletivo político ativo. Além disso, é enganoso posicionar as demandas populares ou um programa mínimo como uma alternativa para um “chamado” pela revolução. Como Žižek sabe, não se pode clamar por uma revolução (uma revolução não pode ser reduzida a uma ocupação ou insurreição). As revoluções nos chamam – as revoluções produzem seus revolucionários (LUKÁCS, 2012). Chamar a revolução é um gesto vazio. As revoluções ocorrem quando a classe dominante não pode continuar a governar da velha maneira e a classe trabalhadora se recusa a continuar da velha maneira (na formulação clássica de Lênin). As revoluções são reais; elas acontecem, quer queiramos ou não. Podemos nos preparar para elas, tentar evitar que sejam anuladas por um estado repressivo, mas nenhuma pessoa, na verdade, nenhum partido ou grupo pode fazer uma revolução.

Resistência é fútil  

E quanto à resistência? Vinda dos EUA, onde a resistência foi declarada após a eleição de Trump, cansei-me da ideia. Hillary Clinton afirma fazer parte da resistência. Todo o establishment de Washington comparecendo ao funeral do senador republicano John McCain se apresentou como a resistência. A imagem da resistência nos EUA, é, portanto, a imagem de uma seção da classe capitalista. O conflito que vemos na mídia tradicional é um conflito de elites. A resistência é um grupo de capitalistas resistindo ao outro – ou, melhor, performando a resistência para manter viva a ilusão de democracia o suficiente para evitar uma revolução.

Alguns podem querer apontar para os alunos do colégio Florida Parkland que organizaram o massivo comício anti-armas em Washington, DC, como uma parte importante da resistência. Suas ações foram louváveis, inspiradoras; eles fizeram um verdadeiro trabalho de organização. Mas a recepção desesperada da mídia soou como “e apenas uma criança os conduzirá”. As propostas reais eram provisões de controle de armas bastante tíbias.

Nos EUA, as lutas das comunidades oprimidas são frequentemente descritas em termos de resistência. A própria sobrevivência é apresentada como resistência. Isso torna a manutenção do status quo como uma vitória política. A política é reduzida à posição defensiva de resistir a um ataque. O horizonte de luta é exatamente onde estamos – continuar sob imperialismo, racismo, patriarcado, capitalismo.

Resistência é um termo de derrota. Concede o terreno da luta, como se o que temos fosse o suficiente, como se isso fosse adequado, como se manter o status quo fosse possível sob o capitalismo e as mudanças climáticas. Não apenas o status quo está ancorado na exploração, expropriação, racismo, sexismo e imperialismo, mas está se movendo e mudando. O sistema depende de crise, guerra, desastre. Capitalistas são abertos sobre isso: “disrupção” é algo considerado legal nos negócios; “destruição criativa” é um objetivo capitalista. Podemos também acrescentar como os nacionalismos contemporâneos se apresentam como uma espécie de resistência – resistência aos migrantes, à globalização, ameaças imaginárias às suas comunidades imaginárias. Revolução é Real. A resistência é imaginária.

Em suma, a questão se a resistência e a revolução são progressivas nos pressiona a pensar em apropriação/ressignificação e política/luta política. E esses são termos que têm de ser pensados juntos.

O declínio da eficiência simbólica

No que não precisamos nos concentrar (nem fazer muito caso sobre) é definir nossos termos. O motivo curto é porque as definições, a nomenclatura, fazem parte da luta política. O motivo mais longo tem a ver com outra característica do capitalismo comunicativo – a mudança que ocorre na linguagem quando a comunicação se funde com o capitalismo, ou seja, quando a comunicação é central para a acumulação de capital. No século XXI, a comunicação desempenha um papel fundamental no nível da produção, do consumo e da circulação das mercadorias e dos recursos naturais. Por causa do aumento da mídia em rede, da informatização e das redes de comunicações globais, a comunicação fornece o recurso para acumulação, funciona como meio de acumulação e trabalha como uma ferramenta para acumulação (para mineração e processamento de dados comunicativos).

Dois impactos interrelacionados da fusão do capitalismo e da comunicação são a perda do valor de uso de enunciados comunicativos e o declínio da eficiência simbólica. No que diz respeito à perda do valor de uso de um enunciado: minha afirmação aqui é que a circulação eclipsou o significado. O fato de algo ser compartilhado online não depende do que isso significa. Depende de sua capacidade afetiva. O item compartilhado manifesta afronta: é engraçado e divertido? Prestamos menos atenção ao significado de um enunciado do que à sua dimensão afetiva, que é mais poderosa quando contém significados diferentes e conflitantes (DEAN, 2010). A ideia do declínio da eficiência simbólica vem de Slavoj Žižek (2016). Ele designa a perda de símbolos compartilhados, de ideias e normas gerais, de uma sensação de que sabemos o que outra pessoa quer dizer quando apela ao lar, ao bem comum, à cidadania, à universidade etc. Apontar para qualquer uma dessas fontes convencionais de autorização e autoridade poderia indexar algo socialmente benéfico. Poderia também exigir acordos de opressão e exclusão. Como ponto de referência, nenhum deles é claro. Este declínio na eficiência simbólica é expresso na linguagem do dia a dia quando as pessoas dizem, “todos têm sua própria definição”. Não há um significado compartilhado que se pode invocar em um conflito ou discussão.

Existem vários sintomas da mudança do valor de uso para o valor de circulação do enunciado e o declínio da eficiência simbólica. Já mencionei a primazia do afeto no compartilhamento nas redes sociais e a maneira como as pessoas dizem que “todo mundo tem sua própria definição”. Outros sintomas incluem a maneira como o termo “fake news” de Donald Trump se tornou amplamente aceito como um descritor para praticamente todo o conteúdo de mídia (especialmente conteúdo com o qual se discorda). O termo pegou em parte porque estendeu o que o comediante Stephen Colbert já havia chamado de “veracidade”. A intensidade do policiamento da linguagem, especialmente na esquerda, também é sintomática. Por causa da ausência de um entendimento comum, uma ordem simbólica, muitos de nós não temos confiança nas palavras uns dos outros. Quando você diz “feminismo”, como posso saber se você não se refere apenas ao feminismo branco? Quando você diz “mulheres”, como posso saber se você está incluindo mulheres trans? Quando você diz “presos”, como posso saber se você está levando em consideração presos com deficiências? O policiamento da linguagem faz circular as intensidades da indignação em rede no contexto do declínio da eficiência simbólica.

Um último sintoma da instabilidade da linguagem que atesta as mudanças que acompanham a fusão da comunicação com o capitalismo: a perda de confiança na informação. Na década de 1980, os hackers nos disseram que “a informação quer ser livre”. Nestes tempos, fica claro que a informação não é suficiente. Ela não existe por si só. É imediatamente contestada, disputada – de onde veio, por que foi lançada, quem se beneficia com isso? Talvez para preencher a ausência de informações como um gancho político viável, outra formulação se tornou proeminente nos EUA: “eles não se importam com …”. Após o furacão Katrina, Kanye West disse ao vivo na TV, “George Bush não se importa com os negros”. Isso foi dramático – uma declaração do óbvio de que a ideologia dominante era baseada em negação. Agora vemos inúmeras afirmações sobre a ausência do cuidado. O Senado não se preocupa com estupro. Os ricos não se importam com o resto de nós. O governo não se preocupa com as mudanças climáticas. O mundo não se preocupa com o Iêmen. A hashtag Black Lives Matter responde ao fato de que a polícia pode escapar impune do assassinato de negros. A polícia não se importa, o sistema não se importa com a vida dos negros.

Agora onipresente, o sentimento de “eles não se importam com x” não corta a ideologia dominante. Ele a expressa – é claro que os ricos não se importam com mais ninguém; é claro que homens brancos ricos no Senado não se importam com um incidente de agressão sexual de 35 anos em um colegial. Em 2018, por que esperaríamos algo melhor? Fazer a afirmação ética sobre o cuidado não politiza a situação. Apenas lamenta por ela. A direita contemporânea ampliou o “não se importar” como uma parte fundamental de seu apelo. É a extensão lógica do thatcherismo e da austeridade – esqueça o bem-estar social, o provisionamento social, a responsabilidade social. A única pessoa que se preocupa com você é você. 

Quando refletimos sobre revolução e resistência, então, não podemos confiar na eficiência simbólica dos termos. Temos que ter clareza sobre a política da questão, que significa clareza sobre o corpo ou a forma que se pressupõe quando a questão é levantada. Essa ênfase na política de questões relativas ao nosso momento é declaradamente partidária. Ela posiciona uma das formas pressupostas como a forma correta e necessária, de fato, como a única forma de dar sentido político à questão da revolução e da resistência hoje. E essa forma é o partido. Resumindo: quem quer falar de revolução tem que falar de partido

O que você quer dizer com “nós”? 

Antes eu vou definir as alternativas. A primeira opção pode ser que a forma que estamos propondo quando perguntamos sobre revolução é global. Estamos pensando em uma perspectiva do mundo, todos nós, um todo planetário. Em outras palavras, nossa presunção é um amorfo “nós”, de todos se perguntando sobre revolução – como se o mundo não estivesse dividido, como se pudéssemos tomar um satélite ou a visão do olho de Deus. Ou talvez a presunção seja que estamos todos condenados e não há nada que possamos fazer sobre isso. Uma segunda opção é o indivíduo. Estamos perguntando sobre revolução e resistência na perspectiva de um indivíduo no mundo, alguém tentando descobrir como ser um agente de mudança ou um sujeito ético. Uma terceira opção é a rede. Talvez o corpo que pressupomos quando perguntamos sobre a revolução tome a forma de uma rede de trabalhadores do conhecimento, como a universidade ou a subdisciplina da teoria crítica das Relações Internacionais. Também pode ser que tenhamos em mente alguma combinação de infraestrutura/meios de comunicação com a rede produzida por meio de nossa participação nela (basicamente, as pessoas com quem nos comunicamos nas redes sociais). A quarto opção pressupõe uma parte. Quando investigamos o caráter revolucionário (ou não) de nosso momento, nossa premissa é a divisão. Nós perguntamos na perspectiva de um corpo que toma lado em uma luta, seja em nome da nação, de uma classe, de uma categoria demográfica ou de um partido político. Historicamente, o partido mais preocupado com a questão da revolução foi o partido comunista. (Embora eu não desenvolva o ponto aqui, leitores de Lacan podem notar que as quatro opções de mundo, indivíduo, rede e partido correspondem aos quatro discursos de Lacan de mestre, histérico, universidade e analista).

As críticas das duas primeiras formas são familiares. O mundo está dividido. Assumir o mundo já é tomar uma perspectiva política, ocupar um lado. Num sentido, a primeira e a quarta opção (ou as posições do mestre e do resto) se sobrepõem. É o restante, o lado ou divisão, que produzem o mundo (esse é o motivo pelo qual o axioma de Badiou, “existe apenas um mundo”, é uma declaração política). Afirmar um mundo não é uma afirmação neutra, objetiva; é uma afirmação político-partidária. Da mesma maneira, o indivíduo é uma ficção, especialmente em política. A linguagem vem de outro lugar, de fora. Pessoas são vetores de ideologia, produtos e produtores de coletividades. Política é o campo de muitos. O capitalismo comunicativo sobrecarregou a forma individual a tal ponto que a forma individual se torna comandada: seja único, seja diferente, encontre-se, cuide-se, seja o seu melhor (DEAN, 2016). As injunções para ser esse indivíduo nos alerta para o interesse do capitalismo em indivíduos: sozinhos, estamos desempoderados, capazes apenas de consumir. Esse é, claro, o motivo de os comunistas sempre insistirem em solidariedade. Os muitos são fortes apenas quando estão juntos. 

Eu não digo que o indivíduo não possa ser uma forma de provocação, de crítica ou ainda resistência. Ao contrário, nós devemos olhar para a fetichização da resistência como correlata ao individualismo contemporâneo e sua preocupação com decisões éticas individuais, faça-você-mesmo, e práticas estéticas em pequena escala. A paixão pela resistência individual faz sentido dados os verdadeiros desafios de construir e manter espaços e formas de luta duradoura. O fato de haver adaptação individual para esses desafios, contudo, não deveria ser equiparado com política, especialmente política revolucionária. A apresentação de escolhas éticas individuais e micropolíticas estéticas como resistência é uma manifestação de derrota, uma maneira de apresentar a manutenção do status quo miserável como se fosse uma conquista política radical.

A questão mais interessante do corpo da política, da forma que pressupomos quando perguntamos sobre a revolução, está na diferença entre a terceira e a quarta formas – rede e parte. A rede tem muita tração ideológica. Aparece como a forma das interações comunicativas, a economia contemporânea capitalista, nossas relações sociais. Para alguns, isso demonstra a característica aditiva e inclusiva da democracia, e nos mostra que nossos objetivos são adição e inclusão sem divisão, sem um ou/ou. Mas o que significa levantar a questão da revolução e resistência da perspectiva da rede? Em qual sentido a rede é uma forma subjetiva? No sentido de algo como a “sabedoria das multidões” ou colaboração coletiva? Isso não funciona – esses fenômenos derivam de investigações. Um investigador, pessoa, ou corporação pergunta uma questão e gera um conjunto de dados de onde uma resposta é derivada.

Michael Hardt e Antonio Negri aceitam que a rede não é uma forma subjetiva mas insistem que é, no entanto, revolucionária (DEAN, 2017). À moda antiga, poderíamos dizer que seu argumento tenta demonstrar como a revolução é objetivamente necessária, ainda mais, uma característica objetiva de nosso contexto. Em Bem-Estar Comum (o terceiro livro da trilogia do Império), eles dizem que “a perspectiva da ação revolucionária tem que ser concebida no horizonte da biopolítica” (HARDT; NEGRI, 2009, p.239). Eles têm em mente a maneira que a produção e a reprodução da vida se fundem no capitalismo comunicativo. Para eles, as mudanças nas tecnologias de comunicação em rede nos direcionam para um modelo de revolução que envolve a separação do trabalho criativo, cooperativo e comunicativo da multidão do controle capitalista.

Três aspectos da revolução biopolítica são relevantes para meu argumento – sua temporalidade, cooperação e democracia. Primeiro, Hardt e Negri nos contam que a revolução não pode mais ser imaginada como um evento separado da gente no futuro. A revolução vive no presente, um presente “excedente” que já contém o futuro dentro de si. Um movimento revolucionário reside dentro da mesma temporalidade do controle capitalista. O movimento revolucionário de ser “dentro e contra” se manifesta no modo como a produtividade da multidão excede o comando capitalista. A reprodução da vida é sempre maior do que a produção capitalista. Na produção biopolítica, o trabalho necessário e o excedente acontecem ao mesmo tempo; produzir pelo capital e produzir relações sociais acontece no mesmo processo. Hardt e Negri enfatizam isso simultaneamente. E eles imaginam a revolução como um “tipo de simultaneidade” análogo, o excesso e o limite do comando capitalista sobre a produção biopolítica que ele não pode nunca capturar ou controlar inteiramente. Revolução e não revolução ocupam a mesma temporalidade. 

O segundo aspecto da revolução biopolítica é a cooperação. Para Hardt e Negri, o trabalho biopolítico é geralmente autônomo do comando capitalista, emergindo de práticas cooperativas conectadas. O capital procura capturar, expropriar e disciplinar essas práticas, mesmo que ele mesmo dependa da criatividade que sua autonomia desencadeia. 

O terceiro aspecto da revolução biopolítica é a democracia. As mesmas estruturas cooperativas e conectadas que produzem o comum geram novas capacidades democráticas. Em seu mais recente livro, Assembly, Hardt e Negri teorizam essas capacidades como “empreendedorismo”, continuando o apagamento feito por eles da política na economia (HARDT; NEGRI, 2009). De qualquer maneira, em Bem-estar comum, eles declaram que tecnologias conectadas “tornam possível o desenvolvimento de organizações democráticas na esfera política”, uma versão da familiar alegação de que “novas mídias facilitam a democracia” (HARDT; NEGRI, 2009, p.354). Por esse motivo, eles rejeitam “organizações de vanguarda”. Ecoando Tronti, eles nos dizem que partidos de vanguarda correspondem a uma diferente e anterior estrutura de trabalho, as fábricas de trabalhadores profissionais do início do século XX. Os trabalhadores desqualificados do meio do século XX encaixam com o partido de massa daquele período. A forma política atualmente apropriada a nós, eles argumentam, deve corresponder ao trabalho biopolítico e, portanto, ser democrática. Mais especificamente, eles argumentam, deve ser cooperativa, autônoma, e horizontalmente conectada. Hardt e Negri concedem que “essas capacidades democráticas de trabalho não se traduzem imediatamente na criação de organizações políticas democráticas”, no entanto, elas são boas bases sob as quais construí-las (HARDT; NEGRI, 2009, p.353). E, como eu disse, em Assembly, eles descrevem essa construção em termos empreendedores. 

O que está errado na perspectiva de rede de Hardt e Negri em direção à revolução (além daquilo que os leva a adotar a figura neoliberal do empresário)? Como eles próprios admitem, os processos da produção biopolítica não criam automaticamente os tipos de organizações políticas que precisamos. Na verdade, eu tenho mostrado que fazem exatamente o oposto. Redes complexas produzem hierarquias: os poucos no topo têm muito, o resto tem pouco. Não é de admirar, então, que o autoritarismo esteja crescendo. Os poucos querem agarrar e defender o que eles têm. No entanto, Hardt e Negri apresentam como vantagem dessa abordagem o distanciamento da forma partidária, mais especificamente, da forma do Partido Comunista que associam a Lênin. O problema aqui no entanto gira em torno da forma política – a forma da revolução biopolítica contra a forma partido.

Hardt e Negri tratam o partido de Lênin como um “contrapoder” que reflete “em certos aspectos a identidade do poder central ao qual se opõe”. Claro, a forma em rede da produção biopolítica também assume a forma de poder na qual ela se opõe – as redes de vigilância, os tratados internacionais, as corporações multinacionais, o policiamento militarizado, a produção comunicativa. Portanto, o problema que Hardt e Negri pensam estarem resolvendo não pode ser que o partido “espelhe” o poder ao qual se opõe. Ao contrário, sua periodização deixa claro que o problema é que isso não acontece. Para Hardt e Negri, o partido de vanguarda é inadequado, “anacrônico”, porque não se parece com as redes da produção biopolítica contemporânea. Reflete uma antiga forma de poder, a fábrica hierarquizada.

Mas isso está precisamente errado – como nós já aprendemos com a discussão de redes complexas. O caráter ostensivamente criativo, cooperativo e democrático da comunicação em rede não elimina a hierarquia. Entrincheira a hierarquia usando nossas próprias escolhas contra nós. E como o trabalho de Barabási deixa claro, essa hierarquia não é imposta de baixo. É um efeito imanente da escolha livre, do crescimento e apego preferencial. 

Uma forma política espelhando a produção biopolítica não seria horizontal e democrática no sentido de uma impossível e ficcional decisão de todo mundo decidindo tudo ao mesmo tempo. Esse tipo de “democracia” produz distribuições de lei de potência, nós ou resultados desiguais, vencedores e perdedores, poucos e muitos. Além disso, o fato das hierarquias emergentes sugere que uma vanguarda emergente pode bem ser a forma política necessária para lutas sob condições biopolíticas. Rejeitar a forma de vanguarda em nome de uma organização democrática ainda inexistente é fomentar as condições que produzem esta forma – os engajamentos democráticos – ao mesmo tempo que se condena seu produto, as vanguardas. A rejeição, portanto, falha politicamente porque promove as condições que produzem as vanguardas que rejeita. A estrutura das redes complexas de produção biopolítica indica que, contra Hardt e Negri, um partido de vanguarda não é de modo algum anacrônico. É a forma que corresponde às dinâmicas de comunicação em rede – e é necessária para a luta política, para apreender, coletivizar e abolir os meios pelos quais as hierarquias e extremas desigualdades são produzidas e monetizadas. 

A estrutura em rede indica um problema adicional com a rejeição de Hardt e Negri ao partido de vanguarda. Eles caracterizam o partido de Lênin como envolvendo um processo organizacional que vem “de cima” dos movimentos da multidão. Historicamente, essa insinuação é claramente falsa. Os Bolcheviques eram apenas um grupo em meio a múltiplos partidos, tendências e facções atuando no contexto tumultuoso da Revolução Russa. Eles eram ativos dentro de movimentos de trabalhadores oprimidos e camponeses. Os próprios movimentos, entre vitórias e derrotas, alianças de curto e longo prazo, novas formas de cooperação, e avanços em organização política, deram origem ao Partido mesmo enquanto o Partido fomentava os movimentos. Mais importante, porém, o Partido não era idêntico aos movimentos. O partido tem um alvo – a abolição da propriedade privada, das classes e do capitalismo e o arranjo de uma nova forma de produção coletiva e administração. Quando o partido toma a perspectiva de revolução, postula um futuro específico em torno do qual se planeja, um futuro que determina essa estratégia. Como Daniel Bensaïd aponta, quando o movimento se torna tudo e o alvo nada, existe “pouco espaço para a questão da estratégia”.

A parte revolucionária 

Isto leva à forma partido. Lembre-se, eu apresentei o partido sob o título de “parte”, daqueles no mesmo lado de uma divisão. Outras divisões políticas podem ser “nação”, “classe”, ou variadas categorias demográficas ou de identidade. Na última década, tornou-se indiscutível que categorias de identidade sozinhas são inadequadas para resistência ou revolução. O fato de alguém ser uma mulher não diz nada sobre sua política – apenas pergunte a Theresa May. O fato de alguém ser uma mulher negra não diz nada sobre sua política. O fato de alguém ser uma mulher negra da classe trabalhadora não diz nada sobre sua política. E por aí vai. A política tem que ser construída, apoiada e sustentada. A forma para esse trabalho político permanece sendo o partido. 

Já demonstrei a inadequação teórica da afirmação de Hardt e Negri de que a forma do partido é anacrônica. Nós vemos a falha política na afirmação deles todos os dias. Em todo o mundo, a direita triunfou através de seus partidos. Exemplos óbvios são Hungria, Polônia, Turquia, Estados Unidos e Brasil. A extrema-direita usa políticas eleitorais para se agarrar e amplificar o poder policial do Estado. Nós também vemos a relevância contemporânea da forma do partido nos olhos esperançosos voltados ao Jeremy Corbyn e ao Partido Trabalhista – esperançosos porque o acesso ao poder é real. O partido providencia a forma organizacional para criar estratégias, planejar, gerar e executar poder político. Então mesmo que a direita se apoie em nacionalismo para atingir seus objetivos, seus meios, seu instrumento, é o partido. Quando a esquerda deixa de usar a forma partidária, ela garante de antemão que não terá o poder de conceber, muito menos de atingir, quaisquer objetivos políticos. Ao invés de organizar o proletariado, a esquerda renuncia o campo para os já cooptados liberais e social-democratas, incapazes de endereçar o problema fundamental uma vez que eles aceitam e promovem capitalismo global. A direita preenche o vácuo, oferecendo nacionalismo como alternativa à globalização. Ao invés do capitalismo ser a causa da desigualdade e da desapropriação, imigrantes, pretos, pardos, muçulmanos são posicionados como ameaças.  Mais uma vez, a visibilidade e o poder das mulheres e das minorias sexuais são vistas como a queda da civilização.

Hardt e Negri dizem que o objetivo da revolução é “a geração de novas formas de vidas sociais” (HARDT; NEGRI, 2009, p.354). Isso não está errado – mas é incompleto. O objetivo é a geração de formas livres e iguais de vida social, econômica e política, formas de vida que são livres de opressão, materialmente seguras e empoderadas, abertas à direção coletiva pelo coletivo, a fim de satisfazer necessidades, em vez de garantir o ganho privado. Nem todas as formas de vida devem ser cultivadas – existem algumas as quais devemos nos opor. Um partido está necessariamente numa revolução porque o resultado de uma revolução não é inevitável, indeterminado. É produzido na e através de uma luta revolucionária. Para comunistas, essa luta – assim como a solidariedade que possibilita isso – é necessariamente internacional. 

Eu, recentemente, ouvi um podcast em que um poeta na Califórnia descreveu a revolução como insurreições locais que se juntam. Como elas se juntam, especialmente tendo em vista o alcance global do capitalismo? Em um cenário de declínio da eficiência simbólica, o que possibilita que elas se conectem, conversem e se entendam uma à outra? O que lhes fornece as coordenadas conceituais e políticas para se juntarem? Quando reconhecemos os desafios de comunicação mesmo dentro de uma localidade, não podemos presumir que será natural ou fácil em várias localidades distintas. E, o partido não resolverá automaticamente esses problemas. O que o partido pode fazer é se preparar para uma situação revolucionária tendo pessoas em múltiplos lugares que falem a mesma língua, que partilhem os mesmos objetivos, e tenham os mesmos critérios para descobrir o que deve ser feito. 

Hardt e Negri concebem instituições como espaços de gestão de encontros, extensão da ruptura social, e transformação de quem as compõe. A semelhança entre essas instituições e o partido é impressionante, ainda mais dada a rejeição de Hardt e Negri pela forma partido. O partido envolve um nome comum, uma linguagem e um conjunto de táticas. Ele tem práticas que estabelecem formas de se estar junto. O seu propósito é ocupar e ampliar a lacuna dentro da sociedade que a luta de classes denota. A concepção de Lênin da organização partidária prioriza flexibilidade e consistência; o partido tem e deve ter uma capacidade de autotransformação. Nesta veia, os próprios bolcheviques adaptaram a estrutura e a prática de seu partido, às vezes expandindo e às vezes encolhendo, as vezes operando acima do chão e as vezes abaixo. O que Hardt e Negri descrevem como a extensão da insurreição em um processo institucional é o partido de Lênin com outro nome. 

O partido de Lênin tem uma vantagem sobre as instituições empreendedoras de Hardt e Negri – uma vantagem articulada ao tempo. Para Hardt e Negri, a revolução é simultânea com a não revolução. Não é uma quebra com o presente, não é uma ruptura ou lacuna, mas um tipo de excesso criativo (que, eu adicionaria, o capitalismo e/como  imperialismo sempre tenta cercar e monetizar, especialmente nas redes afetivas do capitalismo comunicativo). Baseando-se em Angelo Tasca, Daniel Bensaïd critica o “‘socialismo atemporal’… sem metas ou prazos, sem interrupções ou mudanças ou ritmo”. Em contraste, Lênin reconheceu que a revolução requer estratégia e que o tempo estratégico é quebrado, “pontuado por instantes e oportunidades propícias que devem ser aproveitadas”. O partido é o ponto de orientação prática, o corpo necessário para a estratégia política. Sem um corpo para implementar uma estratégia, todas as sugestões do mundo são pouco mais do que barulho, contribuições aos circuitos do capitalismo comunicativo facilmente abafadas pelo ultraje e por filhotinhos de cachorro.

Como Georg Lukács insiste em um estudo clássico, Lênin transformou a realidade da revolução no ponto a partir do qual todas as questões foram avaliadas e todas as ações consideradas. Os bolcheviques não estavam sozinhos em antecipar a revolução. Vários partidos e tendências de esquerda na Europa e na Rússia pensavam que a revolução era iminente. A contribuição de Lênin está na compreensão dos efeitos de coordenação da revolução, a forma como sua antecipação estabeleceu as tarefas que deveriam ser realizadas. O futuro certo da revolução permitiu ao partido de Lênin escolher, decidir, se adaptar. Em alguns pontos, a revolução requer participação em eleições burguesas; em outros pontos, demanda o slogan “todo poder aos Sovietes!”. Para os bolcheviques, o fato da revolução operou como uma força de negação dentro do presente que impulsionou as práticas necessárias para navegar a revolução. 

O partido de Lênin — que às vezes é um partido de massas e às vezes um partido de quadros mais exclusivo, às vezes clandestino, às vezes parlamentar – fornece o corpo necessário para assumir uma perspectiva política, uma perspectiva determinada pelo futuro, não um futuro que diz que trará à existência, mas um futuro para o qual se deve traçar estratégias e planos. Esta abordagem para o futuro foi teorizada como “tempo projetado” por Jean-Pierre Dupuy. Dupuy introduz “tempo projetado” como um nome para “coordenação por meio do futuro”, isto é, como um termo para uma metafísica temporal na qual “o futuro contrafactualmente determina o passado, que por sua vez determina causalmente aquele. O futuro é fixo, mas sua necessidade existe apenas em retrospecto” (DUPUY, 2014, p.110). O tempo projetado assume uma inevitabilidade futura, estabelecendo essa inevitabilidade como o ponto fixo a partir do qual decidir sobre as ações presentes. O tempo projetado pode parecer estranho, mas é na verdade a temporalidade de fazer um plano. O tempo projetado não é uma predição do que vai acontecer, uma fantasia sobre o que alguém quer que aconteça, ou um conjunto de propostas relacionadas ao que deveria acontecer. Ao invés disso, um certo resultado gera os processos que levam a ele. De novo, nessa metafísica temporal, o futuro não é o efeito inevitável de uma cadeia de causas. O futuro é ele próprio a causa. O futuro produz o passado que lhe dará origem.  

O partido não faz a revolução. Ele antecipa a revolução. Providencia um espaço organizacional e linguagem para reflexão, análise, decisão e planejamento, um espaço onde a consciência política é desenvolvida e implantada. O significado de antecipação revolucionária nasce na discussão de Lukács sobre o caminho que o conceito de organização em Lênin rompe com o “fatalismo mecânico”. Consciência de classe proletária não advém “com inevitabilidade fatalística” das relações de produção ou de uma crise capitalista particular. Alguns membros de uma classe sempre serão passivos, sempre estarão no lado errado. O partido é necessário porque a política não pode ser reduzida à economia. Além do mais, a revolução não significa automaticamente a vitória do proletariado. Vitória requer luta política – decisões, planejamento e flexibilidade num cenário caótico e em constante mudança. O papel do partido é antecipar essa situação. Como Lukács escreve, “O partido deve preparar a revolução.” O futuro projetado guia as preparações do partido. Assim, para Lukács, o papel do partido como produtor é ele próprio um produto do futuro projetado da revolução proletária. O partido é um produto não apenas de eventos à medida que eles se desdobram e para o qual responde, mas também do futuro que o chama à existência, um futuro que possibilita o partido guiar as respostas em torno disto. 

Conclusão 

Eu posicionei as questões de resistência e revolução dentro da nossa configuração de um capitalismo comunicativo, um cenário caracterizado pela intensa desigualdade de winner-take-all [vencedor pega tudo], pelo declínio da eficiência simbólica, e pela mudança do valor de uso para o valor de circulação de enunciados comunicativos. Eu enfatizei a necessidade de o corpo atender à questão que a resistência e revolução pressupõem – é o mundo, o indivíduo, a rede ou o partido? Eu argumentei que é o partido, que o partido é a forma que precisamos assumir quando nos perguntamos sobre revolução porque é o partido que tem a capacidade de fazer estratégias, planejar e arranjar a si próprio com um olho na revolução. Franco Berardi recentemente disse: “nós devemos pensar sobre o futuro de um ponto de vista da psicose sistêmica, e isto significa o abandono de ação e teoria política”.  Ele traz as coisas de ponta-cabeça e de trás pra frente: o abandono de ação política e de teoria política é um sintoma de psicose sistêmica. Nós começamos a tratar essa psicose quando construímos ação política coletiva de uma orientação política comum. O partido fornece essa orientação. Nossa orientação rumo ao futuro depende do partido ser capaz de coordenar sua ação por meio do futuro que projeta. O partido comunista se orienta por meio do futuro projetado da revolução. Sob a luz desse futuro, ele valoriza a solidariedade, desenvolve práticas de cooperação e estimula o estudo coletivo.


Referências bibliográficas

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HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Assembly. New York: Oxford University Press, 2017. 
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ŽIŽEK, Slavoj. O sujeito incômodo centro ausente da ontologia política. São Paulo: Boitempo, 2016.

* Publicado originalmente em inglês no Millenium: Journal of International Studies. A tradução é de Camila Araujo Moreira e Diogo Fagundes para o Lavra Palavra.

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Jodi Dean apresenta Camarada: eu ensaio sobre pertencimento político, seu primeiro livro publicado em português e que chega antecipadamente para os assinantes do Armas da crítica, clube do livro da Boitempo:

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Jodi Dean é professora de teoria política, feminista e de mídia em Nova York, onde também está engajada em trabalho político de base. Formou-se na Universidade Princeton e obteve seus títulos de mestrado e PhD na Universidade Columbia. Seus livros abordam temas como solidariedade, condições de possibilidade para a democracia, capitalismo comunicativo e necessidade de construir uma política que tenha o comunismo como horizonte. É autora e organizadora de diversos livros. Camarada: um ensaio sobre pertencimento político é sua primeira publicação traduzida para o português. Para a edição especial da Margem Esquerda sobre capitalismo digital, assina o artigo “Neofeudalismo: o fim do capitalismo?”.

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