De mãos dadas, camaradas
Inspirado pelo livro “Camarada”, de Jodi Dean, Mouzar Benedito reúne as melhores frases e ditados sobre camaradagem, de Virgínia Woolf a Aleksandra Kollontai, passando por Guimarães Rosa, Che Guevara, Leonardo da Vinci, Anne Frank e Caio Fernando Abreu, reforçando assim a necessidade da camaradagem.
Por Mouzar Benedito.
Não viva sozinho:
Andando em dois,
Se encurta o caminho
Janeiro de 1985, minha namorada e eu fomos a uma loja da Cubana de Aviação, em Havana, para marcar um voo para o Peru. Quando chegamos lá, estava vazia, só um homem, negro, aparentando um pouco mais de 60 anos estava sendo atendido. E dava uma bronca na moça, queixando-se de um mau serviço dela. A moça tentou se justificar e começou: “Senhor…”. Pronto! Aí sim, deixou o homem bravo. Ele respondeu bruscamente: “E não me chame de senhor! Nós fizemos a Revolução para que não existam mais senhores!”.
É isso. Em vez de senhores, camaradas. O pronome camarada (ou companheiro) usado em muitos meios, como sindicatos, deve-se a esse conceito de igualdade entre as pessoas. Mais que isso, estar do mesmo lado, ter a mesma causa. Os bolcheviques deram um impulso no pronome de tratamento “camarada” com essa finalidade.
No Brasil, antigos comunistas se tratavam por camaradas. No interiorzão, camarada era como chamavam os empregados da roça. Pessoas de direita usavam o termo camarada de forma caricatural, para falar de comunistas.
Aqui, partidos de esquerda e sindicatos, a partir de um certo momento, começaram a usar o termo “companheiro” com o mesmo sentido. A ideia de camaradagem está ligada ao companheirismo, à solidariedade, fraternidade. Camaradagem é o vínculo amigável e respeitoso entre as pessoas com interesses ou afetos comuns. Quem desenvolve esse tipo de relacionamento é camarada, o que é diferente de vizinho, parente, amigo, cidadão. Exige o compartilhamento de ideias e lutas, o que nem sempre acontece mesmo entre amigos. E aliado (sobre isto há uma discussão interessante no livro que li e cito um pouco abaixo) não é necessariamente camarada. Pode vir a ser…
Vale lembrar aqui a origem do termo camaradas: pessoas que dormiam na mesma câmara, quer dizer, no mesmo quarto.
E acho que vale também contar uma historinha de quando era um dos editores do Versus, jornal alternativo de esquerda mas não alinhado a nenhuma tendência. Era um jornal “de ideias, cultura e aventuras”, que depois passou a ceder um espaço fixo para o Movimento Negro Unificado, que surgira naquele período.
No final de 1977, todo o pessoal da redação discutia se devia se tornar mais explícito como órgão de esquerda, se alinhar a alguma tendência ou não. Em dezembro, fiz uma viagem ao Nordeste e voltei no final de janeiro. Entrei na redação, tinha umas caras novas e estranhei que ninguém mais falava simplesmente Marcão, Toninho, Ana… Era companheiro Marcão, companheiro Toninho, companheira Ana… Na minha ausência, o jornal se tornara porta-voz da Convergência Socialista, e usar o pronome companheiro era uma quase obrigação entre seus membros. Não aderi. Outros colegas também não. Um casal saiu do Versus. Eu continuei, mas meio como peixe fora d’água.
O pessoal da Convergência não me hostilizava, mas eu mesmo não me via mais como parte da equipe, companheiro de militância. Fiquei uns meses e saí.
Bom… Agora li o excelente livro Camarada: um ensaio sobre pertencimento político, da estadunidense Jodi Dean, traduzido por Artur Renzo, que estará na próxima caixa do clube do livro da Boitempo, o Armas da Crítica.
É uma longa discussão sobre camaradas e camaradagem, abordando vários aspectos e considerando o Partido como ambiente propício e adequado para os comunistas. O Partido, segundo a autora, é um espaço para que a pessoa se sinta “pertencendo” a algo muito maior e mais profundo que um grupo. Não sou muito chegado a partidos, fui do PT, deixei de ser, mas a discussão é interessante. E relembrando, o PT, no início, me dava mesmo uma sensação de pertencimento. Essa sensação foi se perdendo aos poucos, e saí. Mas acredito que a camaradagem continua, pelo menos com o pessoal que gosto e tenho afinidades e que continua no partido.
Não vou entrar em detalhes sobre o conteúdo da obra, só cito um trechinho do prefácio: “O cerne do livro são quatro teses sobre o camarada: 1) ‘camarada’ dá nome a uma relação caracterizada por uma condição comum, pela igualdade e pela solidariedade (uma relação que, no entendimento dos comunistas, rompe as determinações da sociedade capitalista); 2) qualquer um, mas não todo mundo, pode ser um camarada; 3) o indivíduo (como lócus da identidade) é o ‘Outro’ do camarada; e 4) as relações entre camaradas é mediada pela fidelidade a uma verdade; as práticas de camaradagem materializam essa fidelidade, construindo essa verdade no mundo. O resto da argumentação demonstra por que a camaradagem é a forma da relação política necessária para a esquerda hoje”.
Gostei do livro, ruminei um pouco sobre minhas concordâncias e discordâncias e, em seguida, coletei um monte de frases sobre a camaradagem e conceitos relacionados a ela, às vezes fugindo um pouco do conceito da autora sobre o tema.
Aí vão.
Bob Marley: “Se todos derem as mãos, quem sacará a arma?”.
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Millôr Fernandes: “O mundo tem muitos canalhas mas, felizmente, estão todos nas outras mesas”.
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Millôr, de novo: “O ‘diz-me com quem andas que eu direi quem és’ não quer dizer nada. Judas andava com Cristo. E Cristo andava com Judas”.
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Anne Frank: “Não nos importamos em chegar a lugar nenhum quanto em não ter companhia pelo caminho”.
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Ernesto “Che” Guevara: “Se você é capaz de tremer de indignação cada vez que for cometida uma injustiça no mundo, somos camaradas – o que é mais importante.”
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Audrey Hepburn: “Pessoas, muito mais que coisas, devem ser restauradas, revividas, resgatadas e redimidas: jamais jogue alguém fora”.
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Carl Sagan: “A ilegalidade da cannabis é horrível, um impedimento ao uso total de uma droga que ajuda a produzir serenidade e a revelação, a sensibilidade e a camaradagem de que tanto precisamos neste mundo cada vez mais perigoso”.
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Provérbio africano: “A união do rebanho obriga o leão a deitar-se com fome”.
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G. K. Chesterton: “Pois a amizade implica individualidade; ao passo que a camaradagem no fundo implica a subordinação temporária (se não a supressão temporária) da individualidade. Amigos são mais fortes por serem dois; mas camaradas são mais fortes por serem dois milhões.”
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Oscar Wilde: “Em última instância, o combustível de todo companheirismo, seja num casamento ou numa amizade, é a conversa”.
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Bíblia: “Melhor serem dois do que um […] porque se caírem um levanta o companheiro”.
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Martin Luther King Jr.: “Nós temos que aprender a viver juntos como irmãos, ou pereceremos juntos como idiotas”.
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Martin Luther King, de novo: “Voamos pelo ar como pássaros e nadamos pelo mar como peixes, mas ainda não aprendemos o simples ato de caminhar pela terra como irmãos”.
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Muhammad Ali: “Os cristãos são meus irmãos, os hindus são meus irmãos, todos são meus irmãos. Nós apenas pensamos de forma diferente e acreditamos de forma diferente”.
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Paulo Freire: “Em Marx eu encontrei uma certa fundamentação objetiva para continuar camarada de Cristo”.
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Sarah Baker: “Eu admiro as pessoas que podem se apresentar por conta própria e trabalhar sozinhos, mas prefiro ter a camaradagem dentro e fora das câmaras, de trabalhar com um grupo”.
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Esopo: “Unidos venceremos. Divididos cairemos”.
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Leonardo da Vinci: “Para estar juntos não é necessário estar perto, e sim estar do lado de dentro”.
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Papa Francisco: “Algumas pessoas tratam melhor dos seus cães que dos seus irmãos”.
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Madre Tereza de Calcutá: “Ainda mais do que pão, o homem deseja companhia”.
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Charles Bukowski: “Em todos os lugares nos agarramos às paredes do mundo e, no meio da ressaca, penso em dois amigos que me aconselharam sobre vários métodos se suicídio. Quem melhor prova de camaradagem amorosa?”.
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Alphonse de Lamartine: “O egoísmo e o ódio têm uma só pátria. A fraternidade não tem”.
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Caio Fernando Abreu: “Para mim, atualmente, companheirismo e lealdade são sinônimos de felicidade”.
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J. W. Goethe: “Na camaradagem, o perigo é melhor combatido.”
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Walt Whitman: “Estávamos juntos, o resto do tempo esqueci”.
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Clarice Lispector: “Se você sabe viver com pessoas intempestivas, emotivas, vulneráveis, amáveis, que explodem na emoção: acolha-me”.
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Sêneca: “Nenhum bem sem um companheiro nos dá alegria”.
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Doc Comparato: “Uma ardente rivalidade pode se disfarçar em um aparente companheirismo”.
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Nikola Tesla: “Marconi é um bom camarada. Deixe ele continuar seus trabalhos. Ele está usando dezessete das minhas patentes”.
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Shakespeare: “O bom vinho é um camarada bondoso e de confiança, quando tomado com sabedoria”.
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André Maurois: “O homem rico tem comensais ou parasitas; o homem poderoso, cortesões; o homem de ação, camaradas, que também são amigos”.
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Émile Henry: “Camaradas, Coragem! Longa Vida à Anarquia!”.
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Antoine de Saint-Exupéry: “Nada, jamais, substituirá o companheiro perdido. Velhos camaradas não se criam. Estas amizades não se refazem: ao plantar um carvalho, é vã a esperança de poder gozar brevemente a sua sombra”.
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Kingsley Amis: “A inveja é um vício mesquinho e sórdido: vício do condenado que reclama porque o seu companheiro de prisão recebeu uma ração de sopa maior”.
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Henry David Thoreau: “Viajar sozinho, pode partir hoje. Mas viajar acompanhado deve esperar que o outro esteja pronto”.
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Virgínia Wolf: “A companhia implacável é tão ruim quanto o isolamento solitário”.
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Fernando Pessoa: “Onde você vê teimosia, alguém vê a ignorância, um outro compreende as limitações do companheiro, percebendo que cada qual caminha em seu próprio passo. E que é inútil querer apressar o passo do outro, a não ser que ele deseje isso”.
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Plauto: “Quem não sabe por que caminho chegará ao mar, deve tomar o rio por companheiro”.
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Xico Sá: “Você vale menos, companheiro / MAIS-VALIA se você gritasse o ano inteiro”.
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Marguerite Yorcenar: “Corpo, meu velho companheiro, nós pereceremos juntos. Como não te amar, forma a quem me assemelho, se é nos teus braços que abarco o universo”.
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Bíblia: “Anda com os sábios e serás sábio, mas o companheiro dos tolos será afligido”.
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Vinícius de Moraes: “Cuidado, companheiro! A vida é pra valer / E não se engane não, tem uma só”.
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Chico Xavier: “Nas lutas habituais, não exija a educação do companheiro. Demonstre a sua”.
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Francis Ford Coppola: “Eu era uma criança que mudava muito, não tinha muitos amigos. O teatro realmente representou camaradagem”.
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Eric Clapton: “Foi emocionante descobrir essa camaradagem de alma gêmea, e essa é uma das coisas que me levaram a me tornar músico”.
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Mark Twain: “Se os animais pudessem falar, o cachorro seria um companheiro desajeitado e franco, mas o gato teria a graça rara de nunca dizer muitas palavras”.
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Caio Fernando Abreu: “…não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum”.
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Guimarães Rosa: “…a colheita é comum, mas o capinar é sozinho”.
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Bezerra de Menezes: “Solidários, seremos união. Separados uns dos outros, seremos pontos de vistas. Juntos, alcançaremos a realização de nossos propósitos”.
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Solano Trindade: “Eu gosto de ler gostado, / gozando a poesia / como se ela fosse / uma boa camarada, / dessas que beijam a gente / gostando de ser beijada”.
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Ditado popular: “A simpatia dá amigos e o interesse companheiros”.
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Pra fechar, um poema de Bertolt Brecht:
TODOS OU NINGUÉM
1
Escravo, quem vai te libertar?
Aqueles que estão no fundo mais fundo,
Camarada, vão te ver.
E ouvirão o teu grito:
Os escravos vão te libertar.
Ninguém ou todos. Tudo ou nada.
Sozinho ninguém pode se salvar.
Fuzis ou correntes.
Ninguém ou todos. Tudo ou nada.
2
Faminto, quem vai te alimentar?
Se quiseres um pedaço de pão
Junta-te a nós, nós que temos fome
Deixe que te mostremos o caminho:
Os que têm fome vão te alimentar.
Ninguém ou todos. Tudo ou nada.
Sozinho ninguém pode se salvar.
Fuzis ou correntes.
Ninguém ou todos. Tudo ou nada.
3
Quem, vencido, quem te vingará?
Tu, que fostes golpeado
Junta-te às fileiras dos feridos
Nós em todas nossas fraquezas,
Camarada, vamos te vingar.
Ninguém ou todos. Tudo ou nada.
Sozinho ninguém pode se salvar.
Fuzis ou correntes.
Ninguém ou todos. Tudo ou nada.
4
Quem, perdido, que se atreverá?
Quem sua miséria não mais suporta
Pode, deve se juntar com aqueles
Que por necessidade cuidam
Para que seja hoje e não amanhã.
Ninguém ou todos. Tudo ou nada.
Sozinho ninguém pode se salvar.
Fuzis ou correntes.
Ninguém ou todos. Tudo ou nada.
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Confira Jodi Dean convidando seus camaradas brasileiros a assinarem o clube do livro da Boitempo e lerem Camarada:
Camarada: um ensaio sobre pertencimento político, de Jodi Dean, tem tradução de Artur Renzo, texto de orelha de Christian Dunker e quarta-capa de Manuela D’Ávila e será enviado em primeira mão para os assinantes do Armas da crítica, o clube do livro da Boitempo. Assine até o dia 15 de junho para garantir o livro em versão impressa e e-book , brindes, um guia de leitura exclusivo e um vídeo antecipado na TV Boitempo, além de 30% de desconto em toda nossa loja virtual.
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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em coautoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996), Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia) e Chegou a tua vez, moleque! (2017, e-book). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às terças.
Parabéns Mouzar, sempre impecável na escrita, e no verdadeiro sentido dela. Assim como você, já me senti no PT, essa sensação de “pertencimento”, sai, exatamente, no momento que que esse pertencimento, acabou. Seu texto é gratificante, gostoso de ler, como tudo aquilo que você escreve. Parabéns meu velho amigo!!!!! Abs
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