Fundamentos da atual conjuntura brasileira
Milton Pinheiro argumenta que, diante da ascensão da extrema-direita e das consequências inaceitáveis da covid-19, a esquerda deve priorizar as batalhas pela vida, lutar contra as diversas reformas golpistas, se posicionar contra as privatizações e agir em defesa dos serviços públicos.
Por Milton Pinheiro.
O exame da cena política, com as contendas que alimentam as movimentações conjunturais, é sempre analisado numa perspectiva quente porque se referenciam em contradições que em última instância operam as lutas políticas mais emergentes. Contudo, essa conjuntura, para não ficar encapsulada na lógica do politicismo institucional, deve ser analisada a partir de balizas que contribuem para que possamos entender os movimentos da história que reposicionaram os sujeitos, as organizações, as instituições e os combates no espaço das lutas de classes.
Um primeiro marco, muito importante desse movimento da história, diz respeito a forma política que operou a transição da ditadura burgo-militar de 1964 para a democracia formal em 1985, que, apesar da pressão social, foi dirigida pelas forças liberais e o consórcio das frações burguesas que vinham perdendo com o último período da ditadura, se realizando através de um pacto feito pelo alto. Uma segunda particularidade desse processo, foi a inflexão política que possibilitou uma ruptura burguesa com o arcabouço constitucional que garantiu um conjunto de ganhos sociais na carta magna de 1988. Essas conquistas ocorreram em virtude de uma relação de força que favorecia o bloco democrático popular e o conjunto do proletariado. Portanto, a partir de 2012 (disputa eleitoral), a forma política da transição começou a se impor a partir das ações do que havia de mais liberal-conservador e, em conjunto com a paulatina derrota da pauta social prevista na constituição de 1988, se reposicionou para novos enfrentamentos.
A partir da dinâmica da totalidade política, pode-se abrir pistas para que, em paralelo ao conjunto da análise, apresentem-se outras variantes desses fundamentos. Sendo assim, o rompimento da aliança de classes promovida pela lógica burgo-petista, encapsulada pelos princípios da “carta aos brasileiros”, conformou um caminho que se consolidou com o golpe de novo tipo, em 2016.
Como fundamento dessa totalidade política, as jornadas de junho de 2013 impactaram de forma contundente o espaço da luta de classes. Um conjunto importante da população (juventude trabalhadora do ramo dos serviços, povo pobre das mais diversas periferias, estudantes da educação básica e do ensino superior privado, trabalhadores/as avulsos, etc.) foi para as ruas em centenas de cidades brasileiras. Apresentaram um programa emergencial de luta que passava por melhores salários e melhores empregos, mudança na qualidade do transporte público, também contra o aumento da tarifa, melhor atendimento nos postos de saúde e, em particular, reivindicando uma mudança de prioridade na ação do governo federal que, naquele momento, investia uma soma gigantesca de recursos na construção de estádios, visando a realização da copa do mundo. No entanto, essas massas populares nas ruas clamavam no sentido de que esses recursos deveriam ser aplicados na pauta em questão.
Esse programa de benefício popular ganhou força política na dimensão da agitação social e, diante da incapacidade da esquerda responder, foi capturada por setores médios da população que a transformou em um amplo guarda-chuva, cujo elemento da narrativa norteadora era a pauta contra a corrupção. Essa leitura de que todas as questões levantadas pela pauta popular não se realizavam em virtude da corrupção do governo foi alavancada pela mídia corporativa, que agiu como representação ideológica das diversas frações da burguesia, tendo enorme repercussão social e política.
A socialdemocracia tardia, localizada no governo da República, foi muito tímida em responder às reivindicações das ruas e a esquerda socialista, por conta do seu déficit organizativo, não teve condições de fazer o devido enfrentamento. Diante desse quadro político, as hordas da extrema-direita começaram a marchar com força na cena política brasileira.
Essa intensa luta das ruas foi capturada pela extrema direita, e pelas hordas neofascistas, com o apoio dos setores conservadores estabelecidos nas instituições do Estado brasileiro (justiça, ministério público, polícias, forças armadas, parlamento, etc.) e pela ação ativa da mídia corporativa. O espaço da luta de classes ganhou uma nova dimensão com a vitoriosa narrativa da direita que, naquele momento, adicionou uma cortina de fumaça para questionar o sistema político (partidos) e, grosseiramente, se colocar numa posição obscurantista que defendia uma pauta radical à direita, falsamente colocada como “antissistêmica”.
Diante dessa nova reconfiguração da política burguesa, o bloco liberal, em conluio com o neofascismo, operou um conjunto de ajustes na ordem estatal, partindo da operação política que levou o Michel Temer ao governo da República e na articulação de um novo consórcio das frações burguesas que se estabeleceu no bloco do poder. Essa vasta operação aprofundou a disputa pelo fundo público, ação bem delineada na lei do teto dos gastos, e nas diversas contrarreformas, a exemplo da reforma trabalhista e previdenciária. O produto dessa lógica levou o país ao primeiro passo do caos; abriu as comportas para a afirmação do ódio de classe aos pobres; permitiu o livre trânsito das representações do obscurantismo; afirmou canais midiáticos para o avanço da teologia da prosperidade e sua pauta hiperconservadora e, por fim, contribuiu para a impactante onda conservadora da mentira ideológica que foi disseminada em profusão pelas redes de contágio.
Esse arcabouço conservador-neofascista ganhou força diante dos impasses entre as frações burguesas no processo eleitoral que movimentou o ano de 2018. A burguesia, de forma oportunista, sentou-se na primeira fila do teatro de operações para apreciar o que se passava no palco da política. Na impossibilidade de ter um candidato do bloco de forças desse campo, a autocracia burguesa optou por esperar o possível cenário favorável que sairia das urnas. Portanto, diante da operação criminosa que afastou Lula do processo eleitoral, esse bloco burguês se sentiu confortável para negociar com o Bonaparte que saísse vitorioso das eleições.
O quadro político circunscrito ao cenário marcado pela ascensão da extrema direita projetou alguns ingredientes decisivos dessa posição: uma pauta de costumes fortemente conservadora, disparada aos milhões de eleitores através das redes de contágio que divulgavam um conjunto de mentiras gravíssimas. Tudo isso fez com que houvesse um crescimento do sentido do voto na extrema-direita. Todavia, para fortalecer esse processo, um novo ingrediente foi adicionado na disputa eleitoral: trata-se do polêmico episódio do “atentado” sofrido pelo agitador fascista, Jair Bolsonaro. Todo esse arcabouço político contaminou o processo da disputa eleitoral em 2018. Nas cinzas turvas daquela batalha política, venceu o projeto radical da extrema direita.
A partir dessas balizas, conformou-se um novo espectro político no comando do Estado brasileiro. Trata-se de uma lógica de governo que redefiniu alianças dentro das frações burguesas, optando, através do ministro Paulo Guedes, pelo apoio ao capital financeiro e seus subalternos. Desarticulou-se todo o arcabouço do Estado desenhado pela constituição de 1988 e começou a operação do caos controlado e o golpe por dentro das instituições.
O legado do agitador fascista, Jair Bolsonaro, para além da destruição das mínimas condições de funcionamento de um Estado minimamente público, abriu as comportas para a marcha da extrema direita e das hordas neofascistas no sentido da disputa por uma operação de força que permitisse o exercício de um governo de exceção. Com essa perspectiva bonapartista, a pandemia da covid-19 tornou-se funcional ao projeto do miliciano, pois, tira da cena política (em virtude do necessário isolamento social) a contestação pública e a militância organizada. Portanto, não ter nenhuma ação consequente para a aquisição das vacinas, divulgar o negacionismo, estimular a aglomeração, atacar o isolamento, massificar a ignorância e o obscurantismo são partes constitutivas de um mesmo projeto que quer se apresentar como forte competidor na luta de classes.
Apesar dessa estratégia criminosa ter obtido repercussão positiva para o bloco neofascista, animando os diversos cercadinhos da pequena política, algumas questões estão colocando na berlinda a política do governo Jair Bolsonaro: a covid-19 ganhou proporções inaceitáveis, a crise social pode ficar sem controle e gerar um profundo caos político, podem entrar de forma impactante na cena política brasileira o desemprego, a fome e a carestia. E, para além desse quadro, as eleições de 2022, começam a criar ruídos no ambiente da competição liberal burguesa com novos fatos da política institucional. Um deles é, até agora, a possibilidade de o ex-presidente Lula ser novamente candidato.
Apesar do equívoco de se colocar as eleições no posto de comando da política atual, retroalimentando os fundamentos políticos que foram responsáveis pela derrota da classe trabalhadora, o jogo da disputa institucional na democracia formal está sendo jogado. Bolsonaro, em queda de aceitação popular, vai investir na mentira, na compra do Centrão, na animação das hordas neofascistas, na pauta obscurantista e na atualização do mesmo projeto burguês que operou em 2018. Na falta de unidade das frações burguesas, ele se colocará novamente como o Bonaparte para, em última instância, como antes, defender os interesses da burguesia contra os trabalhadores.
A esquerda, não conformada na lógica da democracia formal, deve priorizar as batalhas pela vida (vacinação já), lutar contra as diversas reformas golpistas, se posicionar contra as privatizações e agir em defesa dos serviços públicos. O momento político exige do campo do trabalho unidade de ação, firmeza na luta de classes, capacidade de superar o déficit organizativo e unidade suficiente para construir uma forte movimentação proletária, popular e de esquerda que tenha como finalidade a reorganização da classe trabalhadora brasileira, ao tempo em que lutará para derrotar Bolsonaro/Mourão e apresentar com força o projeto alternativo do poder popular.
Milton Pinheiro é Cientista Político e professor titular de história política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Pesquisador na USP, editor-geral da revista Novos Temas e autor/organizador de oito livros, entres eles, Ditadura: o que resta da transição (Boitempo, São Paulo, 2014). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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