Silvia Federici, a exploração das mulheres e o desenvolvimento do capitalismo
Jodi Dean escreve sobre Silvia Federici e reforça que a obra da italiana é essencial para compreendermos como a consolidação do sistema capitalista dependeu da subjugação das mulheres, da escravidão dos negros e indígenas e da exploração das colônias.
Por Jodi Dean.
Calibã e a bruxa, de Sílvia Federici, é uma obra clássica do feminismo anticapitalista. O livro examina o investimento do capitalismo no sexismo e no racismo, mostrando como a consolidação do sistema capitalista dependia da subjugação das mulheres, da escravidão dos negros e indígenas e da exploração das colônias. Federici demonstra que o trabalho não remunerado – especialmente o das mulheres confinadas ao ambiente doméstico e dos trabalhadores escravizados – é um suporte necessário ao trabalho assalariado.
Embora Federici parta de Marx – a principal contribuição de seu livro é o seu repensar da representação de Marx da acumulação primitiva – ela ainda assim rejeita a ideia marxista-leninista de que o capitalismo tem algumas características progressistas. Federici insiste que nunca houve nada de libertador no capitalismo, nem em sua expansão da indústria e da produtividade, nem em sua tecnologia, nem em suas capacidades de centralização e organização. Olhar a história da perspectiva das mulheres, afirma ela, nos diz o porquê. Em vez de estar ligada de alguma forma às dinâmicas desencadeadas pelo capitalismo, a libertação surge da luta e da resistência autônomas a essas dinâmicas. Este artigo interroga essas afirmações, questiona até que ponto Federici se afasta, critica ou constrói o marxismo e considera as implicações políticas que decorrem.
A favor ou contra Marx?
Federici apresenta sua análise como um afastamento crítico de Marx, como uma correção de algumas de suas omissões mais graves. Ela acusa Marx de ignorar o surgimento de uma ordem patriarcal que excluía as mulheres do trabalho assalariado e as subordinava aos homens. Ela sugere que o marxismo falhou em considerar o papel das mulheres na reprodução da força de trabalho e negligenciou a transformação do corpo feminino em “uma máquina para a produção de novos trabalhadores” (FEDERICI, 2004, p.12). E ela argumenta que, se Marx tivesse tomado a perspectiva das mulheres, ele nunca teria associado o capitalismo a um passo em direção à libertação porque ele teria visto que as mulheres nunca alcançaram os avanços em liberdade que os homens fizeram.
A análise de Federici teria sido mais forte se ela reconhecesse que estava estendendo, não se afastando de, o trabalho marxista clássico sobre a “questão da mulher”. Já em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, Engels apresenta o fator determinante da história como a “produção e reprodução da vida imediata” (ENGELS, 2019, p.19). Ele inicia seu estudo apontando que o materialismo histórico parte da suposição de que a produção dos meios de existência e a produção do ser humano – a organização do trabalho e a organização da família – estabelecem o nível de desenvolvimento de uma sociedade. Atento às interconexões entre reprodução e produção, Engels associa o surgimento da propriedade privada e do valor de troca à “derrota histórica mundial do sexo feminino” (ENGELS, 2019, p.60, grifo do original). Os homens reivindicam propriedades em rebanhos, armas e instrumentos de trabalho. Eles insistem na herança e autoridade paternas, afirmando o controle sobre o lar. A subordinação resultante das mulheres na família patriarcal e depois na família monogâmica, explica Engels, reduziu-as à servidão: a mulher tornou-se escrava do homem, de sua “luxúria e um mero instrumento para a produção de filhos” (ENGELS, 2019, p.60). A apresentação de Federici do corpo feminino como uma máquina para a produção de novos trabalhadores é, portanto, um entendimento que Engels teve um século antes.
Engels vê a família monogâmica como uma unidade econômica, o local da primeira divisão do trabalho, da primeira oposição de classe e da primeira opressão de classe. A monogamia está ancorada na propriedade privada, em um sistema em que os homens podem ganhar, possuir e herdar e as mulheres não. A esposa é uma serva; seu trabalho está confinado à família privada. Engels enfatiza que “a família individual moderna é fundada na escravidão doméstica aberta ou oculta da esposa” (ENGELS, 2019, p.75). Mas nem todas as esposas: as mulheres proletárias, de fato, têm um grau de liberdade que falta às mulheres burguesas. Ganhando salários nas fábricas, as mulheres proletárias podem ser as principais provedoras de renda de suas famílias, eliminando assim qualquer base material para a superioridade masculina e aumentando a independência das mulheres proletárias. Engels não é ingênuo aqui. Ele reconhece plenamente o conflito entre o trabalho dentro do lar e o emprego em trabalho assalariado; não há tempo para uma mulher fazer os dois. Mas, em vez de pedir uma solução privada para o problema, em que casais redistribuam seu trabalho doméstico, Engels a socializa: a libertação das mulheres depende de sua participação na produção pública e da abolição da família monogâmica. Em contraste com Federici, então, Engels vê uma dimensão libertadora para o desenvolvimento capitalista, especialmente da perspectiva das mulheres proletárias. Oportunidades de ganhos também podem ser oportunidades de romper os limites do confinamento da vida familiar e comunitária. Uma diminuição na labuta do trabalho doméstico pode aumentar as possibilidades de liberdade.
A análise de Federici teria sido diferente se ela tivesse levado Engels em consideração? Talvez não. Seu foco está na Idade Média europeia e na transição para o capitalismo, porque ela encontra muito o que admirar no modo de vida dos servos oprimidos, mas relativamente autossuficientes. Ela ignora as relações patriarcais dentro das famílias camponesas e as expectativas restritivas associadas às comunidades agrárias coesas. O próprio Engels tem relativamente pouco a dizer sobre a Idade Média em A origem da família, da propriedade privada e do Estado; ele considera o período principalmente em termos de códigos de cavalheirismo e o ideal de amor romântico e sexual. Sua preocupação é com as conexões entre a família e a propriedade privada, não com o surgimento do capitalismo.
A diferença em suas abordagens não depende da consideração das mulheres, mas da avaliação do feudalismo. Em outras palavras, é uma questão de tempo: em que ponto histórico e por meio de quais processos históricos as mulheres são subjugadas? Engels vê a família pré-burguesa e pré-capitalista como um arranjo econômico e hierárquico de produção e reprodução dependente da propriedade privada. A derrota das mulheres acontece na pré-história; as relações entre produção e reprodução estão dialeticamente interrelacionadas de tal forma que as mudanças ao longo do tempo podem ter dimensões tanto libertadoras quanto opressoras. Concentrando-se no campesinato feudal, Federici apresenta arranjos cooperativos e autossuficientes. A divisão sexual do trabalho é uma fonte de força: as camponesas frequentemente realizavam seu trabalho de fiar e colher juntas. Elas experienciam comunidade e solidariedade, não privação e isolamento. Federici, portanto, apresenta o capitalismo como um desenvolvimento social reacionário que enfraquece a posição das mulheres.
A violenta ascensão do capitalismo
Calibã e a bruxa analisa o fim do feudalismo e a ascensão do capitalismo na Europa. O livro inclui uma discussão de novos entendimentos da vontade, Razão e do corpo que aparecem na filosofia do século 17; numerosas reflexões sobre a continuidade da violência capitalista ao longo dos séculos; e um foco único na queima de bruxas como um instrumento de terror projetado para dividir e subjugar comunidades. Esta história de algumas das mais extremas violências políticas contra as mulheres – especialmente mulheres mais velhas, mulheres forasteiras, mulheres camponesas e mulheres com conhecimento único – acrescentou ao apelo de Calibã e a bruxa diante das leitoras feministas que desejam mais atenção ao lugar das mulheres na história do capitalismo. Embora o relato das bruxas e da queima de bruxas seja central para seu apelo, o núcleo teórico do argumento de Federici é seu relato da ascensão violenta do capitalismo.
Pintando com um pincel largo que confunde vários tempos e lugares, Federici apresenta o capitalismo como o efeito de uma contra-revolução em resposta a séculos de luta antifeudal. Os camponeses se opunham ao recrutamento para o serviço militar, ao aumento da demanda por seu trabalho, à taxação arbitrária e à usurpação das terras comunais de que dependiam para obter alimentos e combustível. Nas cidades, trabalhadores diários e artesãos se rebelaram contra a nobreza e a burguesia mercantil. Movimentos de hereges não apenas se levantaram contra a autoridade da Igreja, mas ofereceram abordagens alternativas para a sexualidade e a reprodução. Por causa da liderança das mulheres nas comunidades heréticas, Federici encontra evidências nessas lutas de um movimento de mulheres de base voltado para a abolição de hierarquias e o estabelecimento de relações sociais igualitárias. A dizimação da população pela Peste Negra aumentou o poder dos trabalhadores e camponeses; os empregadores tiveram que competir por seu trabalho. Aldeias inteiras retiveram aluguel e serviços. Uma das maneiras pelas quais a classe dominante reagiu a essa erupção de poder vindo de baixo foi minando a solidariedade de classe por meio de violentas guerras sexuais. O estupro de mulheres proletárias foi descriminalizado. A prostituição foi institucionalizada em bordéis administrados pelo estado.
Federici enfatiza que a ascensão do capitalismo também foi uma resposta a uma crise de acumulação. Em parte por causa da rebelião incessante do povo e da recusa em trabalhar, a economia feudal tornou-se incapaz de se reproduzir. Em busca de novas fontes de riqueza, a classe dominante europeia voltou-se para a “conquista, escravidão, roubo, assassinato, em resumo, força” (FEDERICI, 2004, p. 62). Marx descreve esta virada para a força em sua crítica poderosa da concepção da economia política burguesa da acumulação primitiva na parte oito d’O capital. A riqueza dos primeiros capitalistas não era resultado de trabalho árduo, frugalidade e inteligência, mas de sanções estatais e violência extra-legal que separou os trabalhadores de suas terras, privou-os dos meios de subsistência e os forçou a vender seu trabalho poder para sobreviver.
Essa dimensão europeia da acumulação primitiva foi acompanhada e dependente da extração de ouro e prata das terras colonizadas, do colonialismo, do genocídio e do comércio de escravos africanos. Mesmo que este ponto venha d’O capital, Federici argumenta que a análise de Marx assume a perspectiva do “proletariado industrial assalariado” e da formação do trabalhador independente “‘livre’” (FEDERICI, 2004, p.63) . Ela o acusa de negligenciar os impactos da acumulação primitiva na posição social das mulheres e na reprodução da força de trabalho. Se Marx tivesse observado esses impactos, ele teria reconhecido como a acumulação primitiva era “também uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora” (FEDERICI, 2004, p.62) . Tal reconhecimento teria impedido Marx de associar o capitalismo a qualquer coisa semelhante ao progresso. Ele teria entendido que o capitalismo sempre impôs divisão e formas cada vez mais brutais de escravidão.
Grande parte da redescrição de Federici da acumulação primitiva aprofunda e estende o relato de Marx. Ela destaca os impactos específicos da privatização de terras e “cercamentos” na vida rural. Privados das terras comunais que lhes davam acesso a lenha para combustível, frutas silvestres e ervas, bem como a pequenas caças e pastagens, as dietas dos camponeses diminuíram significativamente. A fome aumentou. A perda das terras comunais também teve efeitos sociais; o espaço social foi eliminado e os laços familiares e comunitários desfeitos. Essa perda foi particularmente difícil para as mulheres que eram menos capazes de pegar a estrada em busca de trabalho (por causa das formas como isso as expunha à violência e por causa de suas responsabilidades como cuidadoras) e cuja falta de acesso a meios de subsistência as tornava dependentes de outros para a sobrevivência. Desvalorizado como improdutivo, o trabalho doméstico em casa foi considerado um dever natural das mulheres. As mulheres também foram excluídas do trabalho não-doméstico no comércio e no artesanato. Tal exclusão e confinamento foram codificados na lei, conforme as mulheres foram impedidas de celebrar contratos, receber salários ou possuir propriedades por conta própria. Em suma, quanto mais a produção era voltada para o mercado, mais se separava do trabalho reprodutivo.
Federici localiza a “derrota histórica” das mulheres nesta nova divisão sexual do trabalho (FEDERICI, 2004, p.97). Ela argumenta que as mulheres proletárias em particular se tornaram um novo bem comum, o substituto para a terra que havia sido expropriada e fechada. O trabalho das mulheres era como um “recurso natural”, disponível gratuitamente e sem necessidade de consentimento ou compensação. Ela associa essa transformação das mulheres em bens comuns com o “patriarcado do salário”. A dependência específica das mulheres proletárias em relação aos maridos surgiu não apenas de sua exclusão do trabalho assalariado, mas do fato de que, mesmo quando eram incluídas no trabalho assalariado, seus maridos tinham direito ao seu salário.
Federici não apresenta esse ponto como uma expansão explícita de Marx. No entanto, Marx faz uma observação relacionada em sua discussão sobre a maquinaria em O capital. Observando como o acréscimo de máquinas deixa o capitalista faminto pela mão-de-obra mais barata de mulheres e crianças, Marx escreve: “Anteriormente, o trabalhador vendia sua própria força de trabalho, da qual ele dispunha como agente livre, formalmente falando. Agora ele vende esposa e filho. Ele se tornou um traficante de escravos” (MARX, 2011, p.469). A ausência do direito da mulher ao seu próprio salário explica por que o marido proletário “vende” sua esposa e filho. Ele fica com o salário que ela ganha. Assim, embora Marx não tenha analisado a posição das mulheres como análoga a uma terra comunal (embora criticasse o casamento burguês como um sistema de esposas em comum e afirmasse que “o burguês vê em sua esposa um mero instrumento de produção”), ele não ignorou os efeitos brutais, degradantes e empobrecedores do capitalismo sobre as mulheres (MARX; ENGELS, 1998, p.55).
Além disso, a discussão de Marx sobre a produção de uma superpopulação relativa de trabalhadores e os vários segmentos do exército industrial de reserva em O capital, bem como seus escritos sobre a “questão irlandesa”, documentam as maneiras pelas quais o capital – conforme produz o trabalhador social coletivo – trabalha ao mesmo tempo para criar e intensificar as divisões existentes dentro do proletariado. O ponto de Marx em O capital era mostrar como mesmo aqueles que estão desempregados ou sem trabalho – incluindo as “classes perigosas” que não entram na força de trabalho – ainda são membros da classe trabalhadora. Em vez de privilegiar o “proletariado industrial assalariado” como o resultado exclusivo e força revolucionária para derrotar o capitalismo, Marx insistiu que, quando olhamos para o capital como uma totalidade, “a classe trabalhadora, mesmo quando não está diretamente engajada no processo de trabalho, é tanto um apêndice do capital quanto os instrumentos comuns de trabalho” (MARX, 2011, p.718). Como tal, esta classe expansiva de trabalhadores e oprimidos constitui o imenso contra-poder com o interesse e a capacidade de abolir a exploração capitalista.
Em sua discussão sobre a acumulação primitiva e o movimento dos cercamentos, Marx aborda o papel do poder estatal na expropriação dos camponeses de suas terras. Federici também analisa o papel do Estado, destacando duas maneiras pelas quais ele se envolveu na derrota das mulheres. A preocupação do Estado com o crescimento populacional o levou a tentar assumir o controle da reprodução e forçar as mulheres a procriar. Penalidades severas foram instituídas contra a contracepção, o aborto e o infanticídio. A obstetrícia foi colocada sob a supervisão de médicos homens. O Estado também instituiu formas de assistência pública em que alimentos seriam distribuídos aos pobres encarcerados em casas de trabalho. Federici argumenta que esta assistência marca “o primeiro reconhecimento da insustentabilidade de um sistema capitalista governando exclusivamente por meio da fome e do terror” (FEDERICI, 2004, p.84). Ao fornecer uma ajuda mínima às pessoas empobrecidas pelo capitalismo, o Estado funcionava para garantir as relações de classe, garantindo aos capitalistas um exército de reserva de trabalhadores. O Estado, portanto, assumiu a responsabilidade pela reprodução do capitalismo como um sistema
O terror de Estado contra as mulheres foi auxiliado pela amplificação da misoginia. As representações culturais das mulheres tornaram-se cada vez mais negativas. As mulheres eram demonizadas como bruxas, acusadas de vários crimes e vícios e, geralmente, consideradas inferiores e necessitadas de dominação.
Correlativa à subjugação das mulheres foi a subjugação das colônias. A expansão colonial, como Marx reconheceu, acarretou tanto o tráfico de escravos africanos quanto a conquista e o genocídio dos povos indígenas. Mais uma vez, os recursos culturais foram mobilizados para consolidar a divisão: “uma sociedade segregada e racista foi instituída de cima” (FEDERICI, 2004, p.108). Assim como o Estado privou as mulheres dos direitos de propriedade e de contrato, a nova legislação privou os negros e indígenas de direitos anteriormente detidos, tornando assim a escravidão uma condição hereditária. A preocupação com a fertilidade e a reprodução intensificou-se, concentrando-se agora na criação forçada de uma força de trabalho escravizada. É importante ressaltar que Federici não culpa os trabalhadores europeus brancos pelas condições encontradas pelos trabalhadores colonizados e escravizados. Ela acusa corretamente a classe dominante, demonstrando como ela continuou a usar o salário como instrumento de divisão e disciplina do trabalho. Os trabalhadores dos dois lados do Atlântico estavam ligados em uma linha de montagem global. Matérias-primas como açúcar, algodão e tabaco vinculavam o trabalho da plantação ao trabalho da fábrica, o não-assalariado ao assalariado. Experiências comuns de opressão vinculavam servos, devedores, criminosos e escravos em comunidades de resistência que a classe dominante tentava romper com o estabelecimento de categorias raciais e ideologia racista.
Federici dá atenção especial à criatividade das mulheres escravizadas do Caribe. Taxas de reprodução artificialmente baixas nas colônias sugerem que essas mulheres se recusaram a procriar, apesar dos esforços dos senhores de escravos para criá-las. Em algumas ilhas, as mulheres escravizadas não apenas mantinham hortas domésticas, mas também produziam safras suficientes para alimentar suas famílias e levar ao mercado para troca. Eles continuaram mesmo quando o cultivo e a venda foram proibidos, aprofundando suas conexões entre si e com algumas mulheres proletárias brancas. Federici admira a maneira como as mulheres caribenhas escravizadas desenvolveram “uma política de autossuficiência, baseada em estratégias de sobrevivência e redes femininas” (FEDERICI, 2004, p.113). Ela sugere que eles eram, de certo modo, livres mesmo antes de serem legalmente emancipados. Assim como em seu relato sobre os servos europeus, Federici destaca as condições de subsistência sobre a forma de trabalho, isto é, se o trabalho é formalmente gratuito
A acumulação de diferenças
Uma série de críticas pode ser dirigida contra Calibã e a bruxa: Federici deturpa Marx; o argumento é insuficientemente dialético; o relato histórico é tão amplo e impreciso que falha em retratar as diferenças muito reais em toda a Europa durante a Idade Média e, de fato, falha mesmo em especificar os anos e territórios em consideração. Essas críticas não seriam injustas. Mas eles perderiam o significado do livro para o feminismo anticapitalista. Federici modela uma análise atenta ao investimento do capitalismo na produção e intensificação das diferenças. Ela traz à tona como o capitalismo ampliou as diferenças entre os homens e as mulheres como uma forma de diminuir as mulheres poderosas e quebrar a unidade da classe trabalhadora. Ela descreve o mesmo processo em funcionamento no colonialismo, quando o racismo era imposto de cima para baixo para proibir e até demonizar o contato de brancos com negros e indígenas. Em vez de se ancorar na teoria da interseccionalidade liberal, Federici traça as lutas dos oprimidos e excluídos, as solidariedades que o capitalismo sempre busca destruir.
Federici dá a entender que Marx estava desatento à miséria que o capitalismo trouxe e continua a trazer aos trabalhadores. Nada poderia estar mais longe da verdade! Ele expôs incessantemente as misérias e horrores do sistema capitalista, descrevendo-o como monstruoso e vampírico, envolvendo “terrorismo imprudente”. Mas ele reconheceu a tremenda capacidade que os trabalhadores acumulam quando combinam suas energias – tanto na produção quanto na política. Foi o modo de produção capitalista que criou as condições para essa solidariedade de base ampla, até internacional. No capitalismo, esta capacidade produtiva é orientada para o lucro, a acumulação de capital nas mãos dos capitalistas, e as divisões dentro da classe trabalhadora são intensificadas para atender a essas necessidades. Sob o socialismo, as capacidades criativas e produtivas dos trabalhadores serão orientadas para atender às necessidades das pessoas e do planeta para que todos possam florescer.
Referências bibliográficas
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: Mulheres, corpo e a acumulação primitiva. Autonomedia, 2004.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. São Paulo: Boitempo, 2019.
MARX, Karl. O capital, livro 1. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.
Publicado originalmente em inglês no The Liberation School. A tradução é de Debora Cunha para o Lavra Palavra.
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Jodi Dean é professora de teoria política, feminista e de mídia em Nova York, onde também está engajada em trabalho político de base. Formou-se na Universidade Princeton e obteve seus títulos de mestrado e PhD na Universidade Columbia. Seus livros abordam temas como solidariedade, condições de possibilidade para a democracia, capitalismo comunicativo e necessidade de construir uma política que tenha o comunismo como horizonte. É autora e organizadora de diversos livros. Camarada: um ensaio sobre pertencimento político é sua primeira publicação traduzida para o português.
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