Marielle Franco em Jacarezinho: Estado Penal, ideologia e utopia

O que Marielle Franco teria a dizer sobre o massacre de Jacarezinho? É a pergunta de fundo deste texto, com o qual Yara Frateschi inaugura sua coluna no Blog da Boitempo.

Por Yara Frateschi.

“A forma como a polícia militarizada do Brasil trata jovens negros, pobres, como inimigos em potencial do Estado de Direito precisa produzir uma impressão, na população, de que está em jogo a defesa de todos. Ou seja, produz no imaginário social a diferenciação de classe e a diferenciação racial, uma vez que são justificadas as incursões que vitimam o público descrito acima.”
Marielle Franco

No dia 8 de maio de 2021, a polícia civil do estado do Rio de Janeiro cometeu, em Jacarezinho, a operação mais letal da história da cidade. A Operação “Exceptis” – supostamente destinada a proteger a comunidade de criminosos e libertar crianças cooptadas pelo tráfico – terminou com a morte de vinte e oito homens, quase todos negros, dentre os quais um menor de idade e um policial.

Enquanto assistíamos as cenas de violência, com casas e ruas banhadas de sangue, corpos mortos e corpos vivos em desespero, um delegado vinha a público para dizer que apenas uma pessoa havia sido executada, o policial.

E os outros?

Esses não foram executados, mas “neutralizados”, explicou o delegado.

Volta pra cena. Tiro, bomba, água vermelha escorrendo pelas ruas, a cama de uma criança de oito anos encharcada do sangue de um jovem ali assassinado. Eram essas as imagens que as pessoas que não estavam em Jacarezinho assistiam pelos meios de comunicação, enquanto um agente do Estado insistia em uma outra realidade, que em nada condizia com aquela que a nossa visão nos dava a conhecer. Daquele momento em diante, não eram apenas as cenas banhadas em sangue que causavam choque, mas a voz do Estado dizendo que não estávamos vendo o que estávamos vendo: não uma chacina, mas uma “operação legal”; que, em Jacarezinho, naquele dia, apenas uma pessoa havia sido executada, pois as demais, foram “neutralizadas”.

Diante do absurdo – aquilo que é flagrantemente destituído de sentido e realidade – tirei da prateleira a versão impressa em xerox de UPP: A redução da favela a três letras. Uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro. O que Marielle Franco teria a dizer sobre o massacre de Jacarezinho? É a pergunta de fundo deste texto, com o qual inauguro a minha coluna no Blog da Boitempo, nesse dia 14 de maio de 2021. Uma homenagem à “favelada” Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018, também por policiais, a mando de quem não sabemos ainda.

Marielle se referia a si mesma como favelada e fazia questão de sublinhar esse marcador social e político. “Favelada, mulher, negra, mãe e lésbica”, era como ela se apresentava com frequência.    

“Cheguei na PUC como favelada”

Não raramente, o meio acadêmico, sobretudo nos círculos mais “excelentes” – e brancos, evidentemente – revela profunda incompreensão das trajetórias das mulheres negras que abdicaram de escolher entre a teoria e a prática. Estamos falando de mulheres que conduzem as suas vidas como ativistas e produtoras de teoria, pela razão incontestável de que a prática informa a teoria que, por sua vez, informa a prática ética, social e política. Nos seus breves trinta e oito anos de vida, Marielle Franco foi encarnação dessa imbricação dialética, numa busca incansável para “disputar espaço”.

Nascida em janeiro de 1979, Marielle cresceu na Favela da Maré. Tendo se tornado mãe aos dezenove anos, precisou interromper os estudos, mas com uma rede de apoio ingressou em um cursinho popular e, finalmente, na universidade. “Cheguei na PUC como favelada”, diz ela, “sequer sabia andar de ônibus num território que não era o meu”. Ali ela passa a conviver com jovens de alto poder aquisitivo que romantizavam a favela ou então a estereotipavam como lugar de bandido. Foi quando ela compreendeu que precisava reivindicar para si mesma o lugar de favelada, pois queria ressignificar esse título “para disputar espaço”.

Ao mesmo tempo em que cursa a graduação, intensifica a luta dentro da favela. Em 2005, participa da campanha contra o Caveirão e organiza uma série de aulas com o tema a Ditadura de ontem e de hoje, ciente de que com as intervenções da polícia, tornava-se urgente “falar do direito à vida na favela” e criar espaços de diálogo entre as pessoas daquela comunidade. Nesse seminário, ela conhece Marcelo Freixo, passa a integrar a sua equipe, torna-se assessora de favela, integra a comissão de direitos humanos da Alerj (que chegou a presidir), até decidir candidatar-se, sendo eleita vereadora da cidade do Rio de Janeiro em 2016. Enquanto tudo isso acontecia, Marielle, que não veio ao mundo a passeio (como ela mesma dizia), ingressa no programa de pós-graduação em administração da Universidade Federal Fluminense no qual desenvolve e defende a sua pesquisa de mestrado em 2014, tendo sido aprovada com louvor.

As Unidades de Polícia Pacificadora e o modelo de Estado Penal

O objeto da pesquisa de mestrado é a política de segurança pública adotada no Estado do Rio de Janeiro no contexto da implementação das Unidades de Polícia Pacificadora. Com um recorte bem preciso, a pesquisa acompanha os primeiros anos (2008-2013) de implementação dessa política e termina, em 2014, reconhecendo não estar claro qual seria o desfecho daquele processo, mas, ainda assim, com boas razões para supor que a política não teria um bom encaminhamento se não fosse capaz de romper com um modelo de Estado Penal que a informava até então. Em poucas palavras, a pesquisa mostra que a implementação das UPPs promove mudanças pontuais que não podem ser ignoradas, sobretudo no que diz respeito à ocupação do território e a substituição do braço armado do tráfico pelo do Estado. Para ela, que mira alterações mais profundas na relação do Estado com a sociedade, visando a ampliação da democracia e de políticas sociais que diminuam desigualdades, a ocupação das favelas pelo Estado é imprescindível e isso Marielle não questiona a respeito da proposta que embasa as UPPs. O que ela questiona é o modo pelo qual o Estado chega nesse território. A conclusão: a implementação das UPPs não implicava – ao menos até aquele momento (e como sabemos tampouco até hoje) – uma alteração significativa na relação do Estado com as favelas, como o próprio governo alardeava.

Em poucas palavras: embora a política prometia uma mudança qualitativa e o encaminhamento para um novo modelo de segurança pública (p. 56), isso efetivamente não acontecia porque carregava as marcas das práticas que pretendia superar, reiterando uma política de segurança sustentada na militarização. Fato é que, como ela notava em 2014, a chegada das forças de segurança não significou a efetivação de direitos e a ampliação do acesso aos serviços públicos – à moradia, ao saneamento, ao transporte, à saúde e à educação. Ao fim e ao cabo, esses territórios, historicamente negligenciados pelo Estado, observam a chegada do Estado pela via da militarização, com a manutenção de práticas muitas vezes violentas, desaparecimentos, assassinatos, minuciosamente levantados pela pesquisa nos capítulos 2 e 3. Amarildo não era caso isolado.

Estado penal e neoliberalismo: controle dos pobres e negros

No primeiro capítulo, intitulado “Do neoliberalismo ao atual Estado Penal: reflexões teóricas”, a autora se empenha para encontrar as raízes mais profundas daquela política de segurança pública, que repousam em um modelo de Estado integrado ao projeto neoliberal, ou seja, à fase mais perversa do capitalismo, que caminha a passos largos para o aprofundamento da exclusão, da punição e da criminalização dos pobres, especialmente da juventude negra. Nesse sentido, é uma pena que a edição em livro, publicada pela n-1, prescinda do capítulo de abertura na íntegra. A pesquisa que Franco faz sobre a implementação das Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro toca nas estruturas ao desvendar a relação entre o modelo vigente de segurança e as suas bases econômicas ancoradas na fase neoliberal do capitalismo:

“Isolar, na periferia, nas formas repressivas e nas prisões o conjunto de pobres, com um modelo que apresente sentido de modernidade, é um papel fundamental para cumprir os desafios do neoliberalismo” (p. 35, grifo meu).

O que está em jogo, dizia ela em 2014, é o controle dos pobres e dos negros.

“Na substituição de políticas sociais que apostem em investimentos no campo dos direitos, abre-se uma política que fortalece o Estado Penal, com o objetivo de conter os que se encontram à margem ou os excluídos do processo, formados por uma quantidade significativa de pobres e negros, cada vez mais colocados nos guetos da cidade” (p. 40-1).

Esse projeto precisa de uma ideologia, na acepção marxiana que é também a de Marielle Franco: falsa consciência que corresponde a interesses de classe ou, nas palavras simples e certeiras da autora, o “conjunto de ideias que são apropriadas para assegurar a reprodução da situação atual” (p. 42). Se a implementação da polícia pacificadora requeria uma “ideologia” é porque estava mais para reproduzir a situação vigente do que para transformá-la, o que estava escondido pelo verniz de uma propaganda que prometia mudanças profundas. Não se tratava de uma política voltada para a efetivação de direitos, como almejava Marielle Franco para atingir um patamar estrutural, mas de fortalecimento do Estado Penal, ou seja, pela reiterada marginalização das pessoas pobres e negras.

Num dos momentos fortes do texto, ela coloca Michael Löwy e Karl Mannheim – tal como os interpreta – a serviço da sua reflexão sobre o aspecto ideológico/utópico daquele projeto de “segurança”, afinal era preciso enfrentar o fato de que a ideia de uma polícia pacificadora carregava um aparente aspecto utópico, isto é, crítico da “ideia ideológica” vigente voltada para a manutenção do Estado Penal:

“Apresenta-se, assim, uma base utópica, pois, no lugar de incursões policiais, com a justificativa da ‘guerra contra o tráfico’, indica uma nova forma de policiamento na cidade. Porém, não é isso que ocorre na prática” (p. 46).

O ponto que nos interessa particularmente é que o discurso que acompanha e pretende legitimar a ação do Estado nas favelas apoia-se numa ampla propaganda pela paz e pela liberdade (aparência utópica), mas que mobiliza amplamente o sentimento de insegurança, que não é irreal, para esconder as contradições mais profundas daquele tipo de ocupação territorial. A quem serve esse discurso? A um modelo de Estado Penal que, por sua vez, está em consonância com um projeto de cidade como mercadoria, que exige a limpeza da população indesejável que continua empurrada para o sistema penal ou para a periferia. Cadê a transformação?

“Neutralizados”

Passados sete anos da conclusão da pesquisa de Marielle Franco, muitas coisas mudaram: as UPPs são uma vaga lembrança e o próprio assassinato de Marielle é revelador de um amálgama, que não se fazia perfeitamente claro para ela em 2014, entre governo, polícia e milícia. Além do mais, caiu por terra o verniz de uma política de segurança com ares “utópicos”, que vendia um tipo e policiamento mesmo que praticasse outro. O discurso oficial que vingou, em plano nacional e local, logo após o seu assassinato, já não esconderia nada, mandaria “mirar na cabecinha” e defenderia uma Guantánamo brasileira. Se a implementação das UPPs veio acompanhada de um verniz de modernidade, como nos explicou Marielle Franco acima, agora – e com a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018 – abre-se mão explicitamente desse verniz. Wilson Witzel, que se elegeu com o discurso do abate, cumpriu o que prometeu, terminando o primeiro ano de governo em 2019 com o maior número de mortes pela polícia na história do Rio de Janeiro. 78% dos mortos nessas ações policiais eram pretos e pardos.

Se muita água correu embaixo da ponte desde 2014, quando Marielle concluiu a sua pesquisa sobre as Unidades de Polícia Pacificadora, a leitura daquelas páginas permite entender que tanto a chacina de Jacarezinho quanto o seu falseamento pelas autoridades estão em harmonia com um modelo de sociedade no qual não cabem – e talvez caibam cada vez menos – as pessoas pobres e negras, que são empurradas pelo Estado Penal para as margens, para as prisões e para os cemitérios. Na raiz mais funda desse modelo de sociedade e Estado, uma forma de capitalismo que não permite e não vai permitir que a favela tenha “direitos a ter direitos”, como dizia Marielle Franco em empréstimo da consagrada expressão de Hannah Arendt. O que devemos ter, antes mesmo de direitos humanos e até para que estes sejam efetivamente direitos, é direito a ter direitos. Isso a favela não tem. Por isso, quem morre assassinado em Jacarezinho sequer morre, é “neutralizado”.

Nova utopia: um outro modelo de sociedade, de Estado e de segurança

Marielle Franco não se contenta em analisar o contexto de implementação das UPPs, quer que o seu trabalho teórico esteja a serviço da transformação da realidade, o que, para ela, depende de uma nova utopia, isto é, o desenho de novos modelos de sociedade e de Estado. À cidade mercadoria (a serviço dos grandes empreendimentos e eventos), ela contrapõe um modelo de cidade no qual as pessoas tenham “direito a ter direitos”, não apenas no asfalto. Ao Estado Penal, que cumpre o papel de agente do capital, ela contrapõe um modelo de Estado que seja agente da cidadania; que se faça efetivamente presente para as populações pobres ao invés de propagar um discurso de criminalização da pobreza que se beneficia de e fomenta uma visão estereotipada sobre a favela, como se essa fosse habitada em sua maioria por participantes do varejo de drogas imposto pelo tráfico. Marielle estava ciente de que para ocupar espaço – o que ela mais queria – e disputar com a visão hegemônica da favela era preciso explorar as contradições do discurso que a sustenta: fosse essa a realidade preponderante da favela, a cidade estaria parada, afinal, é da população favelada que a classe média e alta depende para os serviços, inclusive os domésticos. A mesma cidade que precisa da classe trabalhadora moradora das favelas, estigmatiza aquele território e justifica a ação policial violenta. Tem uma contradição muito aguda aqui, que precisa ser explicitada enquanto tal.

Quanto ao Estado, é preciso que se contraponha e não apoie a mercantilização da vida que se favorece do processo de militarização do social. O mesmo Estado que criminaliza e pune os pobres expõe os policiais à violência, não lhes garante treinamento adequado e os priva de direitos fundamentais, promovendo um tipo de brutalização e desumanização que afeta duramente os agentes de segurança. Daí a necessidade de um novo modelo de polícia, sem o qual nada mudará na política de segurança pública vigente.

A desmilitarização da sociedade e do Estado, requer a desmilitarização da polícia, entendida num amplo espectro: desmilitarizar a PM implica desvincular a polícia das forças armadas, implica o fim do estatuto militar, implica a concessão de direitos civis e políticos aos policiais e servidores da segurança pública, e, sobretudo, a construção de um modelo de polícia de caráter civil. Mas não apenas. Em UPP: a redução da favela a três letras – quatro anos antes de Bolsonaro se tornar presidente da República com a promessa de armar a sociedade brasileira de bem –, Marielle Franco insistia que acima de tudo é preciso caminhar para desarmar a sociedade e para uma visão de segurança que supere as questões policiais.

De acordo com ela, ao invés de mobilizar o sentimento de insegurança da população, e torná-la sedente de ações violentas, governantes precisam de outra visão sobre segurança, que requer uma concepção democrática de espaço público. Um espaço efetivamente público no qual seja promovida a convivência com a diversidade, ao qual tenham acesso as pessoas pobres e negras enquanto participantes do processo de construção de políticas públicas.

Ainda para a autora, nos idos de 2014, nada disso será possível sem uma mudança cultural que combata o forte simbolismo da guerra (guerra ao tráfico, guerra ao bandido), pois esse simbolismo continuará a fomentar, em nome da ordem, o uso da violência. Precisamos de uma mudança de cultura política, dizia Mariele Franco, que valorize a participação da população nos processos decisórios e na formulação de políticas, que fomente o diálogo do Estado com as pessoas, que fomente e valorize o diálogo das pessoas entre si. Não teremos “ordem”, enquanto a solução for pelas armas, enquanto a solução for militar.

Marielle Franco não podia imaginar o quanto estava certa e tampouco que o governo Bolsonaro seria o avesso explícito, e altamente letal, da sua utopia: na medida em que se militarizou também se empenhou em destruir todos mecanismos de participação popular.

Utopia concreta

“O conceito de utopia avança para além de um significado da não existência na realidade. Passa a compor um significado mais amplo, de ideias que estão em disputa na atualidade para alterá-la. Mais além que um futuro imprevisível com alcance no infinito, apresenta-se um futuro que está no presente em disputa. As ideias em disputa no momento atual encontrarão, no seu conflito, a indicação dos rumos da sociedade e dos elementos que serão predominantes nas políticas do Estado atual”

Marielle Franco, 2014

Se as projeções de Marielle Franco não são apenas uma utopia imaginada, um sonho sem lastro na realidade, é porque, para ela, as experiências concretas de luta e de organização política dentro e fora da favela indicam que há sim campo para disputarmos o modelo penal de Estado vigente. Cumprindo a promessa de ressignificar a favela, o último capítulo de UPP. A redução da favela a três letras lembra uma série de ações, associações e movimentos que resistem à violência ao mesmo tempo que colocam outra sociabilidade em seu lugar, valorizando as manifestações culturais e as vozes dos cidadãos. Enquanto houver resistência e ativismo, nenhum governo, a serviço da força que for – do capital financeiro ou do crime organizado, ou dos dois – poderá declarar a sua vitória definitiva. Enquanto tivermos a possibilidade de explorar as contradições do modelo vigente, teremos a chance de propor ideias divergentes que poderão, por sua vez, modificar a correlação de forças e pressionar o Estado na direção da democracia e do combate efetivo das desigualdades. Marielle Franco pensava que essa é uma utopia concreta, com lastro nas lutas do presente, à qual dedicou a sua vida.  

Que Marielle nos sirva de inspiração.

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Yara Frateschi é professora livre-docente do Departamento de Filosofia da Unicamp e pesquisadora do CNPq. Para a edição n. 33 da Margem Esquerda, revista semestral da Boitempo, entrevistou, junto com Carla Rodrigues e Maria Lygia Quartim de Moraes, a filósofa estadunidense Judith Butler. Colabora com o Blog da Boitempo e a TV Boitempo esporadicamente.

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