Indiana Jones e o templo da perdição: o retorno do reprimido
Em texto de 1985, Moishe Postone e Elizabeth Traube analisam o processo de produção ideológica em Indiana Jones. Sob o manto de uma nostalgia lúdica, dois grandes temas da cultura de massas se destacam: a dominação imperialista e patriarcal, em que racismo e sexismo se reafirmam como alternativa às trevas.
Por Moishe Postone e Elizabeth Traube.
Hoje o professor Moishe Postone completaria seus 79 anos de idade. Autor do incontornável Tempo, trabalho e dominação social, ele foi um teórico pioneiro da chamada vertente marxista da “crítica do valor” e um dos mais originais intérpretes da teoria crítica de Karl Marx na atualidade. Em homenagem à data, publicamos aqui um instigante ensaio que revela um lado pouco conhecido de seu pensamento. Escrito a quatro mãos com a antropóloga Elizabeth Traube, o texto se debruça sobre um artigo da indústria cultural da época para desenvolver uma reflexão sobre colonialismo, culturalismo e feminismo à luz da teoria marxiana do valor. Publicado originalmente na Jump Cut n. 30, periódico sobre mídia contemporânea, em março de 1985. A tradução é de Sergio Ricardo Oliveira para o Blog da Boitempo. Boa leitura!
George Lucas e Steven Spielberg surgiram nos últimos anos como mestres do cinema de entretenimento de Hollywood. Eles se especializaram em filmes de ficção científica e de aventura, tecnicamente sofisticados, baseados na cultura popular das décadas de 1930 e 1940, e prometendo uma forma de recuperar os prazeres inocentes da visão de filmes infantis. No entanto, a mitologia tradicionalista e de alta tecnologia de Lucas e Spielberg carece de inocência, e isto em lugar nenhum é tão visível quanto em seu mais recente sucesso de bilheteria, Indiana Jones e o templo da perdição.
Embora grande parte do debate crítico sobre este filme tenha girado em torno de seu valor de entretenimento e se era adequado para crianças, alguns críticos notaram que o filme projeta uma visão de mundo. Por exemplo, David Denby observou: “[…] é claro que Lucas e Spielberg não pretendem nenhum ‘comentário’ sobre o lixo pop de sua juventude. Pelo contrário, eles simplesmente encontraram o mundo em que querem viver” (New York Magazine, 4 de junho de 1984). Denby, contudo, não examinou os parâmetros desse mundo. J. Hoberman foi mais longe e caracterizou as premissas do filme como racistas e sexistas (The Village Voice, 5 de junho de 1984). No entanto, ele não se pôs a examinar o processo pelo qual essas ideologias são produzidas e transmitidas no filme. Nosso objetivo neste ensaio é examinar esse processo de produção ideológica em Indiana Jones.
A análise séria dos filmes de “entretenimento” encontra hoje uma resistência generalizada nos Estados Unidos. Tal postura é por si só ideológica. Ao voltarem-se para a cultura popular dos anos 30 e 40, Lucas/Spielberg estão expressando e ajudando a moldar um amplo anseio dos EUA, ascendente desde meados dos anos 70 e corporificado na presidência Reagan. É um anseio pelo retorno a tempos antigos, presumivelmente mais simples, um anseio provocado por um mundo cada vez mais complexo no qual a própria base da auto-compreensão dos EUA – a trajetória política, social e econômica ascendente dos EUA em relação ao resto do mundo – começou a desmoronar. A desorientação cultural resultante levou a um desejo de escapar das complexidades do presente, reforçado pela relutância em compreender os problemas sociais em termos sociais, algo profundamente enraizado na consciência popular dos EUA. Esse desejo de evitar as complexidades da vida é um tema básico nos filmes de Lucas-Spielberg. Os jovens super-bardos de Hollywood não se deliciam com nenhum heroísmo que opere dentro da sociedade, ou com o domínio das provações comuns e extraordinárias da vida. Ao contrário, eles celebram o desejo de fugir de todas essas complicações e disfarçam sua fuga da sociedade como uma aventura humana.
Mas não é simplesmente o desejo de escapar em direção ao passado que marca Indiana Jones; é também o conteúdo desse retorno. Sob o manto de uma nostalgia lúdica por filmes de aventura exóticos antigos, quadrinhos e seriados, Lucas/Spielberg ampliaram e deram novo alento a dois grandes temas da cultura de massas anterior, a saber, a dominação imperialista e patriarcal. Esses temas são reunidos em Indiana Jones através do que parecem ser enredos frouxamente conectados, a história de aventura e a história de amor. Ambos os enredos se desdobram em resoluções estruturalmente semelhantes, nas quais uma reafirmação irreverente do sexismo e do racismo antiquados aparece como a alternativa necessária às forças das trevas.
Não apenas o projeto ideológico do filme, mas também seu modo de operação latente devem ser analisados. É despertando e jogando com medos profundamente enraizados que o filme solicita nosso consentimento quanto à “retidão” da ordem que a resolução retrata. A história de aventura e a história de amor são integradas, projetando-se em um Outro cultural uma fantasia da sexualidade feminina como um poder maléfico, destrutivo e arcaico da morte. A subordinação desse poder torna-se então a pré-condição da civilização.
O episódio de abertura de uma boate de Xangai em 1935 reúne o arqueólogo e aventureiro Indiana Jones, uma showgirl e cantora chamada Willie Scott, e o ajudante de Jones, Short Round. Este último é um pequeno órfão chinês resgatado por Jones de uma vida de pequenos crimes urbanos, que adora seu pai adotivo e a princípio trata Willie como uma rival em potencial. Após uma breve série de aventuras, os três acabam em uma pobre aldeia em algum lugar do norte da Índia. Os aldeões estão famintos, e seu digníssimo chefe liga a situação de seu povo ao “poder da noite escura”, que mais uma vez surgiu no palácio de Pankot. Esse poder maligno está encarnado nos nefastos Tugues, historicamente um grupo de assassinos profissionais.
Os Tugues roubaram a pedra mágica da aldeia, o Shivalinga, que é um objeto ritual de forma fálica representando o deus Shiva. A perda desta pedra trouxe fome à aldeia e, para completar o ataque ao princípio de vida, os filhos dos aldeões foram sequestrados e escravizados no palácio. Jones concorda em resgatar a pedra ritual para os aldeões. Ele e seus companheiros se dirigem ao palácio, onde santuários sujos e morcegos vampiros prenunciam atividades sinistras. Esta premonição é rapidamente cumprida em um banquete repulsivo ao qual comparecem vários dignitários hindus e um oficial colonial britânico.
Naquela mesma noite, imediatamente após um encontro sexual interrompido com Willie, Jones descobre uma passagem secreta que leva a um aposento muito abaixo do palácio. Lá eles observam o sacerdote maligno realizar um sacrifício humano à deusa Kali, que representa as manifestações destrutivas da Deusa Mãe, e consorte de Shiva. Depois do sacrifício, Jones apodera-se da pedra dos aldeões e descobre as crianças da aldeia raptadas que estão labutando nas minas do palácio. Mas Jones e seus companheiros são capturados. Ele é forçado a beber o “sangue de Kali”, que rouba sua alma e o torna escravo da deusa. Como um teste à sua lealdade, Jones é ordenado a sacrificar Willie, mas naquele exato momento Short Round rompe o feitiço do mal ao chamuscar Jones com uma tocha flamejante. De volta a si, Jones resgata Willie do poço de lava sobre o qual ela está pendurada, liberta as crianças e conduz seus companheiros para fora das minas. A vitória final sobre os Tugues se dá no alto de uma ponte.
O filme tem a estrutura narrativa de um romance de aventura (quest romance), neste caso uma viagem de ida e volta ao inferno, um movimento da luz para as trevas, seguido por um retorno à luz. A história como um todo consiste assim de um “colchete” em torno do núcleo narrativo, que é a busca (quest) propriamente dita. Ritmo e tom, juntos, refletem e expressam a estrutura sequencial da narrativa. Como muitos críticos notaram, o ritmo intenso, cheio de ação e humor lúdico das sequências de enquadramento contrastam fortemente com a atmosfera cada vez mais opressiva, densa e a ausência total de alívio cômico que caracteriza a seqüência central do filme. Para muitos críticos, o filme “derrapa” quando abandona seu ritmo acelerado e astuciosamente elaborado, perdendo seu senso de humor. Resta saber para onde o filme vai.
Não é difícil detectar as implicações ideológicas evidentes no filme. Como um de seus modelos, Gunga Din, Indiana Jones é uma variante cinematográfica do tema do “fardo do homem branco”. Ela procura representar o imperialismo como uma força civilizadora, socialmente progressista e, assim, legitimar a dominação ocidental sobre os outros. Ela o faz identificando a opressão com o sistema de governo indígena. Pois se o sofrimento dos povos indígenas é produto de suas próprias instituições, então essas instituições podem ser legitimamente suplantadas. Portanto, o filme não apresenta uma condenação geral da alteridade indiana, mas divide esta alteridade em duas categorias, que correspondem a um campesinato oprimido e uma classe dominante opressiva e exploradora.
Ao mesmo tempo, o filme constrói formas imperialistas e indígenas de dominação como polos opostos, negando assim a possibilidade de que essas formas possam ter algo em comum. O filme diferencia sem ambiguidade o domínio “legítimo” do “ilegítimo”. Uma forma de realizar essa divisão é usar as categorias de gênero masculino e feminino para expressar a diferença entre os governantes ocidentais e indianos. Essa estratégia implicitamente alinhou o conteúdo político do filme ao seu conteúdo psicossexual. Ela reforça poderosamente a representação do homem branco como o defensor paternalista da justiça contra a opressão e da ordem civilizada contra o caos feminino primordial.
O modelo de dominação política de gênero do filme coloca os aldeões na posição de crianças, dependentes da proteção paternalista do Ocidente. Dentro desse quadro, os aldeões estão representados de modo simpático, e de fato um sinal do status de Jones é seu interesse nos assuntos deles. Jones trata aldeões simples e espezinhados com grande deferência. Ele é retratado aqui como um homem esclarecido, com um respeito salutar e relativista pelas tradições culturais alternativas, uma espécie de Mr. Wizard antropológico. Ele dá lições à Willie (e indiretamente à platéia) para se esquivar da comida intragável para hóspedes, que é tudo o que os aldeões famintos têm a oferecer. Ele fornece um modelo de conduta masculina para Short Round, que aceita educadamente a comida. Nestas cenas Jones atua como um cientista sabe-tudo, ego ideal para jovens garotos, além de campeão dos aldeões indefesos, tudo imbricado em um só. A relação paternalista do cientista branco com seu objeto de pesquisa ressalta o paternalismo mais geral da relação de Jones com a demanda dos seus necessitados.
No entanto, os aristocratas indianos são representados como radicalmente estranhos (alien) e monstruosamente malignos. Lucas e Spielberg procuram mostrar como o que parece belo e graciosamente opulento é realmente hediondo e depravado. Essa tática é parcialmente responsável pela perda de ritmo do filme. Muitos filmes utilizam uma convenção de manter uma tensão entre o exterior refinado do inimigo e sua verdadeira natureza interna, aumentando assim uma sensação de suspense. Lucas/Spielberg apenas brevemente aceitam essa convenção. O ministro do Marajá que cumprimenta Jones e companhia ao entrarem no palácio parece um homem culto, instruído, educado em Oxford. Antes de os convidados e dignitários reunidos se sentarem à mesa preparada luxuosamente, temos um rápido vislumbre de uma cultura cortesã indígena. Esta é praticamente a última imagem esteticamente agradável que o filme nos oferece. Há músicos, dançarinos e cantores, para não mencionar a própria Willie, que aparece vinculada ao toque de elegância indiana, tão radiante que Jones reconhece verbalmente pela primeira vez sua atração. O que é enfatizado nesta cena é o caráter sedutor e sensual da cultura cortesã indiana com sua beleza, charme e opulência galante.
Mas tais imagens do sedutor e deslumbrante Outro são rápida e irreversivelmente invertidas na cena do banquete. À mesa, Jones, o menino Marajá, seu ministro e o coronel britânico visitante discutem a história política do palácio. Tinha sido um centro do culto assassino dos Tugues que mais tarde foi suprimido pelos britânicos. Jones tem a certeza de que, apesar do que os aldeões possam lhe ter dito, o culto não existe mais. No entanto, em contraponto a toda esta conversa, temos diante de nós a prova visual de que o passado ruim de fato voltou. Somos bombardeados por imagens culinárias de cobras, enguias vivas, besouros, sopa de olhos e cérebros de macacos servidos no crânio. Lucas/Spielberg evidentemente gostam de brincar com sua comida, mas o jogo não é inocente. Evoca nosso nojo, não só pelo banquete, mas também pelo prazer lascivo com que os indianos consomem a comida repugnante. A cena do banquete não nos revela tanto a depravação por trás da sensualidade exótica, mas nos impressiona com a identidade da sensualidade e da depravação.
Embora a cena possa ter sido concebida para ser brutalmente humorística, esse humor serve para deslocar a atenção do espectador do conteúdo da conversa para o banquete infame. Tinha sido uma conversa que forneceu pelo menos fragmentos de material para uma compreensão histórica do conflito atual como um momento em uma história de conflitos. Esse tipo de entendimento fica implicitamente anulado pela ênfase da cena na representação culinária da alteridade. Esse deslocamento sugere que o passado ruim que retornou não deve ser entendido por meio do discurso, e que não pode ser interpretado em termos sócio-históricos. Ao contrário, a maldade é inerente à própria natureza do Outro, uma natureza que é explicitamente corporificada nos alimentos que o Outro consome. Tal representação implica que as circunstâncias históricas são, em última instância, irrelevantes para uma compreensão do mundo. O filme apresenta formas culturalmente diferentes de resistência e rebeldia. Mas então não as trata como fenômenos socialmente fundados e inteligíveis relacionados com formas de exploração, injustiça e desaforo social. Consistente com uma forte tendência atual nos EUA, o filme procura explicar o mundo em termos da natureza maligna do Outro e não em termos históricos.
O filme trata em seguida a sensualidade depravada como sinal do mal que emana de Kali. A Deusa Mãe sanguinária é retratada como cobiçosa da carne humana e adorada por multidões de seguidores em transe, agitando os braços, desumanizados. Vemos o coração pulsante arrancado de uma vítima sacrificial que, misteriosamente ainda viva, é então levada a uma piscina de lava, acompanhada por um crescendo de cânticos e batidas de tambor. Do que suspeitávamos na cena do jantar confirma-se pela cena do sacrifício humano. A cultura aristocrática indiana não é meramente decadente, mas brutalmente regressiva. E dentro da tradição ocidental, um sinal inquestionável dessa regressão é o triunfo do princípio feminino sobre o masculino: Shiva, o Senhor, foi rebaixado pela Mãe, a cujos pés a linga agora repousa.
A cena que se desdobra dentro do Templo da Perdição é um amálgama suntuoso de incontáveis exibições hollywoodianas de cultos primitivos sinistros. Mas este filme desmascara a verdadeira natureza do inimigo de um modo específico. Da depravação sensual passa-se a retratar o mal selvagem. Depois ele revela como a selvageria é manipulada por uma classe brutalmente opressiva. Os líderes do culto não só empobreceram as aldeias, mas também exploram o trabalho infantil. As crianças raptadas devem labutar incansavelmente nas minas em busca de duas pedras sagradas que foram escondidas dos britânicos. O verdadeiro objetivo desse trabalho não é a riqueza natural, mas o puro poder dos seus senhores, pois as pedras desaparecidas são a chave para que as forças de Kali dominem o mundo.
A construção narrativa dos governantes indianos evoca no espectador um forte desejo pela sua destruição. À medida que a natureza maligna dos governantes é revelada em termos cada vez mais monstruosos surgem expectativas de ver uma resolução que erradique de uma vez por todas esse mal absoluto. Além disso, esta ansiada resolução serviria à justiça social, salvando os servos da tirania de seus senhores. No entanto, a representação da tirania inadvertidamente chama a atenção para outro mecanismo de produção ideológica. As imagens de crianças trabalhando indicam que o filme não só representa as classes dominantes indianas como negativamente estranhas (alien); ele também projeta nelas atributos das classes dominantes ocidentais. O trabalho infantil forçado em grande escala tem muito mais a ver com o capitalismo doméstico do século 19 e com o capitalismo do século 20 no exterior do que com a Índia tradicional. Além disso, existe de fato uma forma de produção onde o verdadeiro objetivo não são as coisas produzidas, mas o poder social abstrato que elas incorporam. Esta forma, a produção de mais-valor, não é encontrada na misteriosa escuridão de outras culturas, mas nas luzes da nossa própria. O filme transpõe uma crítica da classe dominante capitalista para as classes dominantes indianas e funde essa crítica com uma representação cultural da depravação e do mal estrangeiro. Seu projeto é desviar para o Outro aquela frustração e raiva que são geradas domesticamente. E há um produto ideológico nesse modo de projetar a raiva. Ela legitima o imperialismo como aparentemente progressista, como um canal de ação e uma missão civilizatória para o homem branco que não pode mudar as coisas em seu país.
Enquanto governantes exploradores, os indianos guardam uma semelhança mistificada com as classes dirigentes ocidentais. O filme, no entanto, faz um grande esforço para associar o inimigo indiano à feminilidade, que é retratada fugazmente como opulência sedutora e depois, em maior detalhe, como depravação sensual e caos primordial. Constituído em oposição a um mal selvagem, corrupto e feminino, o imperialismo aparece como uma força civilizadora, purificadora e masculina. Jones e os britânicos operam como outorgadores da lei, da ordem e da razão a um servo indefeso, que é tão infantil em sua dependência do paternalismo ocidental quanto vulnerável perante as forças da Mãe maligna.
No todo, está ausente em tais representações qualquer menção ao lado mais sombrio da dominação imperialista. Todavia, quaisquer que tenham sido os dons dos governantes coloniais da “civilização”, a força motivadora subjacente à expansão imperialista foi a exploração do trabalho, dos produtos materiais e das necessidades das sociedades colonizadas. Sobre esses assuntos, o filme se mantém significativamente calado.
Indiana Jones dificilmente representaria a exploração ocidental, uma vez que ele é em si uma forma de exploração. Sua descrição do Outro como um inimigo violento e perigoso constitui um ato violento e perigoso. Tal retrato reflete e produz concepções do mundo “lá fora” como o lugar do mal.
As características específicas da condenação autovalidante do Outro apontam para uma dimensão psicossexual dos processos ideológicos. Não diferente de muitos oficiais coloniais britânicos, a julgar por seus relatos, o filme parece concentrar-se na depravação sensual dos governantes indianos feminizados, enquanto apresenta a masculinidade contrastante dos “civilizadores ocidentais” de um modo sublimado. Jones e os britânicos rejeitam o prazer sensual perverso e buscam a gratificação no exercício moral do poder. A dinâmica psicossexual aqui emerge mais claramente no contexto da história de amor.
Em muitos dos filmes de aventura exóticos mais antigos, o “interesse amoroso” é manifestamente subsidiário e periférico à história de aventura, mas esta é apenas uma estrutura aparente. Indiana Jones traz a estrutura latente do romance-aventura muito perto da sua superfície, e assim revela os desejos e medos psicossexuais que residem no âmago do gênero.
Outros críticos chamaram a atenção para a caracterização sexista da heroína do filme. Willie é retratada como uma interesseira sem cérebro, chorona e incompetente, uma “loira burra” que contrasta fortemente com a heroína corajosa de Raiders. Em nossa leitura, no entanto, o filme revela inadvertidamente a superficialidade do seu retrato sexista da mulher, uma defesa contra um medo profundamente arraigado da sexualidade feminina. Já notamos que o episódio do templo quebra o ritmo e o tom em relação às sequências que o cercam, e que desperta um sentimento de horror generalizado. Este horror, argumentamos a seguir, está estruturalmente condicionado. Sua força deriva da natureza pouco dissimulada da busca como uma fuga da sexualidade, que se torna um encontro fantasioso com a feminilidade primitiva.
Esta trajetória se encontra implícita logo no início do filme em uma troca aparentemente trivial. Quando Willie ouve pela primeira vez que Jones é arqueólogo, diz ela, “Arqueólogos: achei que eram homenzinhos engraçados à procura de suas mamães (mommies)”.
“São ‘múmias’(mummies)”, diz Jones em um estalo e pensa que a corrigiu. Pouco tempo depois, ele é envenenado, e o frasco com o antídoto vai parar no seio de Willie. Jones, compreensivelmente, não tem tempo a perder com súplicas. Enquanto Willie demora para entregar o precioso antídoto, ele o retira dela à força. Tomando seu estado de desespero como paixão, ela protesta dizendo que “não é esse tipo de garota”. A cena é lúdica, embora estabeleça a tensão homem e mulher que organiza todo o filme. Subjacente a essa tensão está uma profunda ambivalência em relação à fêmea. Ou a mulher aparece para o homem, como ela aparece nesta cena, como uma figura desejável e revigorante que, no entanto, deve ser subjugada à força ou, corporificada em Kali, manifesta-se como uma ameaça mortal.
Esta ameaça informa a história de amor, com sua progressão estereotipada que vai do antagonismo inicial ao desejo. Jones e Willie não reconhecem abertamente sua atração mútua até que tenham entrado no palácio, onde Willie (que vimos pela primeira vez emergir da boca de um dragão de papel) é novamente metamorfoseada em uma sedutora exótica. Após a cena do banquete, Jones se opõe a Short Round e oferece solicitamente a Willie uma maçã, da qual ele dá a primeira dentada. Previsivelmente, isto inicia uma atividade sexual, que posteriormente suscita a questão do controle. Ela insiste que os seus encantos afrodisíacos o farão esquecer todas as outras mulheres. Ele argumenta, caracterizando-se como um pesquisador acadêmico da sexualidade feminina, que não vai antecipar os resultados de sua investigação. O resultado é que seus desejos mútuos não se satisfazem, e ele retorna ao seu quarto.
Ela tem um ataque de fúria, enquanto ele descarrega sua excitação frustrada por outros meios – envolvendo-se em uma luta até a morte com um enorme tugue que aparece repentinamente do nada. Ao se livrar de seu agressor, Jones corre para o aposento de Willie, aparentemente para ver se algum tugue a está molestando. Nos termos do filme, ela trai as limitações de sua natureza ao assumir que ele voltou para consumar a relação sexual deles. A realidade e a fantasia estão aqui invertidas. A suposição de Willie de que Jones tivesse voltado para continuar de onde eles tinham parado é feita para parecer tolice. Ela não entende que seu desejo foi subordinado ao “princípio da realidade”, ou seja, à luta com os Tugues, que estão em todos os cantos. Jones tem agora tarefas mais importantes do que o sexo. Sua busca no quarto o leva a uma voluptuosa estátua feminina; quando ele toca seus seios, abre-se uma passagem escondida. Willie olha, confusa e exasperada, e tenta chamar a atenção dele para os seios dela.
Dentro da lógica sequencial da trama, o que se segue é uma consequência direta de Jones ter evitado sexo com Willie. Afinal, se ele tivesse escolhido os seios dela em vez dos da estátua, a passagem nunca teria se aberto. Em outro nível, porém, o resultado é uma realização fantasiosa deste encontro sexual, expressa como um grande pesadelo. A fantasia passa do erótico para o anti-erótico, do desejo distorcido para a negação total do desejo. Em última análise, essa realização fantasiosa do sexo justifica a evasão da sexualidade.
Consideremos primeiro o que os espera na passagem que se abre quando ele toca os seios de pedra. Dentro dela não está apenas úmido, mas cheia de seres horríveis, milhões de insetos rastejando, coisas com pernas de todos os formatos e tamanhos. Não há um ritmo de aventura para este episódio. O espectador não se anima ou se entusiasma, mas está quase insuportavelmente enojado e repelido pelas imagens. Lucas e Spielberg prosseguem a cena com uma fantasia alternativa dos perigos que se escondem em lugares fechados e escuros. Jones e Short Round ficam presos em um aposento, cujas paredes começam imediatamente a se fechar sobre eles. Enormes espigões perfurantes surgem do chão e do teto, criando o efeito de terríveis mandíbulas devoradoras, uma variante explícita do tema frequente da “vagina dentada”.
Por mais perturbadoras que sejam estas imagens, elas permanecem dentro dos limites do medo do erotismo feminino. Mas a passagem mais para o interior é também uma passagem de volta, uma regressão da mulher como sedutora para Kali, a mãe primordial na qual a vida e a morte estão fundidas. Muito abaixo da terra, entre as pernas do ídolo pavoroso, há uma piscina de lava com um turbilhão que se abre e se fecha para que as vítimas sejam recebidas e consumidas. Voltar ao ventre de Kali é encontrar a própria morte; a “mamãe” de fato se tornou a “múmia”.
Quando Jones é capturado e é forçado a beber o sangue negro de Kali, há uma inversão simétrica de sua relação anterior com um seio feminino (ou seja, o de Willie). Agora o seio não é o objeto e sim o agente da violência; e o líquido que o homem é obrigado a engolir não é um antídoto, mas um veneno. Esse veneno submete o homem à mulher, e a sua cura é fálica.
O fogo seco da tocha de Short Round, o amor do filho adotivo do pai liberta Jones do feitiço de Kali e evita a ameaça de seu fogo líquido. Pouco a pouco, o filme readquire seu ritmo otimista e masculino de aventura e conquista. A jornada de retorno começou da escuridão para a luz, onde a ordem adequada é rapidamente restaurada. O sacerdote maligno e seus seguidores são derrotados por Jones e os britânicos, com uma pequena ajuda do poder fálico da lingam de Shiva. A pedra e as crianças regressam à aldeia. Por último, Jones brinca com seu chicote para atrair uma Willie exteriormente recalcitrante, mas que cede interiormente, enquanto Short Round aparece em um elefante que esguicha uma corrente de água para o casal feliz. Mudando abruptamente para a perspectiva de Short Round, o filme nos lembra que seu propósito explícito é nos levar de volta àqueles anos de infância que Spielberg retratou em outros lugares rapsodicamente como felizes, despreocupados e sem sexo.
O que o filme apresenta como sua resolução é a reinstituição da Lei do Pai falocêntrica, alegremente empacotada como uma coisa infantil. Aventura e amor, os dois enredos aparentemente independentes, chegaram a resoluções estruturalmente semelhantes, baseadas na dominação e na submissão. O espírito aventureiro leve do início e do final do filme, juntamente com seu sexismo e racismo despreocupados, devem ser legitimados pela sequência central no Templo da Perdição.
Entretanto, o próprio filme aponta para uma resolução de natureza muito diferente, uma resolução que, embora não realizada, é obliquamente aludida por uma pequena, mas crítica, lacuna na trama. Para localizar esta presença ausente, devemos voltar rapidamente ao templo e à cena em que Jones em transe se prepara para sacrificar Willie. À medida que o momento da desgraça se aproxima, o público preve, por conta do sacrifício anterior, que ele será obrigado a arrancar seu coração. Sabemos que nosso herói não pode fazer nenhum mal irreversível e por isso aguardamos ansiosamente o momento de sua libertação, esperando que ele venha através da mulher. No entanto, nem Jones nem o sacerdote alcançam seu coração, e ela é levada ao poço com o peito intocado. Por quê? Aqui neste momento, onde a trama tropeça, o filme trai seu projeto ideológico, permitindo-nos, sem querer, vislumbrar uma resolução alternativa.
Jones é salvo no filme pelo fogo fálico e pela solidariedade juvenil. Cabe a nós reconstruir as implicações do caminho não escolhido. Quebrar o feitiço do mal tocando o seio da mulher teria significado superar o domínio de Kali, ao separar-se a mulher erótica e vivificante da mulher consumida, mortificante; ao separar-se o desejo e a morte, Eros e Thanatos. Isto, por sua vez, poderia ter sido a base para uma masculinidade radicalmente nova, uma masculinidade não mais obrigada a aliar-se a meninos pequenos, a fugir das mulheres em aventuras, ou a perceber a sensualidade como depravação. Mas como a masculinidade que é constituída no filme nunca se transforma, ela requer o contínuo domínio falocêntrico de tudo o que é feminino, e requer a exclusão da sensualidade. A vitória política da civilização ocidental sobre a classe dirigente indiana, juntamente com a conquista romântica de Willie por Jones, representa o triunfo dessa forma indiferenciada de masculinidade sobre a ameaça fantasiosa do princípio feminino.
Ao incluir uma resolução alternativa latente, o filme deixa claro que os valores que busca legitimar não estão mais fundamentados com segurança. Esses valores podem ter sido tomados como garantidos, mas já não o são. Apesar de si mesmo, o filme indica a impossibilidade de retorno ao passado como se o presente não existisse. Embora o filme seja obrigado a renegar o presente, sua tentativa de retorno ao passado exige a repressão psíquica quase violenta de novas possibilidades e sensibilidades. O reprimido reaparece então na forma projetada e parece ainda mais ameaçador. A instabilidade inerente de tal resolução pressagia um futuro retorno do reprimido, que por sua vez teria de ser negado e rejeitado com força ainda maior. O que quer que seja o auto-entendimento do filme, os ideais “heroicos” neoamericanos a que ele se apega não são inocentemente nostálgicos. Arraigados como esses valores estão em um sentido de ameaça e vulnerabilidade, eles se tornam perigosos em seu anacronismo. A “confiança recém-conquistada” dos Estados Unidos de Reagan está desgastada. Esse caminho de volta não é a saída.
***
***
Em Tempo, trabalho e dominação social, Moishe Postone propõe uma reinterpretação fundamental da teoria crítica de Marx. Fortemente influenciado pela Escola de Frankfurt e inserido em uma das tradições mais radicais e contemporâneas do marxismo, Postone analisa o capitalismo, antes de tudo, como uma forma de vida. Escrito na década de 1990, esse livro inaugurou uma nova frente nos estudos marxistas, tão polêmica quanto necessária. As teses de Postone relacionam a forma do crescimento econômico e a estrutura do trabalho social na sociedade moderna com a alienação e a dominação presentes no coração do capitalismo. Suas análises abriram caminhos para a renovação dos debates no interior do marxismo, o que torna esse livro leitura obrigatória, inclusive para os que defendem uma perspectiva diferente sobre a dinâmica capitalista.
* * *
Moishe Postone (1942-2018) nasceu no Canadá. Foi professor de História na Universidade de Chicago, co-diretor do Chicago Center for Contemporary Theory e co-editor da revista Critical Historical Studies. PhD em história pela Johann Wolfgang Goethe-University, foi um dos maiores teóricos marxistas da atualidade. Seu trabalho mais conhecido, Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx, foi publicado pela Boitempo em 2014. Colaborador da Revista Margem Esquerda, assinou o artigo “O sujeito e a teoria social: Marx e Lukács sobre Hegel”, que integrou a edição #23 da revista e concedeu uma entrevista publicada na edição #31.
Elizabeth Traube é professora de Antropologia na Universidade de Wesleyan, em Connecticut. Conduziu pesquisas etnográficas no Timor-Leste antes e depois da ocupação indonésia. Sua pesquisa original sobre ritual e cosmologia explorou práticas de intercâmbio que continuam a informar a vida pós-independência de maneiras inesperadas.
Deixe um comentário