O genocida e o sobrevivente

Entre as duas camadas de visibilidade nas quais a violência envolvendo o Estado e/ou as organizações militarizadas se manifesta, surgem também dois sujeitos: o genocida e o sobrevivente. Edson Teles apresenta ambos e analisa como o sobrevivente, ao recusar e romper violentamente com a política de morte, acaba por transformar o instinto de conservação da vida em ato de revolta.

Por Edson Teles.

A história do país poderia ser contada através dos vários genocídios praticados ou, ainda, pelos sujeitos desses acontecimentos. Tradicionalmente, poderíamos dizer que a violência envolvendo o Estado e/ou as organizações militarizadas atuando em favor de interesses econômicos e privados tem se apresentado para a História por meio de duas camadas de visibilidade: uma “vertente diurna” e uma “vertente noturna”, como disse Achille Mbembe.

O dia, nesse contexto, indica a guerra que é noticiada, oficialmente contada, que vira documentário e que, ainda que muitas vezes contra a maré, se estabelece em algum lugar visível das narrativas coletivas. São os massacres, como os que ocorrem contra os povos indígenas ou as populações carcerárias, os grandes conflitos institucionais e palacianos, as guerras cotidianas sob a justificativa de combate ao tráfico. Sobre esses eventos se pode falar, mas não apresentar sua face de horror e seu caráter fascista e de extermínio. Mas também podem ser as grandes e hegemônicas campanhas de rua, de reivindicações populares ou a partir de pleitos eleitorais, os conflitos trabalhistas mediados por sindicatos patronais e de trabalhadores, as resistências institucionais.

O horror dos genocídios, dos campos de concentração e das políticas de morte ocorre na camada noturna, a que não se apresenta amplamente, sobre a qual se diz ser apenas uma exceção e que não compõe o normal. Como se houvesse falhas no sistema e uma reforma concertasse seu mal funcionamento. É o que ocorre lá no território do Outro, o menor, com menos valor. Aquele cujo destino teria sido traçado nos processos de colonização.

Gostaríamos de destacar ao menos dois sujeitos que emergem desse duplo cenário da violência: o genocida e o sobrevivente. O primeiro, o genocida, é um tipo que aparenta ar de paranoico, porém extremamente lúcido. Detentor do poder, ele fará de tudo para manter seu status e afastar o sujeito que lhe possa apresentar algum perigo. Em uma cena diurna, o genocida se apresenta de forma astuta, ainda que violenta, na figura do combatente que peleja em prol da ordem. Obviamente, não se trata aqui da ordem legal, a qual é meramente, para este, um aparato técnico de mediação de sua relação com o Outro, o inimigo, e que pode ora ser usada para lhe garantir a legalidade da prática genocida, ora pode ser dispensada, até mesmo rasgada, para acender a sua faceta noturna: o genocida do extermínio e da morte matada.

O sobrevivente é alguém que viveu o horror da morte, mas a ela não sucumbiu. Sua força não se encontra nestas passagens vida-morte-vida, mas na vida, “no fato de não ser o morto”, como escreveu Elias Canetti. O sobrevivente permanece de pé; carrega o trauma de ter presenciado a morte e os mortos, mas se mantém forte. E, quanto maior o evento mortífero, maior será sua força. Diante do genocídio ele é aquele que pode testemunhar a prática de extermínio e o horror do genocida. O sobrevivente tem sua força justamente no fato de ser o sujeito com potência para colocar em questão o poder do genocida.

No Brasil, alguns sobreviventes se puseram a narrar sobre o genocídio, como é o caso dos movimentos negros, dos coletivos do feminismo negro, das frentes anticárcere, mas também os movimentos de mães e familiares de vítimas da violência estatal e institucional. Pensadores como Abdias Nascimento, já nos anos 60 e 70, escreviam e teorizavam sobre o “genocídio do negro brasileiro” enquanto processos mascarados de extermínio que não se efetiva somente pela morte biológica, mas utiliza também o ataque à cultura, à religião, aos modos de o corpo ser, ao território, à circulação, aos conhecimentos científicos, aos saberes ancestrais. Nessa “morte atmosférica” respira-se o ar do óbito, mesmo que não se esteja na presença do corpo falecido (Frantz Fanon).

Os autores Mbembe e Canetti estavam refletindo sobre as experiências que lhes foram próximas – afinal, é sobre isso que se pensa e escreve na atividade intelectual. O primeiro, o filósofo camaronês, escreveu a partir da história de colonização da África e de suas leituras de Frantz Fanon. O segundo, o italiano Canetti, a partir do vivido nos campos de concentração nazistas, entre outros, na Europa civilizada do século XX.

Nós, aqui no Brasil do século XXI, nos referimos aos dois sujeitos, o genocida e o sobrevivente, observados no genocídio histórico do povo negro, no feminicídio cotidiano, no extermínio dos povos indígenas, na autorização do homicídio de pessoas trans, nas máquinas de morte das políticas públicas em relação aos moradores em situação de rua e à população encarcerada, entre outros. Referimo-nos à reprodução exponencial desses eventos diante da pandemia de covid-19, quando a desigualdade social, as questões raciais e o patriarcalismo perderam qualquer disfarce que ainda lhes restavam e serviram como fator de escolha “entre o que deve viver e o que deve morrer” (Michel Foucault).

A política de morte é praticada pelo genocida, por vezes, na condição de executor de um projeto. Porém, não é necessário o projeto, pois pode se efetivar quando o mesmo se encontra como o operador de uma produtividade econômico-social em que o valor da vida é cindido. Ou melhor, a ideia de vida aparece por meio de uma fissura que justifique a disparidade no valor das vidas. Essa produção divide uma população, de modo geral, entre os que possuem ou vão usufruir do que se produz, e aqueles que vão produzir, mas pouco ou nada vão usar do produzido, os não proprietários.

Entretanto, este corte não é suficiente para autorizar a morte genocida em uma democracia liberal e em suas figuras espelhadas – aqui nos referimos aos reflexos desse regime e que lhe são semelhantes, mantêm a máscara do estado de direito, mas se efetivam por meio de um modo fascista e colonial de governar as populações. A desigualdade fornece o terreno profícuo para que surjam os “campos” – lugares típicos da cena noturna – onde o Outro habitará. Para além das diferenças sociais é preciso um elemento mais profundo, se faz necessário a produção da inimizade, do inimigo, do Outro que represente algum perigo para a ordem. Alguém que pode ser lido como aquele que para que o “normal” viva, e com uma vida digna, deva ser eliminado ou, ao menos, mantido sob os olhares vigilantes da sociedade.

O Outro deve ser visto o tempo todo como no panóptico foucaultiano, mas não somente para ser vigiado. A ele é imposta a função de, enquanto vida descartável, mostrar a todos que veem o quanto as vidas têm distintos valores. É a guerra cotidiana e diurna do mundo capitalista. O que não se vê, não se quer ver, não se encontra exposto à visão, aquilo que é noturno é o massacre, o extermínio, o conteúdo do testemunho do sobrevivente.

Mais vezes do que o que se pode observar durante o dia, nas periferias das grandes cidades, os jovens negros são mortos e desaparecidos e seus corpos lançados em valas comuns. Mas, para a grande mídia e para parte considerável da população eles estão em cemitérios clandestinos. O cemitério seria o lugar da sepultura precedida dos rituais fúnebres, de despedida. As valas comuns são os terrenos onde os corpos são lançados para serem enterrados pelas histórias que não os reconhecem. Nelas, pode emergir o corpo e a tragédia de uma vida individual. Mas as narrativas do massacre e do genocídio, bem como sobre o genocida, permanecem enterradas, ainda que insepultas – não receberam as despedidas devidas, não foram reconhecidas publicamente e não possuem sepulturas.

É um paradoxo: o corpo pode e deve aparecer. Contudo, está interditado o conteúdo de suas narrativas, as quais denunciam o horror, como o fazem até hoje Amarildo e Marielle. Por isso o sobrevivente é tão temido pelos poderosos. Ele pode trazer à tona os fatos, transformar a vulnerabilidade da vítima em uma invulnerabilidade frente ao poder do genocida.

Parece-nos que para fazer emergir as narrativas dos sobreviventes, modo de se contrapor ao genocida, é necessário “uma recusa violenta de uma violência imposta” (A. Mbembe). Há um simbolismo fundamental na recusa e na ruptura violenta com a política de morte, o qual transforma o instinto de conservação da vida enquanto ato de revolta.


O texto é de minha autoria e responsabilidade, mas algumas pessoas contribuíram com seu amadurecimento. Agradeço a Fernanda Cruz, Graciela Foglia, Paulo Malvezzi e Silvia Brandão.

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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade do n. 19 da revista Margem Esquerda. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

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