Da possibilidade à realidade. O trabalho poético de gerar novos hábitos

"A arte é um hábito, no sentido aristotélico, um ethos. A poesia imita a natureza, mas para criar o que na natureza não existe. Como tal é um caminho para a liberdade." Hermenegildo Bastos escreve sobre a estética de Lukács.

Foi com pesar que recebemos a notícia do falecimento Hermenegildo Bastos no final deste difícil ano de 2020. Como forma de homenagear o professor e poeta, disponibilizamos aqui o belo prefácio que ele escreveu para a edição da Boitempo da obra Marx e Engels como historiadores da literatura, do filósofo húngaro György Lukács.

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Os textos de György Lukács que compõem este volume, escritos no período de uma década, fazem parte da fase madura da obra do pensador húngaro, iniciada em 1930. Essa época marca, não uma ruptura, posto que as questões básicas de seu pensamento continuam presentes, ainda que exigindo novas e radicais formulações, mas uma retomada. Muitos temos visto aí a “virada ontológica” que permitiu o surgimento da percepção da literatura como uma atividade. E se dissemos atividade, sublinhamos o papel do artista como sujeito ativo.

A certeza de que na obra de Marx há in nuce uma estética contrapôs Lukács aos marxistas seus contemporâneos. Em vez de acrescentar à obra de Marx uma estética elaborada por outro pensador − como Kant, por exemplo −, cabia aprofundar as geniais observações feitas por Marx sobre arte e literatura. Tal certeza se formou e consolidou a partir da leitura dos Manuscritos econômico-filosóficos que Lukács pôde fazer em Moscou, ainda antes de sua publicação.

A dialética que rege a relação de sujeito e objeto só se entende se se concebe a atividade artística e a obra de arte como reflexo da realidade. Dito assim, parece simples e até mesmo banal: a realidade estaria aí como algo dado de antemão, pacífica e estática; ao artista caberia então apenas recolhê-la como uma reprodução passiva. Mas a realidade não é algo dado, pacífico e estático, e sim o conjunto dinâmico das relações humanas, das relações dos homens entre si e da sociedade com a natureza. Esse conjunto, e os nexos que o articulam, é que é refletido. Quem diz dinâmico diz processual, salienta as possibilidades contidas na realidade.

O artista, assim como sua obra, não está fora desse conjunto, de tal modo que pudesse fazer dele uma cópia neutra. O objeto do reflexo é o devir, a evolução da sociedade, que é “uma intrincada trama de interações”. Diz Lukács, em outro texto aqui não incluído, que a arte reflete não a realidade do instante que passa e nunca se repete, mas a dos elementos e tendências do processo.

A obra literária reflete as tendências, que não são perceptíveis a olho nu, sendo esse processo o da evolução da humanidade, ou o progresso contraditório. O caráter contraditório do progresso é um problema geral do desenvolvimento da sociedade dividida em classes, como Lukács sublinha no ensaio “Marx e o problema da decadência ideológica” (ver p. 104 deste volume).

Objetividade não se confunde, portanto, com neutralidade. Neutra seria a cópia, uma vez que estaria, assim, para ser feita por todos e da mesma forma. As obras de arte não são neutras. Há nelas uma tomada de partido, que não está diretamente ligada às concepções e posições do escritor, podendo até mesmo contradizê-las.

Por isso, tanto Marx quanto Engels acentuam nas cartas a Lassalle que o erro deste foi ter construído um personagem e um drama segundo sua visão de mundo, em vez de representar as forças sociais objetivas em movimento e seus personagens como destinos que não dependem da intenção do escritor.

O destino do personagem depende das condições objetivas de sua vida. O escritor saberá perceber esses caminhos intrincados, que são as tendências do movimento histórico objetivo. O máximo de objetividade é, assim, a marca da grande obra literária.

Mas se ao escritor não cabe representar o personagem segundo suas convicções e se, ao mesmo tempo, cabe ao escritor dar a ver as forças sociais objetivas em movimento, em que consiste a intensificação da subjetividade que é, segundo Lukács, a peculiaridade da obra de arte?

A obra representa os momentos decisivos da evolução histórica, que são as tragédias e as comédias, e elas são fatos da vida, não são inventadas pelo escritor. Aqui se formula, a partir de Engels, como também de Marx, a ideia de triunfo do realismo. E desta deriva o conceito da arte como memória da humanidade, central na estética madura de Lukács. A obra de arte intensifica a subjetividade porque reflete o mundo objetivo, mas orientado para o homem. A subjetividade individual intensificada é a subjetividade estética. Em Die Eigenart des Ästhetischen [A peculiaridade do estético], Lukács afirma que a posição da referencialidade da obra de arte em relação ao mundo objetivo não é a de um acréscimo subjetivo a um mundo estranho ao sujeito; pelo contrário, a orientação ao homem deve aparecer já como propriedade inerente e em-si dos objetos refletidos.

Qualquer descuido na percepção da dialética sujeito/objeto levará a um subjetivismo ou a um objetivismo. Assim, compreender a realidade como dada e estática levará ao objetivismo, dominante em boa parte dos marxistas com os quais Lukács polemizou; compreender a realidade como dependente da consciência humana levará, por sua vez, ao subjetivismo.

Hermenegildo Bastos (arquivo pessoal)

Aprofundar as geniais observações de Marx − aliás, mais do que simples observações, verdadeiras análises, como as que fez de Os mistérios de Paris, de Eugène Sue, em A sagrada família, e também estas que agora lemos sobre o Sickingen de Lassalle, bem como as acuradas interpretações de Shakespeare e Schiller, sobre Ésquilo e também Balzac − significou abrir dois campos de luta teórica e também política: por um lado, opor ao idealismo filosófico a concepção materialista de que o mundo objetivo existe independentemente da consciência, do sujeito; por outro, opor ao materialismo mecanicista a concepção ontológica da arte como atividade, isto é, do papel ativo do sujeito.

Lukács não está, portanto, apenas polemizando, mas intervindo. E a intervenção tem a força da urgência – a de contribuir para o surgimento de um novo ethos.

O subjetivismo imperante no idealismo filosófico não é tão estranho ao materialismo mecanicista como pode parecer à primeira vista: se o artista copia um mundo dado de antemão e estático, o que se torna então decisivo é a ideologia do artista – o que ter-mina configurando outra forma de subjetivismo. Os dois campos de luta são, de certa forma, um só: urge formular a estética marxista existente in nuce na obra de Marx para combater o idealismo filosófico, mas também o materialismo mecanicista, positivista em que se tornou o marxismo na União Soviética sob o poder de Stálin.

Daí a importância central que tem para Lukács o debate sobre o Sickingen de Lassalle, assim como a questão da tragédia. Nesse debate, Marx e Engels sublinham a importância decisiva da configuração, sem o que não poderá haver qualquer obra literária. A escolha do conteúdo é já uma operação do artista. Lassalle, segundo Marx e também Engels, escolheu mal o tema. Embora aprove a decisão de Lassalle de escrever uma autocrítica dramática da Revolução de 1848 e de fazer do conflito trágico no qual sucumbiu o partido revolucionário o pivô de uma tragédia moderna, Marx pergunta se o tema tratado foi adequado à exposição desse conflito. Lukács sublinha que nesse ponto Marx está tratando de questões estéticas importantes e que, por serem importantes, não são exclusivamente estéticas. Trata-se da relação entre tema e substância, pois Lassalle atribui a causa da ruína de Sickingen à “culpa trágica” individual, enquanto Marx vê aí a consequência necessária da condição de classe objetiva de Sickingen.

Na escolha de um tema por um escritor se pode ver a dialética de sujeito e objeto. Um tema se sobressai do processo que é a vida social. Mas o tema não está aí como algo dado, nem, como já disse, estático e pacífico, tampouco neutro. O escritor precisará encontrá-lo. E como nesse conjunto de natureza processual há posições e interesses conflitantes dos agentes, das classes sociais, nenhuma neutralidade será possível. Dentre os inúmeros “temas” gerados sem cessar pelas lutas ideológicas, um deles se sobressairá.

As questões de estilo de Sickingen abordadas por Marx e Engels são questões dessa natureza, isto é, estéticas-mas-não-só. Aí se apresenta o contraponto entre Shakespeare e Schiller. Schillerizar significa, para Marx, transformar indivíduos em porta-vozes do espírito-universal, sendo esse o erro mais significativo do drama. Shakespearizar, por sua vez, significaria representar as lutas de classes concretas, os conflitos objetivos, o que Lassalle não pôde fazer.

Este pretendia escrever a tragédia da revolução. Mas para Marx a tragédia é a expressão do declínio heroico de uma classe. A tragédia e a comédia são expressões poéticas de determinados estágios da luta de classes, tanto no caso da classe decadente quanto no da classe revolucionária.

A questão da tragédia está presente em toda a obra de Lukács, desde A alma e as formas, passando por O romance histórico e Contribuições à história da estética, até a Estética e a Ontologia. O leitor de Lukács, mas não apenas este, também o interessado em estética ou em história, ganhará muito se puder recompor, mesmo em traços gerais, a evolução da concepção de tragédia que está presente na obra do filósofo húngaro. Para o jovem Lukács de A alma e as formas, a tragédia está na impossibilidade de uma vida autêntica no mundo inautêntico. Já o autor de O romance histórico sublinha a ideia de “tragédia histórica”, isto é, a inevitabilidade do desparecimento da classe em declínio, como narrada por Walter Scott. Para o Lukács da Estética e da Ontologia, a tragédia está na urgência de alcançar a generidade humana plena e na impossibilidade atual de fazê-lo. A evolução humana se dá por meio de tragédias, mas esta evolução como um todo não é trágica.

A concepção madura da tragédia está diretamente ligada à ideia de tipo, como aparece em Engels. Nesse sentido, Lukács entende, na linha de Engels, que o verdadeiro realismo não parte das pequenas qualidades acidentais dos homens. Na obra literária realista, tudo que é meramente acidental se exclui. A configuração realista dá aos acidentes um caráter de necessidade. A unidade entre acidental e necessário define o realismo. Na carta a Minna Kautsky, Engels sublinha que cada personagem é um tipo, mas ao mesmo tempo é um “este”. Em “Marx e o problema da decadência ideológica”, Lukács fala da “dialética objetiva que vigora entre o acaso e a necessidade” (ver p. 120).

Se a arte reflete a verdade objetiva, isto é, se ela reflete “as reais forças motrizes do desenvolvimento social dos homens” (ver p. 93), ela pretende possuir valor de verdade objetiva. Sem ser um documento, nem mesmo uma narrativa histórica, a obra literária realista evidencia o processo histórico real. Por isso Engels afirma que aprendeu com Balzac “mais do que com os livros de todos os economistas, historiadores e estatísticos profissionais daquele período em seu conjunto” (ver p. 94).

Analisando em “Tribuno do povo ou burocrata?” o significado e o peso do hábito na vida humana, Lukács antecipa aqui, nesse ensaio de 1940, suas decisivas análises sobre a vida cotidiana, tema que se tornará central em suas obras tardias. Lenin, diz ele, considera o hábito um fator social de extrema importância também na formação do socialismo. No capitalismo os homens vivem sob a cruel divisão do trabalho como se ela fosse natural; é assim que surge a “habituação à inumanidade capitalista” (ver p. 172).

A arte é um hábito, no sentido aristotélico, um ethos. A poesia imita a natureza, mas para criar o que na natureza não existe. Como tal é um caminho para a liberdade. Essas considerações não devem ser estranhas a Lukács, que pretendia se dedicar, como forma de coroar sua obra, a escrever uma ética.

Os leitores deste livro saberão apreciar essas páginas tão atuais sobre a tragédia e a comédia na evolução humana. Estão de parabéns a editora Boitempo e os coordenadores da Biblioteca Lukács.

Hermenegildo Bastos

Salvador, outubro de 2016.

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