Os homens sem plumas

No trem que o levava de volta à sua casa ele não dormia. Olhava pela janela a paisagem de sombras passar velozmente produzindo um balé de luzes no chão do vagão. Alguém encostou nele e lhe passou um folheto amassado.

Por Mauro Luis Iasi.

“Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
de casas de lama
plantadas em ilhas de lama
coaguladas de lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama”

João Cabral de Melo Neto

Ele acordou bem cedo, como sempre. Andou pelas ruas ainda adormecidas como que virado para dentro, absorto em pensamentos desconexos, fragmentários. Seus pés o levavam com a maestria adquirida em anos de prática, desviavam de obstáculos e encontravam o caminho às cegas.

A estação de trem, como sempre, estava lotada. Centenas de pessoas viradas para dentro e perdidas em seus pensamentos. O café no copo de plástico queimou sua boca, salvando-o do gosto abominável da beberagem amarga, muitos outros seriam necessários para arrancá-lo de seu torpor.

Em um instante ele passou pela torrente de pessoas que fluíam como água suja de enchente para dentro dos vagões até encontrar um cano frio de metal onde se encostar. Dormir em pé é uma arte pouco valorizada, a posição firme dos braços junto a barra de metal, os pés que pressentem o movimento e antecipam freadas e arranques, a cabeça que pende e avisa da queda iminente.

E ele sonhou.

Seus pés tocavam a areia quente e o sol da manhã deixava tudo meio amarelo. O mar à sua frente parecia imóvel, mas a areia movia-se como água provocando uma certa vertigem. Ela olhava para ele e dizia sem falar nenhuma palavra que estava feliz. Logo ali pessoas vestidas com calças e vestidos, carregando embrulhos e mochilas faziam fila para entrar no mar e quando as ondas abriam com um apito agudo se viam outras pessoas saindo do mar em um movimento de turba descontrolada. Saiam todos cobertos por uma grossa camada de lama.

O movimento da água lhe provocava uma enorme vontade de ir ao banheiro, mas as portas estavam fechadas ou se abriam para outros cômodos, um quarto desarrumado, uma sala antiga com moveis deteriorados, um pátio com crianças correndo. Uma escada com degraus íngremes quase o fez cair. Ele acordou segurando firme no cano do vagão enquanto sua cabeça pendia num movimento violento para frente.

Não haviam praias. Há muito foram interditadas. O céu de um cinza chumbo permanente proibia os raios amarelos da manhã, assim como os tons de magenta e laranja dos entardeceres. Ele não estava feliz, ela não estava mais lá. Ele poderia considerar um bom dia quando conseguia sonhar com ela, carregaria a sensação dela sorrindo por entre os escombros do dia até que a noite engolisse tudo sem piedade.

Ela o iluminava, aquecia seus pés como a areia imaginária, o guiava pela rua desviando de buracos e calçadas assimétricas, segurava seu corpo dormente para que não caísse do sonho de volta naquele vagão lotado. Ela não estava mais lá desde que os oceanos morreram. Ele sempre pensou que ela não quis ficar num mundo sem o barulho das ondas, sem a brisa que vem do mar à noite. Deixou um sorriso para guia-lo e se foi.

Formara-se uma enorme barreira de plástico e detritos de onde emanava um forte odor de putrefação que afastou todos das áreas costeiras. Uma espécie de mangue, de lama e lixo, tomou conta de tudo e tornou-se o abrigo de uma forma hibrida de vida, uma casta de intocáveis, anfíbios e invisíveis que encontraram um meio de respirar e comer lixo e lama.

Os trens cruzavam velozes longe disto tudo, dentro das cidades de cimento, cercadas por muros sanitários e torres de controle. Diariamente enormes tubulações despejam toneladas de lixo, montanhas de plásticos e detritos para além dos muros da cidade e até as costas onde alimentavam os mangues que cercavam os oceanos assassinados.

Ele foi cuspido do trem junto com uma enorme malta de semiacordados que buscavam as cegas seu caminho num labirinto ordenado de caminhos pelos quais, surpreendentemente, as pessoas encontravam por onde ir como detritos boiando num rio pastoso e lento.

Caminhavam até fábricas enormes que os engoliam por todo o dia e das quais saiam cortejos de caminhões repletos de produtos de plástico, embalados em plástico dentro de caixas de plástico.

Distante da cidade de cimento e das orlas fétidas do mangue, nas colinas, existiam casas confortáveis, jardins e árvores. Ali foi instalado o sol artificial que aquecia e iluminava as construções e ruas bucólicas. Haviam, também, praias artificiais, piscinas que imitavam ondas e essências muito parecidas com o cheiro da maresia. Sistemas de som reproduziam o gorjeio de pássaros e o grasnar de gaivotas há muito extintas.

Desde a última rebelião, os acessos à colina estavam fortemente vigiados e seus moradores raramente saiam de lá e quando o faziam iam pelo ar em luxuosos helicópteros individuais.

Ele estava absorto em seu monótono e repetitivo trabalho enquanto lembrava do sorriso dela quando caminhava para as manifestações com suas companheiras. Ela estava feliz. Ela estava lá quando as tropas de segurança atacaram.

No trem que o levava de volta à sua casa ele não dormia. Olhava pela janela a paisagem de sombras passar velozmente produzindo um balé de luzes no chão do vagão. Alguém encostou nele e lhe passou um folheto amassado. Ele não precisava olhar, sabia do que se tratava. Amanhã na estrada da colina, basta.

Caminhava para casa da mesma forma automática que realizara pela manhã. Voltava como que esvaziado, até mesmo de pensamentos desconexos e fragmentos de sonhos.

Esquentou a embalagem plástica de seu jantar e desmoronou em uma cadeira olhando as paredes enormes dos edifícios que o cercavam. Luzes pálidas denunciavam corpos curvados diante de suas mesas e bandejas de plástico, milhares de homens sozinhos em seus cubículos cinzas como containers empilhados e abandonados num porto à noite.

Ele parou por um segundo diante da lata de lixo onde despejava os restos da imitação de comida e a bandeja de plástico. Uma imensa tristeza o acometeu quando baixou a tampa e se arrastou para o quarto, e para a insônia que o aguardava.

Elas caminhavam alegres e decididas. Elas não queriam viver em um mundo onde os oceanos estavam sendo assassinados. Quando ela olhou para trás e sorriu, todo o tempo se congelou como numa fotografia, mesmo no momento que as grossas torres de fumaça tomaram conta de tudo e começaram os tiros.

Ela estava lá e estava feliz.

Pegou o folheto amassado em seu bolso. Foi quando se decidiu. Ele não podia aceitar um mundo que assassinava oceanos e sorrisos.

No dia seguinte ele estava lá. Estava feliz e não estava sozinho.

***

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.

2 comentários em Os homens sem plumas

  1. HUGO PEQUENO MONTEIRO // 28/11/2020 às 10:53 am // Responder

    Meu caríssimo Camarada Mauro,

    Este conto poderia certamente servir de embrião de um futuro livro que descrevesse em detalhes esta luta tão necessária, de libertação e de construção de um mundo Comunista.
    Luta imprescindível, ontem, hoje e no futuro.
    Por favor, considere esta sugestão.

    Abraço fraterno.

    Hugo P. Monteiro

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  2. Fhilipe G. Rigamonte // 30/11/2020 às 2:09 pm // Responder

    Me lembrou demais o livro “Não verás país nenhum” do Loyola. Um mundo acabado, um Brasil acabado. Fico pensando qual é o lugar da esperança, se a partir de um determinado momento ela só será possível por meio da luta…

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