Agora, Caetano? O antiliberalismo fora do lugar

Foi preciso que o liberalismo brasileiro, elitista e autoritário por excelência (histórica), como nos mostrara Roberto Schwarz, chegasse ao flerte com o fascismo bolsonarista para que Caetano reconhecesse o seu potencial destrutivo. É o capitalismo dependente, estúpido!

Por Fabio Mascaro Querido.


“… não tem jeito, companheiro, nos perdemos no meio da estrada e nunca tivemos mapa algum, ninguém dá mais carona e a noite já vem chegando”.
Caio Fernando Abreu, “Os sobreviventes”.

Em entrevista recente, concedida ao jornalista Pedro Bial, Caetano Veloso explicitou o que já se sabia: que não se considera mais politicamente liberal – ou “liberaloide”, conforme o termo por ele utilizado. O mais surpreendente foi menos a afirmação em si do que a inspiração reivindicada pelo compositor para essa virada crítica: o filósofo italiano Domenico Losurdo, falecido em 2018, e até os últimos dias um defensor inconteste das experiências socialistas “realmente existentes”, ou seja, de tudo aquilo contra o qual o músico brasileiro se “libertou” após o golpe de 64.

Como mostrara em Verdade Tropical, livro redigido nos anos 1990, o seu flerte inicial com o liberalismo ocorreu em meio à crítica radical ao autoritarismo tanto dos regimes socialistas (URSS, China, Cuba) quanto da esquerda populista ou marxista brasileira dos anos 1950 e 1960, com a qual ainda flertava na juventude vivida na Bahia. A passagem em que descreve o efeito de liberação provocado pela cena de Terra em Transe (Glauber Rocha) na qual o poeta Paulo Martins se dá conta dos limites do povo até então exaltado é, a este respeito, sintomática. Nas suas próprias palavras, Caetano enxerga aí o anúncio da “morte do populismo”, o que para ele significava o fim não apenas do compromisso com uma concepção mítica e homogeneizadora do povo, mas também de qualquer perspectiva “popular” em que as classes subalternas pudessem figurar como sujeito político.

Uma vez que já “não achava que os operários […] ou as massas operárias pudessem ou devessem decidir quanto ao futuro da minha vida”, a proclamação do poeta (do próprio Glauber?) de que a crença nas energias libertadoras do “povo” estava esgotada, mais do que indicar o “fim das possibilidades”, se projetava como a abertura “de novas tarefas para mim” (Verdade Tropical, 2017, p.137). Se num primeiro momento essa abertura tornou possível a contracultura tropicalista, ela favoreceu, mais tarde, a aproximação com o “pluralismo” liberal.

Mais de 5 décadas depois, no entanto, a crítica da “crítica” liberal seria realizada com o auxílio de um autor cujo consistente antiliberalismo sempre se articulou com a defesa não menos enfática do socialismo autoritário e burocrático soviético ou chinês. Após ainda afirmar – nas entrevistas para o documentário Narciso em Férias (2020), e já em contraste com algumas de suas posições recentes – a profissão de fé liberal, Caetano não hesita agora em se valer de uma crítica ao liberalismo cujo parâmetro normativo, por assim dizer, são regimes que, de socialistas ou democráticos, não tinham (ou têm) muito mais do que o nome. Daí, por exemplo, a disposição de Losurdo em revelar as contradições entre a teoria e a prática do liberalismo, talvez porque assim pudesse justificar a si mesmo, e aos seus leitores, as incongruências dos regimes que jamais deixara de apoiar. Daí também a tentativa do filósofo italiano de jogar quase tudo no barco maximalista do “marxismo ocidental”, de Trótski a Adorno, em contraposição ao qual celebrava o realismo dos soviéticos e seus satélites do Terceiro Mundo.

Ora, se diz pouco sobre o processo de mudança política de Caetano nos últimos anos – cuja explicação reside, ao contrário do que disse o próprio em entrevista para a Folha de São Paulo (27/09/2020), na história social e política brasileira recente, e não na leitura (ou na visualização de vídeos!) de ou um outro autor –, a afirmação desconcerta quando vista à luz da trajetória do músico/escritor, em particular de sua indisposição carrancuda contra um dos maiores críticos do liberalismo no Brasil: o crítico literário Roberto Schwarz, que Caetano conhecera em Paris, no período do exílio, na casa de Violeta Arraes Gervaiseau, espécie de quartel-general dos exilados brasileiros.

Caetano jamais suportou a disposição de Schwarz em colocar em perspectiva histórica quer a experiência tropicalista, como no ensaio “Cultura e Política: 1964-69” (1970), quer a sua própria trajetória artística e política, como em texto mais recente sobre Verdade Tropical (2012). E o grande problema, para ele, estava exatamente na carapuça marxista vestida pelo crítico por vezes penetrante – ele ao menos concede –, mas sempre limitado pelo “esquerdismo convencional”, pela “grande religião marxista”, pela “visão de um esquerdista no paraíso pré-64”, de acordo com os termos utilizados por Caetano na nova introdução escrita para a reedição de Verdade Tropical, publicada em… 2017, i.e., já no contexto da ascensão conservadora! Embora faça algumas concessões laterais logo relativizadas – “Roberto Schwarz tinha razão em ser contra minha perspectiva: minha obra [Verdade Tropical] tinha identificação com a globalização. Mas…” –, Caetano reafirma a antipatia pela prepotência do crítico que ousa submeter a obra a um exame que, começando pela análise imanente do texto, nele não se detém, procurando interpretá-lo como forma de internalização expressiva do “processo social”.

É no mínimo estranho, embora sociologicamente compreensível, que, num contexto de ascensão de um neoliberalismo autoritário e, agora, protofascista, Caetano explicite o seu distanciamento do liberalismo recorrendo a uma crítica cosmopolita da história da prática política liberal, como a de Losurdo, ao mesmo tempo em que continua reduzindo à insignificância a crítica schwarziana, cujo antiliberalismo toca exatamente nas singularidades da formação social brasileira, tema por excelência, inútil recordar, da experiência tropicalista – e, muito mais importante e significativo, tema por meio do qual Caetano desancava os limites do enquadramento marxista de Schwarz.

Lapso? Ressentimento? Incapacidade de admitir que aquele crítico que, anos atrás, em entrevista para a Folha de São Paulo (Ilustríssima, 15/04/2012), acusara de manter silêncio a respeito do que ocorria na Coreia do Norte (e alguma vez Schwarz defendeu o regime lá instalado? Ou a URSS? Ou a China?), tinha alguma dose de razão? Mas por que então a elegia a um autor associado à reabilitação de Stálin, em cuja “contra-história do liberalismo” encontrou aportes para a percepção dos limites da (sua) perspectiva liberal? Amostra de abertura de espírito? De liberdade “livremente flutuante”? Adaptação às circunstâncias? A depender do que diz o próprio Caetano, em 2017, um pouco de tudo isso: “Nos últimos tempos, minha inclinação à esquerda viu-se obrigada a explicitar-se, dada a intensidade com que as forças conservadoras se levantaram no Brasil. Para muita gente isso foi um combustível para a polarização e a volta a classificações e desclassificações fáceis. Para mim, o desprezo pela aristocracia tola dos esquerdistas não justifica uma adesão aos planos sinistros da direita” (Verdade Tropical, 2017, p.31).

O “desprezo” aqui tem endereço: são os “esquerdistas” brasileiros à Schwarz, supostamente condescendentes com todo tipo de autoritarismo (do populismo ao stalinismo, do nacionalismo ao lulismo). São eles ainda que, para Caetano, compõem a “aristocracia tola”. Talvez porque ainda pensasse que os liberais é que eram realmente populares! Mas, claro, era preciso se distanciar também dos “planos sinistros da direita”, que afinal trouxeram novamente à superfície o que há de pior no nosso legado autoritário, outrora sentido – literalmente – na pele por Caetano, preso e depois exilado estético-político.

O que resta disso tudo? Que o liberalismo não é mais uma saída, mas tampouco o elitismo dos intelectuais de esquerda, que se arrogariam o direito de falar em nome do povo. Caetano é de esquerda, pero no mucho, era liberal, mas esclarecido, agora é crítico do liberalismo, que está muito à direita, mas se mantém à distância de qualquer populismo, ao qual prefere o empreendedorismo tropical de Mangabeira Unger. Em suma, Caetano pode ser qualquer coisa. Afinal, como reza a mitificação reacionária da genialidade, Caetano pode tudo. Qual um Brás Cubas pós-moderno, com sua desfaçatez elitista, ele pode!

Tanto pode que, na mencionada entrevista à Folha, ele não hesita em atribuir a sua virada política aos vídeos de Jones Manoel e aos textos de Losurdo, e não ao que se passou no país nos últimos anos, em contradição com o que ele mesmo afirmara em 2017, e como se fosse um espírito livre flanando sobre as contradições que apeiam a capacidade de compreensão do restante dos mortais. Talvez por isso, sempre que levanta alguma questão polêmica, Caetano logo volta à cena para afirmar, do alto de sua genialidade, que ninguém entendeu nada, e que tudo não passa de uma “confusão” (Folha de S.Paulo, 27/09/20). Ou ainda porque, depois de desqualificá-la em distintas oportunidades, não veja nenhum problema em afirmar que, no limite, “não sei se entendo bem” a crítica do “marxismo ocidental (sic) Roberto Schwarz” (idem).

Seria cômico se não fosse trágico, a se lembrar, por exemplo, que foi este mesmo personagem que, dizendo-se liberal de esquerda, não hesitava em escrever passagens como essa, de Verdade Tropical, em meados dos anos 1990: “Hoje são muitas as evidências de que, por um lado, qualquer tentativa de não alinhamento com os interesses do Ocidente capitalista resultaria em monstruosas agressões às liberdades fundamentais, e de que, por outro lado, todo projeto nacionalista de independência econômica levaria a um fechamento do país à modernidade” (Verdade Tropical, 1997, p.82). Pela clarividência, a passagem poderia ter sido redigida, na mesma época, por um dos intelectuais paulistas convertidos ao neoliberalismo, se não pelo próprio Fernando Henrique Cardoso, presidente que, logo no primeiro ano de governo, mostrou as suas credenciais “liberal-democráticas” com a violenta repressão à greve dos petroleiros. Desse paulista Caetano acabou gostando. “Interesses do Ocidente” obrigavam!

Muito desse vai-e-vem de Caetano se deve ao modo como elaborou – psicanaliticamente, inclusive – o seu distanciamento do nacional-populismo dos anos 1950 e 1960. Para o Caetano dos anos 1990, o de Verdade Tropical, a única alternativa crível ao populismo autoritário da esquerda e, de quebra, ao regime militar de direita, estava na diluição cosmopolitista das hierarquias nacionais, da qual o tropicalismo e, mais tarde, o liberalismo democrático teriam dado prova. Nessa chave interpretativa, a crítica schwarziana só poderia ser entendida como um retorno entre nostálgico e envergonhado às ilusões do nacional-populismo, mesmo que temperado pelo doutrinarismo marxista – perspectiva que tolhe qualquer disposição à compreensão de um intelectual que, ao contrário do que sugere Caetano, é marxista sem ser stalinista, e procura apreender a especificidade nacional sem ser nacionalista.

Talvez esteja aí, nessa indisposição em relação ao esquerdismo “tolo”, a desconcertante demora do diagnóstico dos limites do (seu) liberalismo. Foi preciso que o liberalismo brasileiro, elitista e autoritário por excelência (histórica), como nos mostrara Schwarz (via Machado de Assis), chegasse ao flerte com o fascismo bolsonarista para que Caetano reconhecesse o seu potencial destrutivo. É o capitalismo dependente, estúpido!

Nesse contexto, a reivindicação de uma filiação extemporânea, aparentemente em contradição com o que defendera por décadas, serve como cortina de fumaça, transformando em liberdade de pensamento o que, na verdade, não passa de denegação racionalizadora, ou, em outra chave, de esforço distintivo, viabilizado pela referência ao jovem youtuber. Freud e Marx explicam.

Se tivesse (re) lido Schwarz sem o ressentimento daquele que é objeto da crítica, e sem o desprezo pela esquerda intelectual e política brasileira das últimas décadas, Caetano não precisaria desse tour de force. Mas talvez o compromisso com os “interesses do Ocidente” ainda fosse muito forte para lhe permitir o acordo com o marxista obtuso. A ver se agora o antiliberalismo tardio o levará a dirigir a esses “interesses” o mesmo desapreço que, até bem recentemente, vinha concentrando (agora sabemos) numa certa esquerda…

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Fabio Mascaro Querido é Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp, autor de Michael Löwy: marxismo e crítica da modernidade (Boitempo, 2016), e membro do conselho editorial da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda.

1 comentário em Agora, Caetano? O antiliberalismo fora do lugar

  1. Clotilde Queiroz // 23/10/2020 às 12:57 pm // Responder

    Caetano é mais um exemplo de “artista intencionalmente alienado”. “Menos liberaloide” continua “liberaloide”. Do grego “oiedés”, o sufixo “óide” significa semelhança. Um poeta atrapalhado com o uso de sua ferramenta: a linguagem.
    O artigo que eu gostaria de ter escrito.

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