A tragédia ambiental do governo Bolsonaro
O país está nas mãos de uma burguesia de rapina entreguista que nunca teve interesse em seu povo (mas somente em espoliar suas riquezas e remeter os lucros para o exterior) e é governado por um indivíduo preconceituoso, negacionista, racista e autoritário, um representante do lumpesinato e das milícias, sem qualquer preparo político ou intelectual, aliado dos madeireiros, grileiros, garimpeiros e agronegócio. A situação atual é a mais grave em décadas.
Por Luiz Bernardo Pericás.
Desde o primeiro dia de seu mandato, o presidente Jair Bolsonaro tem se empenhado em destruir tudo o que foi erigido institucionalmente desde o fim da ditadura militar, nos campos da educação, cultura, relações internacionais, direitos humanos e costumes. O meio ambiente, por certo, sempre foi alvo da exploração predatória e de todo tipo de interesses escusos, nacionais e estrangeiros, mas a situação se tornou dramática na atualidade. Afinal, agora a biodiversidade brasileira está entre os principais alvos da sanha aniquiladora do Palácio do Planalto. A presente administração colocou em andamento uma das mais nefastas e eversoras políticas em relação à natureza, implementando medidas que têm visado eliminar florestas, desmontar organismos de monitoramento e fiscalização e apoiar atividades ilegais, como o extrativismo madeireiro rapace, garimpos em reservas indígenas e queimadas.
Os resultados das atitudes do capitão reformado têm se revelado estarrecedores. Houve uma alta de 34% no desmatamento na Amazônia em julho de 2020, em comparação com agosto do ano passado. Só em junho, haviam sido constatados, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, 2.248 focos de incêndios naquele bioma, a maior incidência desde 2007 (representando um aumento de 19,5% em relação ao mesmo mês do ano anterior) e 1.034 quilômetros quadrados de áreas desmatadas de florestas, uma elevação de 25% se comparado com 2019, de acordo com o sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), além de serem identificados 44.013 focos de queimadas em oito meses (dos quais, 29.307 em agosto, ou 66,5% do total).
Na região Norte, os estados campeões em queimadas são Pará, Acre e Amazonas. Este último, na avaliação do Inpe, acumula, desde 1988, 29.972 km2 de área desmatada, e de 2016 para cá, mais de mil quilômetros quadrados eliminados anualmente (em 2019, foram destruídos 1.434 km2 de selva no estado, a maior superfície em 16 anos).
Ainda que o desflorestamento na Amazônia tenha aumentado em 418 municípios em 2019, o governo propagandeia que a operação das Forças Armadas, “Verde Brasil”, de maio até agosto de 2020, realizou 26 mil inspeções navais e terrestres, apreendeu mais de 600 embarcações irregulares e 800 máquinas de serraria móvel, aplicou mais de R$ 500 milhões em multas e confiscou 28,7 mil metros cúbicos de madeira ilegal. Uma matéria do jornal O Estado de S. Paulo, contudo, mostrou que, na verdade, os números desta diligência foram inflados pelas autoridades.
No Pantanal, por sua vez, houve um incremento de 220% no registro de focos de incêndio até 31 de agosto comparado com 2019, o equivalente a 10.153 pontos de calor. Pelo menos dois milhões de hectares já foram destruídos no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, correspondendo a 12% da área total daquele bioma.
Apesar disso, o Ibama poderá perder até 20% de seu orçamento em 2021. Não custa lembrar que em 2020, este órgão conta com apenas R$ 1,75 bilhão para todas as suas despesas, sofrendo uma redução de 14,8% em relação a 2019. Enquanto que um decênio atrás a autarquia possuía 1.311 fiscais, esse número chegou à irrisória cifra de 591 agentes na atualidade. A quantidade de multas também diminuiu acentuadamente, 54% a menos de janeiro a maio de 2020 em relação ao mesmo período do ano passado.
Os ativistas que combatem os desmandos e irresponsabilidades desta administração, por sua vez, têm sido alvo constante de atentados e agressões. A vida dos militantes ecologistas está continuamente em risco desde a chegada de Bolsonaro ao poder. O fato é que a investida contra militantes ambientalistas se acentuou, especialmente por causa da sensação de impunidade por parte dos criminosos. De acordo com o mais recente relatório da Global Witness, intitulado “Defender o amanhã”, 148 pessoas foram assassinadas na América Latina em 2019 quando lutavam por causas ambientais (incluindo líderes de movimentos sociais e defensores dos direitos humanos), 24 delas no Brasil (sendo 10 indígenas), das quais 90% na região amazônica. Boa parte dos homicídios foi perpetrada por setores ligados à mineração, ao extrativismo madeireiro e ao agronegócio.
Nesse sentido, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles pode ser visto como um dos principais responsáveis pela desastrosa política do governo neste âmbito. Em abril, ele exonerou um diretor e dois coordenadores de fiscalização do Ibama após operações ocorridas em Altamira (Pará) contra grileiros e garimpeiros em territórios indígenas dos Apyterewa, Trincheira Bacajá e Kayapó (região da Volta Grande do Xingu), onde 100 máquinas usadas para o desmatamento foram destruídas. Além disso, Salles retirou do cargo superintendentes do ICMBio em 21 estados logo depois de assumir a pasta, desestruturando a cadeia de comando do órgão; reduziu o número de horas de atuação em campo dos servidores; deixou de usar R$ 1,6 bilhão no combate ao desmatamento; extinguiu os comitês técnico e assessor do Fundo Amazônia (uma doação dos governos da Alemanha e Noruega de R$ 33 milhões a este fundo, que tinha como finalidade ser utilizada para ações de fiscalização na mata, ficou intocada no BNDES; na verdade, a verba destinada especificamente à inspeção contra queimadas e redução da cobertura vegetal em 2020 é de R$ 76,1 milhões e já foi praticamente toda gasta no primeiro semestre); criticou os sistemas de monitoramento de focos de incêndio por satélite; defendeu a saída do diretor do Inpe, Ricardo Galvão; incentivou o emprego das FFAA em Operações de GLO na floresta (que custaram mais de R$ 124 milhões em dois meses de atividades); reduziu a participação da sociedade civil no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), com 80% dos cargos ocupados por integrantes do governo; adotou uma “lei da mordaça” no Ibama, diminuindo a transparência, censurando funcionários, criando obstáculos para a divulgação de informações e determinando que as perguntas de jornalistas fossem encaminhadas diretamente para a assessoria de comunicação do MMA; retirou do ar nos sites oficiais do governo os mapas de áreas prioritárias para a conservação da biodiversidade; transferiu para o Ministério da Agricultura o poder de conceder florestas públicas para a produção madeireira e serviços florestais; e extinguiu a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas. Por tudo isso, um grupo de 12 procuradores do MPF apontou, em julho, 14 atos que teriam configurado improbidade administrativa na gestão das políticas ambientais, pedindo, por esse motivo, seu afastamento do cargo.
Neste ínterim, o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, recorrentemente minimiza os estragos ecológicos e chegou a dizer numa entrevista, no final de agosto (quando o Inpe divulgou que havia 24 mil focos de incêndio na Amazônia), que a devastação na região, na verdade, era apenas “uma agulha no palheiro”. As internações em hospitais de indígenas e de moradores de áreas urbanas próximas às queimadas por problemas respiratórios não parecem sensibilizar as autoridades. Nem o avanço do novo coronavírus em muitas aldeias, que representa um verdadeiro genocídio dos povos originários e que tem como outro responsável, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello…
Apesar de tudo isso, Bolsonaro tem desidratado as multas onde cresce o desmatamento. Em 2019, em 234 municípios as autuações por crimes ambientais diminuíram, uma dinâmica que se acentuou em 2020. Isso significa que o Ibama penalizou 40% a menos de janeiro a julho deste ano do que no mesmo período de 2019 (o que representa, na prática, a menor quantidade de multas nos últimos dez anos). A redução mais expressiva de cobranças foi no Pará, ao mesmo tempo em que houve uma ampliação na desarborização de 108 municípios daquele estado em comparação com o ano anterior. Em Água Azul do Norte, por exemplo, onde se localiza a reserva indígena dos Xikrin do Cateté (a mais afetada pela Covid-19 naquela unidade da federação e onde são alarmantes os índices de contaminação por chumbo, ferro, cobre, níquel e cromo do rio que cruza aquela comunidade, resultante dos dejetos da mineração despejados pela empresa Onça Puma, propriedade da Vale), nenhuma multa foi aplicada, ainda que o desmatamento naquele território tenha crescido 9,7%. Não custa lembrar que o Ibama no Pará já teve três chefias (dois superintendentes foram exonerados), todos eles militares, na prática, “interventores” que não são especialistas no assunto, que repreendem servidores e que recorrentemente criam obstáculos para o trabalho eficiente do órgão. Dos nove estados da Amazônia Legal, sete deles tiveram redução de multas no primeiro ano de Bolsonaro no poder. Além disso, a corrente administração já certificou mais de 250 mil hectares de fazendas em terras indígenas na Amazônia (Mato Grosso, Pará e Maranhão).
Numa “live” semanal, no dia 3 de setembro, o presidente, dando pouca importância às queimadas, chegou a dizer que tinha vontade de “matar as ONGs da Amazônia” e que o aumento de áreas indígenas e de quilombolas seria prejudicial para o agronegócio. Isso para não falar do ministro Ricardo Salles, que já havia defendido uma maior participação da iniciativa privada nos diferentes biomas do país. Para ele, o papel do governo deveria ser o de “não atrapalhar”. Finalmente, o general Mourão, que em agosto expressou interesse na captação de investimentos da China, Rússia e Índia para a parte brasileira do “pulmão do mundo”. Ou seja, para ele, seria preciso atrair capitais dos BRICS para projetos na Amazônia. Por causa desta nítida linha de atuação do governo, o BNDES está avaliando um modelo de concessão de florestas para o setor privado, além de parques como os Lençóis Maranhenses, Jericoacoara e Iguaçu. Também há a intenção de se instituir um regramento para créditos de carbono.
Para completar, a falta de uma política de Estado clara e firme em relação a esse ecossistema fez com que grandes bancos (como Itaú, Bradesco e Santander) criassem um conselho consultivo sobre a Amazônia formado por sete integrantes, que deverá analisar projetos em andamento e propor planos para a região, sem falar na constituição, recentemente, de uma suposta “aliança” entre empresários, executivos, militares, economistas e políticos chamada de “Concertação pela Amazônia”, com o objetivo de propor alternativas para a questão ambiental. É o grande capital privado nacional e estrangeiro decidindo o que fazer com nosso território, com a complacência das autoridades em Brasília.
O país está nas mãos de uma burguesia de rapina entreguista que nunca teve interesse em seu povo (mas somente em espoliar suas riquezas e remeter os lucros para o exterior) e é governado por um indivíduo preconceituoso, negacionista, racista e autoritário, um representante do lumpesinato e das milícias, sem qualquer preparo político ou intelectual, aliado dos madeireiros, grileiros, garimpeiros e agronegócio. A situação atual é a mais grave em décadas. Fica a torcida para que Bolsonaro, Pazuello, Salles e o resto da quadrilha no poder sejam, em algum momento, julgados e se possível, presos por todos os seus crimes.
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Luiz Bernardo Pericás acaba de lançar a antologia Caminhos da revolução brasileira, que reúne 19 artigos fundamentais em que militantes e intelectuais teorizam sobre o tema da revolução brasileira. Elaboradas entre a República Oligárquica dos anos 1920 e a transição da ditadura militar para a redemocratização nos anos 1980, essas contribuições trazem diferentes perspectivas sobre como, a partir da formação social brasileira, podemos pensar em caminhos para uma transformação estrutural.
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Luiz Bernardo Pericás é professor de História Contemporânea na USP. Formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México), foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. Seu livro Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo, 2016), lhe rendeu o troféu Juca Pato de Intelectual do Ano e o Prêmio Jabuti de melhor biografia. Pela Boitempo, também publicou Os cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010), do romance Cansaço, a longa estação (2012) Che Guevara e o debate econômico em Cuba (2018) e a coletânea Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizado em conjunto com Lincoln Secco. Mais recentemente organizou e apresentou a antologia Caminhos da revolução brasileira (2019). Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
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