Benjamin e Brecht: cultura e lutas de classe

Embora os "Ensaios sobre Brecht", de Walter Benjamin, tenham obtido a sua primeira edição brasileira apenas em 2017, eles, sem sombra de dúvida, ainda não receberam a atenção devida.

Bertolt Brecht e Walter Benjamin em Svendborg, Dinamarca, 1934. Foto de autoria desconhecida.

Por Lindberg Campos.

Arte como produção

Pode-se afirmar que uma das maiores contribuições de Walter Benjamin – principalmente para o que veio posteriormente a se constituir como teoria literária – foi o seu conjunto de reflexões a respeito da materialidade da produção artística. Por sinal, ele fez parte de uma geração que compreendeu que a cultura de maneira geral já havia deixado de ser meramente “estruturas de significado” para se metamorfosear em mercadorias produzidas por um complexo industrial e para abastecer um mercado em rápida expansão, o qual, por sua vez, compreendia condições e relações de produção, distribuição e consumo (EAGLETON, 2002, p. 55). Evidentemente que isso não eclipsa o fato da arte ser o “mais altamente mediado dos produtos sociais na sua relação com a base econômica”. É provavelmente por isso que o estudo dos produtos culturais, na sua totalidade (estruturações individuais e coletivas, escoamento e recepção), pode verdadeiramente nos revelar aspectos da nossa dinâmica sócio-histórica que outras dimensões menos mediadas do que a cultura não podem. Dito de outro jeito, por mais que a produção artística tenha um chão composto de relações materiais de produção, ela lida com a “consciência humana” de uma maneira que nenhuma outra atividade lida e, graças a isso, a sua compreensão nos devolve e antecipa elementos difusos que não estão imediatamente acessíveis por outros modos menos sensivelmente mediados. Aliás, lembremos que o que tem se chamado de estética desde o século XVIII, originalmente se restringia à captura por meio dos órgãos sensoriais e só depois passou a ser visto na sua relação com o espírito, o intelecto ou o cultivo das faculdades mentais. Na organização dessa disciplina filosófica autônoma, realizava-se, sob o gênio do idealismo alemão, a conquista daquela unidade perdida entre arte, religião e ciência. Essa emancipação já anunciava a independência formal do fazer artístico e prenunciava a “instituição arte”; em outras palavras, a formação de um mercado cultural é indissociável da autonomização do gosto e do juízo do sujeito burguês. Ao que tudo indica, foi a partir de um embate crítico com o melhor do pensamento idealista alemão que Benjamin e Bertolt Brecht, a par dos ganhos e das perdas daquela empreitada, desenvolvem suas ideias sobre as ligações entre produção de cultura e luta política.

Assim, para marxistas como eles, “arte é uma forma de produção social”, o que não significa dizer que a base socioeconômica é um ente externo a ser deixado para sociólogos da literatura elencar, mas “um fato que determina intimamente a própria natureza da arte” (Ibid., p. 56). Ou, nos termos de um professor de literatura, no processo de estruturação das obras individuais, esses aspectos apenas aparentemente externos passam a constituir a arquitetônica das obras, determinando-se mutuamente, visto que não somente são as principais condições de possibilidade, como também passam a ser subordinados à lógica interna das mesmas, tornando-se, desse modo, aspectos internos às obras individuais (CANDIDO, 2006, p. 13-14).

A primeira consequência dialética da linha de raciocínio de Benjamin é justamente a verificação de traços potencialmente progressistas advindos da destruição daquela realidade aurática da obra de arte única e individual perpetrada pela sociedade industrial (Ibid., p. 59). Apesar de nada estar garantido de antemão, é possível vislumbrar a emergência das precondições para a instauração de uma relação mais transparente e autoconsciente entre produtores e consumidores de cultura, bem como a possibilidade do fim virtual dessas relações tal como as conhecemos. Nesse ensaio, tentaremos reconstruir o argumento de Benjamin de modo a recuperar algo da radicalidade da sua crítica cultural materialista – normalmente deixada de lado em nome da sua produção, digamos assim, mais abstrata – a partir, como diria Brecht, dos maus e novos problemas e não dos bons e velhos problemas. Dessa maneira, quem sabe, poderemos auxiliar na melhor compreensão de que um livro, uma telenovela, uma música, uma reforma urbanística ou um videoclipe deveriam começar a ser levados mais a sério e de modo mais criterioso, pois atuam politicamente a todo o tempo e, na imensa maioria das vezes, de forma imperceptível.

O autor como produtor

Embora os Ensaios sobre Brecht, de Walter Benjamin, tenham obtido a sua primeira edição brasileira apenas em 2017, eles, sem sombra de dúvida, ainda não receberam a atenção devida. Hoje sabemos que apesar de Benjamin jamais ter conseguido publicar em vida um estudo de grande fôlego sobre Brecht, desde pelo menos 1932, ele tinha planos para um livro inteiro dedicado a Brecht; Benjamin chegou a escrever onze trabalhos exclusiva ou parcialmente sobre o dramaturgo, mas somente cinco deles foram publicados durante a vida do filósofo (WIZISLA, 2009, p. 98).

De fato, a despeito do fato inelutável de que a totalidade da obra benjaminiana seja incompreensível sem um olhar atento à influência brechtiana, tal dimensão mais militante não raramente foi ignorada ou vista como enganos juvenis, desvios autoritários, ilusões passadistas, arroubos totalitários ou ingenuidades utópicas. Uma das investidas mais notórias foi desferida por um nome, já naquela época, bastante consagrado no mundo acadêmico internacional – Hannah Arendt –, que não apenas excluiu Brecht na sua apropriação bastante contestável de Benjamin, mas também usou sua projeção no semanário estadunidense The New Yorker para atacar aquele sem nunca apresentar nenhuma prova que confirmasse as suas desqualificações muito bem-vindas daquele lado da cortina de ferro. Efetivamente, insinuações, calúnias e acusações, daquele e de outros tipos, foram uma constante na vida de Brecht e se acentuaram dramaticamente durante a chamada Guerra Fria, tanto na Alemanha Ocidental ocupada pela CIA quanto na Alemanha oriental ocupada pela KGB. Tal episódio vale ser mencionado porque serve como ilustração da máquina anticomunista e devido à boa reputação que aquela filósofa tem gozado em meios acadêmicos ditos de esquerda e até socialistas. Dito de maneira bastante resumida: a professora de filosofia política supracitada fez um ‘perfil’ de Brecht e chegou ao ponto de afirmar, entre outros impropérios e sem nunca ter provado ou se retratado, que Brecht havia escrito “odes a Stálin”, certamente com o intuito mesquinho de dissociá-lo de Walter Benjamin e de neutralizar toda a teoria de ambos. Para uma descrição detalhada do ocorrido, bem como da ausência de provas das alegações por parte de Arendt e da troca de correspondências que resultou em uma passagem um tanto vexaminosa para ela, ver (WILLET, 1998 p. 227-234).

Bertolt Brecht e Walter Benjamin em Svendborg, Dinamarca, 1934. Foto de autoria desconhecida.

Esse esforço sistemático de separar Benjamin e Brecht, por um lado, e de atacar este para atenuar as posições políticas daquele, pode ser explicado, em parte, graças às várias frentes de batalha que esses textos sobre Brecht abrem: a santa aliança da mistificação burocrática, que religiosos, reacionários, liberais, socialdemocratas e stalinistas têm celebrado no intuito de manter os trabalhadores sem referência crítica e desorganizados, é o alvo prioritário da parceria entre Benjamin e Brecht. Com efeito, essas teses incomodam profundamente tanto os advogados da ordem, que se escondem atrás do saudosismo da ideologia burguesa da autonomia da arte, a qual se transformou em senso comum, quanto os partidários do mecanicismo campista, os quais, via de regra, partem do pressuposto torpe de que basta uma posição política minimamente explícita e correta para que toda e qualquer capitulação teórica e artística seja aceitável.

Foi levando isso em consideração que, Brecht e Benjamin, desde muito cedo, perceberam que, na realidade, uma tendência política verdadeiramente emancipadora é indissociável de uma qualidade artística, caso contrário ela definitivamente não é aquela. Passemos a palavra para Benjamin para vermos como ele próprio resolve a questão:

“A tendência de uma poética só pode ser correta politicamente se também for correta literariamente. Isso quer dizer que a tendência literária, que está contida de maneira implícita ou explícita em cada tendência política correta, por si só define a qualidade da obra. Por essa razão, a tendência política correta de uma obra abrange sua qualidade literária – porque ela abrange sua tendência literária.”

Walter Benjamin, “O autor como produtor”, em: Ensaios sobre Brecht (trad. Claudia Abeling, Boitempo, 2017, p. 86)

A propósito, pode-se dizer, sem muito medo de errar, que esse ensaio – “O autor como produtor” (Der Autor als Produzent) – concentra as principais teses que vão atravessar todos os outros contidos na coletânea e que ele representa um marco para todos aqueles interessados no processo de tomada de consciência de classe por parte do proletariado como um todo e dos trabalhadores da cultura (artistas, escritores, professores, jornalistas, cientistas etc.) em particular. No entanto, não se deve perder de vista que as próprias circunstâncias desse texto são enormemente eloquentes, sobretudo uma vez que estamos diante de algo escrito em 1934, ou seja, uma formulação construída já sob uma experiência de exílio imposta pelo assalto ao poder pelo bando nazista e a subsequente instalação do regime de perseguição, encarceramento, tortura e assassinato de trabalhadores socialistas e de outros bodes expiatórios para o colapso da economia capitalista alemã. Mais ainda: Benjamin confeccionou esse escrito como uma palestra para outros escritores engajados na luta contra a barbárie fascista; dado que já faz esse ensaio transitar de uma mera especulação teórica para a posição de uma intervenção militante, principalmente porque tem como objetivo primordial contribuir para a organização daquela e de outras lutas contra a opressão e a exploração.

Benjamin parte da falsidade dos pressupostos de um debate persistente e apenas compreensíveis dentro das circunstâncias da modernidade burguesa (aquele entre engajamento e autonomia – esta, por sua vez, convenientemente confundida com liberdade e dissociada da sua real condição de subordinação à “mão invisível do mercado”), que tem como principais porta-vozes os mais variados tipos de individualismo liberal. De fato, essa intervenção, a um só tempo teórica e política, não pode ser totalmente compreendida, como já pontuado mais acima, sem a motivação de combate permanente à contrarrevolução fascista, que se alastrava por toda a Europa, posto que esse fato por si só tornava ideias ligadas a uma suposta autonomia do fazer cultural pura ingenuidade, para dizer o mínimo. Nesse sentido, a realidade histórica não apenas tinha revogado objetiva, ainda que temporariamente, o delírio liberalizante, como também tinha ajudado aqueles trabalhadores a avançar na compreensão de que o engajamento por si só não bastava. Por sinal, o ensaio tem uma epígrafe de Ramon Fernandez, escritor francês de origem mexicana, que traduz bem o sentido do que estava em jogo: “É preciso trazer os intelectuais para o lado da classe trabalhadora, ao fazê-los tomar consciência da identidade de suas incursões espirituais e de sua condição de produtores” (Ibid., p. 85).

Isso equivale a dizer que estimular certo voluntarismo, culpa ou empatia moralistas naqueles que trabalham com as ideias não era algo suficiente. Em vez disso, a ambição deveria estar na explicitação da derrota do terror fascista e a correspondente vitória do conjunto dos trabalhadores na construção do socialismo como as condições de possibilidade objetivas do próprio trabalho intelectual, já que somente a transformação de consumidores em produtores poderia garantir a continuação e a expansão da relevância social da cultura no seu sentido mais amplo. Afinal, apenas a um número deveras restrito de trabalhadores poderia interessar o processo de crescente privatização da propriedade dos meios de produção e circulação culturais (teatros, editoras, jornais, escolas, revistas, museus, universidades, estúdios, laboratórios etc.), especialmente porque a alienação de uma enorme massa de consumidores de cultura das novas ferramentas de trabalho só poderia significar uma correspondente redução quantitativa e qualitativa das forças produtivas intelectuais e até a sua extinção virtual. Dito em outros termos, o monopólio aprofundava a separação entre produtores e consumidores à medida que dinamitava as condições daqueles e ampliava estes quantitativamente.

Isso é mais ou menos o mesmo que afirmar que as “relações sociais são condicionadas por relações de produção” (Ibid., p. 86-87) e é precisamente tarefa da crítica materialista – que procura de todas as maneiras possíveis expor como no processo produtivo o trabalhador não é um mero agente econômico como qualquer outro, mas, o centro e o produtor do trabalho humano – se debruçar sobre as relações de produção de um determinado lugar e momento sócio-históricos:

“Em vez de perguntar: “Como a obra se situa adiante das relações de produção da época?”; “Ela está de acordo com essas relações, é reacionária, ou aspira sua transformação?”; “É revolucionária?”. Em vez dessas perguntas, ou pelo menos antes delas, sugiro outra. Antes de perguntar como uma criação poética se situa diante das relações de produção da época, eu gostaria de questionar como ela se situa dentro delas. Essa pergunta mira diretamente na função da obra dentro das relações de produção literária de uma época. Em outras palavras, ela mira diretamente na técnica literária das obras.”

Walter Benjamin, “O autor como produtor”, em: Ensaios sobre Brecht (trad. Claudia Abeling, Boitempo, 2017, p. 87.

Independentemente do que um determinado resultado do trabalho da consciência humana diga a respeito das relações sociais de produção realmente existentes, o que é verdadeiramente vital é como ele se comporta dentro delas, pois “uma obra pode estar de acordo com elas, submeter-se criticando, submeter-se endossando e até mesmo fazendo apologia: nestas hipóteses ela é regressiva” (COSTA, 2008, p. 92). Entretanto, se esse produto do trabalho intelectual humano tem a intenção de revolucionar as relações sociais de produção dentro das quais se situa, ele vai articular tendência política e qualidade literária por meio de uma técnica que sugira um desenvolvimento progressista e não regressivo: “o que se deseja não é a renovação espiritual, como proclamam os fascistas, mas são sugeridas inovações técnicas” (BENJAMIN, 2017, p. 92). O desenvolvimento, conhecimento e controle da técnica por parte do trabalhador está na base da dispersão da superstição que pode emergir entre ele e as suas circunstâncias, daí a modernização espiritual fascista redundar, na verdade, na tentativa de uma nova remitização da vida, ao passo que a coletivização dos meios técnicos significa a possibilidade da abertura de um caminho para a emancipação humana.

O primeiro exemplo que Benjamin nos dá, nesse sentido, é o de Serguei Tretiakov no âmbito da “Frente de Esquerda das Artes” (LEF), a qual foi formada logo após a vitória dos bolcheviques na Guerra Civil Russa e que depois desempenharia um papel digno de nota na luta pela coletivização da agricultura já no final dos anos 1920. Grosso modo, Tretiakov sugeria uma diferenciação entre “autor informante” e “autor operativo”; o primeiro estaria preocupado quase que exclusivamente com a construção das melhores maneiras de se relatar os eventos de um ponto de vista supostamente objetivo e o segundo submeteria as pesquisas de linguagem ao imperativo de contribuir para que os eventos acontecessem, extrapolando, desse jeito, os limites do gênero do mero relato pretensamente imparcial. Além disso, Tretiakov sugeria que o desenvolvimento desordenado da imprensa burguesa – perda de profundidade e de abrangência combinada com a assimilação veloz de leitores – poderia muito bem ser visto de maneira dialética pelo autor operativo, pois tal processo ensejaria uma crescente indiferenciação entre autor e público, que seria do maior interesse, caso fosse acompanhada de uma tomada de consciência por parte dos trabalhadores escritores e leitores a respeito da condição de produtores deles mesmos. Vale lembrar, só de passagem, que o trabalho de Tretiakov estava em sintonia com a linha aprovada no Congresso do Partido de 1927 – “trava-se de ganhar os camponeses para a causa da coletivização” –, no entanto, “este processo foi atropelado por uma deliberação do Comitê Central em novembro de 1928, depois ratificada por uma Conferência do Partido, de abril de 1929, quando foi adotado o programa da ‘coletivização forçada’, do qual Tretiakov não participou por divergir do método brutalista” (COSTA, 2008, p. 93).

É de grande importância ter bastante claro que o que está em jogo nesse ensaio é nada menos do que instigar o trabalhador a tomar consciência da sua condição de produtor e isso implica não deixar que o aparelho e as ferramentas de trabalho se apoderem dele, mas exatamente o oposto. Tal coisa só se torna possível a partir do instante em que o trabalhador não mais busca “abastecer o aparelho de produção sem simultaneamente, na medida do possível, o modificar no sentido do socialismo” (BENJAMIN, 2017, p. 91). Do contrário, abastecer um aparelho de produção sem ter como horizonte a sua modificação se traduziria no aprisionamento da inteligência humana e no cultivo da ilusão no seio dos trabalhadores de que eles “estão de posse de um aparelho que, na realidade, os possui, defendem um aparelho sobre o qual não têm mais controle” (Ibid., p. 96) e que, mais cedo ou mais tarde, se voltará contra eles mesmos. Diga-se entre parênteses, que todo esse debate ganha uma relevância extraordinária quando pensamos no uso quase inconsciente da Internet, dos serviços de streaming e das redes ditas sociais por parte de organizações de esquerda – até que ponto a simplificação grosseira para multiplicar compartilhamentos não é precisamente esse sucumbir ao aparelho sob o disfarce de um ganho de influência, que é, no limite, somente virtual ou irreal?

Foi provavelmente tendo isso em vista que Benjamin, de maneira semelhante, nos forneceu ilustrações do que não fazer: mercadejar com a miséria, usando a marca de obra social, engajada ou política. Com efeito, “o aparelho burguês de produção e publicação assimila impressionantes quantidades de temas revolucionários e até consegue propagá-los sem questionar seriamente sua própria existência ou a existência da classe que o detém” (Ibid., p. 92). Aqui, qualquer paralelo com o verdadeiro frisson que alguns filmes – supostamente críticos e totalmente enquadrados no circuito da indústria cultural – têm causado em certo progressismo bastante difuso, não é mera coincidência.

Voltando ao argumento de Benjamin: esse é o caso dos “procedimentos de certa fotografia que está em moda, a de transformar a miséria num objeto de consumo”, cinicamente transformando “a luta contra miséria num objeto de consumo”, “em objetos de distração, do lazer” e em “um objeto do prazer contemplativo” (Ibid., p. 94). No que tange à música, Benjamin retoma uma reflexão do compositor e parceiro de Brecht, Hanns Eisler, sobre como as últimas invenções técnicas da época – “o disco, o filme sonoro e as jukebox” – tinham produzido “a crise da música de concerto”, a qual também estava dentro do escopo da distração, do lazer e do prazer contemplativo. Ele explica que essas novas formas de distribuição permitiram a reprodução e a comercialização de “execuções musicais notáveis como mercadorias em latas de conserva” e que essa “crise da música de concerto é a crise de uma forma de produção superada, ultrapassada pelas novas invenções técnicas” (Ibid., p. 93). Tanto para Eisler quanto para Benjamin,

“a tarefa consistia, então numa mudança de função da forma dos concertos, que deveria preencher dois requisitos: primeiro, eliminar a oposição entre executores e ouvintes; segundo, entre técnica e conteúdo. Eisler faz a seguinte observação esclarecedora: “Devemos atentar para não supervalorizar a música orquestral e considera-la a única arte elevada. A música sem palavras alcançou sua grande importância e expansão total apenas no capitalismo”. Ou seja, a tarefa de modificar o concerto não é possível sem a ação conjunta da palavra. Nas palavras de Eisler, essa colaboração é a única maneira de transformar um concerto num encontro político.”

Walter Benjamin, “O autor como produtor”, em: Ensaios sobre Brecht (trad. Claudia Abeling, Boitempo, 2017, p. 93-4).

Dessa perspectiva, “apenas a literarização de todas as relações da vida” poderia bater de frente com a tendência da obra ser um mero objeto de consumo para fruição esteticista e intelectualmente desinteressada. Daí a aliança com a palavra, tanto para o fotógrafo quanto para o músico, ser de grande valor não apenas para se apoderar do produto do seu próprio trabalho, mas também para organizar as relações de produção de maneira a formar novos produtores com consciência e conhecimento de causa, conscientemente interferindo e pautando a recepção da própria obra. De fato, a história da literatura nos mostra que toda a produção cultural é, em maior ou menor grau, um exercício de retórica e o autor pode somente optar por fazer isso bem ou mal, tendo em vista que não podemos evitar esse dado básico da atividade de externalização de algo aparentemente privado para a esfera pública (BOOTH, 1983, p. 149).

Nesse sentido, o autor, que não somente reflete as relações de produção, mas que também, e sobretudo, conscientemente se posiciona dentro delas, não está interessado meramente no produto do seu trabalho; ele está ainda mais atento aos meios de produção que ele e outros dispõem no intuito de, ao mesmo tempo, produzir uma obra e incidir na organização das relações de produção como um todo. Trocando em miúdos, o trabalhador com consciência da sua condição de produtor gera produtos e através deles organiza outros produtores, pois sua obra não se restringe à propaganda, ela tem uma “função organizadora” crucial. Vejamos como Benjamin monta a questão:

“Esperar uma renovação no sentido dessas personalidades, obras assim, é um privilégio do fascismo, que cria formulações tão toscas como aquela com que Günter Gründel encerra sua rubrica literária em Sendung der jungen Generation [Missão da jovem geração]: “Não poderíamos fechar melhor esse panorama senão atentando para o fato de que o Wilhelm Meister ou o Verde Henrique de nossa geração até hoje não foram escritos”. Nada está mais distante do que aguardar ou desejar tais obras do autor que refletiu sobre as condições atuais de produção. Seu trabalho não envolverá apenas os produtos, mas sempre, simultaneamente, os meios de produção. Em outras palavras, ao lado do caráter de obra, seus produtos devem ter uma função organizadora. E de modo nenhum sua utilização organizativa pode limitar-se à propagandística. Só a tendência não garante nada. O excelente Lichtenberg afirmou: não importa a opinião da pessoa, e sim que tipo de pessoa essa opinião faz dela. Claro que a opinião tem muita importância, mas mesmo a melhor delas não serve de nada se não tornar útil aqueles que as têm. A melhor tendência é errada se não mostra a atitude com a qual temos de segui-la. e o escritor só pode apresentar essa atitude quando faz alguma coisa: ou seja, quando escreve. A tendência é a condição necessária, nunca suficiente, de uma função organizativa das obras. Essa exige ainda o comportamento diretivo, instrutivo, daquele que escreve. Um autor que não ensina nada aos que escrevem não ensina nada a ninguém. Dessa maneira, o caráter de modelo da produção é decisivo: primeiro, deve-se orientar os outros produtores na produção e, em segundo lugar, disponibilizar-lhes um aparelho melhorado. E esse aparelho é tanto melhor quando mais consumidores levar de volta à produção; ou seja, quanto mais for capaz de transformar leitores ou espectadores em colaboradores. Já dispomos de um modelo desse tipo, mas ao qual aqui só posso fazer alusões. Trata-se do teatro épico de Brecht.”

Walter Benjamin, “O autor como produtor”, em: Ensaios sobre Brecht (trad. Claudia Abeling, Boitempo, 2017, p. 95)

Como observamos logo acima, Benjamin desvela a concepção conservadora daqueles que esperam dos produtores do presente os resultados do passado – e que, por isso mesmo, sucumbem, ora mais ora menos conscientemente, a um fluxo trágico resignado dominante na modernidade irreversível da máquina. Isto é, tal perspectiva se resigna diante da situação hegemônica do mundo tal como ele aparece e termina por naturalizar o estado de inconsciência dos produtores em relação aos meios de produção de tal maneira que se espera, na melhor das hipóteses, que eles façam pouca coisa além de reproduzir os grandes feitos do passado sem verificar a possibilidade dos trabalhadores se apropriarem e modificarem inesperadamente as ferramentas e as relações de produção recebidas e impostas. De modo semelhante que o fascismo pode ser compreendido como uma formação política, cujo objetivo é congelar uma série de relações de produção e de propriedade, que já se tornaram insustentáveis, esse conservadorismo cultural concebe o trabalhador não como o real produtor do mundo que o cerca, mas, em vez disso, como uma “máquina cega” incapaz de se tornar consciente da sua condição de produtor real.

Bertolt Brecht e Walter Benjamin em Svendborg, Dinamarca, 1934. Foto de autoria desconhecida.

Contra isso, Benjamin então enfatiza “a função organizativa das obras” dos autores, ou trabalhadores, que refletiram sobre as condições atuais de produção, já que, assim, eles podem formar e orientar outros produtores na produção e, consequentemente, contribuir para o aprimoramento, ou desenvolvimento, das forças produtivas como um todo. Daí o teatro épico de Brecht vir para o primeiro plano, pois ele vai contra a função que a arte assumiu na era burguesa – a de servir à autocompreensão do indivíduo, ou de não ter função, e de dotar o sujeito burguês estilhaçado pela massificação da forma mercadoria com uma sensação temporária de singularidade subjetiva – e afirma uma função pedagógica da obra que não se encerra em si (BÜRGER, 2008, p. 92-104). A recusa da centralidade da ação individual do sujeito autoconsciente em nome do estabelecimento da narrativização em cena de processos mais amplos é uma característica fundamental que se choca com o horizonte emancipatório burguês. Em outras palavras, o teatro épico, ao incorporar materiais, técnicas e procedimentos de outras linguagens artísticas e das circunstâncias da sua realização, busca implodir a obra de arte orgânica para lhe atribuir a função de “transformar leitores ou espectadores em colaboradores”; ele rejeita a fruição esteticista e subjetivista e adere ao entendimento por meio do intelecto e da tomada de posição através da interrupção do contexto na qual a obra está inserida e do “estranhamento duradouro em relação às condições” (Ibid., p. 96-97) nas quais o trabalhador, que ainda não se reconhece como produtor, vive. A obra, ou melhor dizendo, o processo artístico não é um fim em si mesmo e aponta para a totalidade real que existe também para além de si mesmo.

O teatro épico de Brecht e as lutas de classe modernas

Anatol Rosenfeld nos recorda que, uma das razões para a teoria dos gêneros ser de grande importância, reside no fato de “a maneira pela qual é comunicado o mundo imaginário pressupõe certa atitude em face deste mundo”. Ou seja, a consciência, ou o “segundo-Eu do autor”, que seleciona e organiza os materiais que farão ou não parte de uma obra, bem como a adoção ou não de certas ênfases estilísticas, manifesta “tipos diversos de imaginação e de atitudes em face do mundo”, que, até então, se encontravam latentes; isto é, restritos a um imaginário coletivo que poderia muito bem ser visualizado de outra maneira, mas não o foi, justamente porque ainda não havia adquirido, talvez, uma forma socialmente inteligível em uma obra individual (2006, p. 17). O trabalho de estruturação das obras, portanto, não é mera aleatoriedade ou jogo de palavras, mas o processo de tornar certos conteúdos acessíveis a outrem e é exatamente o arranjo específico desses materiais que nos permite ver uma dada posição diante deles e do mundo do qual foram coletados.

Foi mais ou menos levando isso em conta que o teatro épico trouxe, desde o seu nome, ao menos duas coordenadas: a justaposição entre, de um lado, teatro – normalmente restrito às artes do espetáculo e à Dramática – e, de outro lado, épico – comumente associado à literatura narrativa –, isto é, certa insistência nos traços estilísticos da Épica. A inserção de elementos épicos, ou narrativos, em uma linguagem artística que teria como sinônimo de qualidade, naquele momento, a busca de certa pureza dramática – principalmente a partir da convenção paulatinamente estabelecida como o modo correto de se fazer teatro, isso desde pelo menos o Denis Diderot do Discurso sobre a poesia dramática (1758) – vai de encontro à visão privatista de mundo do drama burguês: “A fortuna, o nascimento, a educação, os deveres dos pais para com os filhos e dos filhos para com os pais, o matrimônio, o celibato, tudo o que se refere à condição de um pai de família é transmitido pelo diálogo” (2005, p. 41). Esse drama burguês, por sua vez, não se restringiria à centralidade do texto dramático e do diálogo interindividual, mas também estruturaria o ponto de vista da perenidade da dominação do mercado e da propriedade privada (trazido preferencialmente pelo posicionamento das relações familiares e pelas conexões destas com os negócios), cujo centro orbitaria ao redor dos dilemas da identidade individual, do gosto baseado em um modelo de profundidade psicológica e das relações interpessoais do sujeito acossado por uma esfera pública crescentemente politizada e secularizada:

“[O estreitamento] da imaginação do palco – antes aberto aos amplos espaços públicos e gestos coletivos – nas dimensões da família burguesa patriarcal, concebida como o lugar da felicidade possível (o que duraria até a época naturalista da crise do drama, quando o paraíso da intimidade do lar torna-se o inferno)”

Sérgio de Carvalho, “Apresentação”, em: Teoria do drama burguês [século XVIII] (trad. Luiz Sérgio Repa, Cosac & Naify, 2004, p. 9-15).

Em outras palavras, o signo das lutas de classe modernas atravessa a teoria e a prática do teatro épico de ponta a ponta, entre outras razões, devido à compreensão de que os valores e significados burgueses eram sistemática e metodicamente recolocados através da produção cultural daquela classe dominante, o que equivale a dizer que o drama burguês transformado no jeito correto de se fazer todas as artes do espetáculo era, e de certos modos continua sendo, uma ferramenta inestimável no processo mais amplo de reprodução e acumulação do capital. Isso pode ser dito porque se trata de um procedimento de formatação da subjetividade necessária ao processo de sujeição social ao regime de reprodução e acumulação do capital em larga escala; afinal, o cultivo da miopia que envolve a separação entre produção cultural e economia política serve de anteparo à inconsciência em relação às categorias mais abrangentes do nosso modo de vida e pavimenta o caminho para as falsas alternativas programáticas e giros em falso organizativos manufaturados pela administração social capitalista.

Por fim, este texto terá cumprido sua função, que não poderia ser mais modesta, caso não tenha ficado restrito à divulgação de um trabalho tão relevante para os que dedicam boa parte da vida à luta contra o capitalismo e pelo socialismo. Ele terá cumprido sua função se, além de ter corroborado para a circulação de ideias tão mal compreendidas e não raramente difamadas, tenha despertado em cada leitor algum grau de suspeita a respeito do automatismo das próprias relações de produção em que se encontram.


[Leia também “Veneno puro!“, texto escrito por Iná Camargo Costa para a orelha do livro Ensaios sobre Brecht.]


Referências

BENJAMIN, W. “O autor como produtor”. Em: Ensaios sobre Brecht. Trad. Claudia Abeling. São Paulo, Boitempo, 2017, p. 85-99.
______. “O que é o teatro épico?” (segunda versão). In: Ensaios sobre Brecht. Trad. Claudia Abeling. Boitempo, São Paulo, 2017.
BOOTH, W. The rhetoric of fiction. Chicago and London, The University of Chicago Press, 1983.
BÜRGER, P. Teoria da vanguarda. Trad. José Pedro Antunes. São Paulo, 2008.
CANDIDO, Antonio. “Crítica e sociologia”. In: Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2006, p. 13-26.
CARVALHO, S. Apresentação. In: Teoria do drama burguês [século XVIII]. Trad. Luiz Sérgio Repa. São Paulo, Cosac & Naify, 2004, p. 9-15.
COSTA, I. C. Palestra sobre o ensaio “O autor como produtor”. In: CEVASCO, M. E.; SOARES, M. (Orgs.). Crítica cultural materialista. São Paulo, Humanitas, 2008, p. 91-121.
DIDEROT, D. Discurso sobre a poesia dramática. Trad. Franklin de Mattos. São Paulo, Cosac & Naify, 2005.
EAGLETON, T. “The author as producer”. In: Marxism and literary criticism. New York, Routledge classics, 2002, p. 55-70. (1976)
ROSENFELD, A. “A teoria dos gêneros”. In: O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 15-36.
WILLET, J. “Two political excursions. a. Brecht, Stalin and Hannah Arendt”. In: Brecht in context. London, Methuen, 1998, p. 227-232.
WIZISLA, E. Walter Benjamin and Bertolt Brecht: the story of a friendship. Trans. Christine Shuttleworth. New Haven and London, Yale University Press, 2009.

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Lindberg Campos tem formação em letras e filosofia, e normalmente ministra cursos e escreve sobre cultura brasileira, marxismo cultural, Virginia Woolf e Bertolt Brecht. Dele, leia também, no Blog da Boitempo, “A face trágica do capitalismo: guerra e vírus, destino e liberdade“, no dossiê sobre Coronavírus e sociedade.

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