O meteoro

O pequeno livro de Žižek sobre a pandemia revela como o projeto de atualizar a ideia do comunismo não pode prescindir de um confronto com as contingências irracionais (os “meteoros”) que emergem a cada nova crise da sociedade capitalista — contingências essas que abrem, certamente, novos potenciais solidários, mas também colocam, como hoje, novos perigos.

Imagem feita a partir da ilustração criada por Flávia Bonfim e Maguma para a capa do livro Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo (Boitempo, 2020), de Slavoj Žižek.

Por Arthur Bueno.

“Fomos atingidos por um meteoro”, disse o ministro Paulo Guedes há dois meses, quando as consequências da pandemia não podiam mais ser ignoradas ou reduzidas às de uma “gripezinha”. A imagem da catástrofe natural para descrever choques econômicos não é nova. Pelo contrário, ela retorna a cada crise do capitalismo, como se apenas por meio de um desvio metafórico, de uma exterioridade projetada, fosse possível descrever o caráter imprevisto desse evento sem abalar a confiança na racionalidade dos modelos econômicos que o geraram. Nova, entretanto, é a circunstância de que a crise tem, agora, toda a aparência de natural. Ela pareceria dispensar qualquer metáfora – a ameaça de um vírus mortal que paralisa países inteiros já não é suficientemente espantosa? E no entanto, pode haver, sim, algo de premente naquele esforço metafórico adicional por parte do ministro: a referência ao meteoro torna o evento ainda mais distante, ainda mais externo a nós, ainda menos submetido às leis “naturais” da nossa economia, que podem, portanto, permanecer como estão. Ela permite que a ameaça seja reconhecida e apaziguada, ao menos até o próximo abalo.

Reações desse tipo, aparentemente banais mas de grandes implicações, ocupam um lugar central em Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo, obra mais recente de Slavoj Žižek. Escrito em velocidade análoga à do desenrolar da pandemia, o livro é motivado pela preocupação de discernir, em meio à crise sanitária, tendências capazes de conduzir-nos não de volta à normalidade pré-vírus – ela mesma mostrando, há anos, sinais de esgotamento – mas para além dela. A reinvenção do comunismo proposta por Žižek contrasta, a esse respeito, tanto com as tentativas de retornar o mais rápido possível ao business as usual quanto com análises, como aquelas publicadas recentemente por Giorgio Agamben, que viram nas medidas governamentais contra a covid-19 a concretização acabada de um novo e mais radical estado de exceção. Na crítica a essas e outras posições reside, com efeito, uma das principais virtudes desse livro: movido pelo esforço em encontrar saídas emancipatórias para a crise, ele acaba por fornecer um cartograma das perspectivas políticas atualmente em disputa e de suas respectivas insuficiências e perigos.

Em uma passagem do segundo capítulo, Žižek compara a nossa situação àquela narrada por H. G. Wells em A guerra dos mundos. Ao passo que na novela marcianos conquistam a Terra mas são mortos por “humildes” patógenos aos quais não tinham imunidade, na situação atual nós é que seríamos os marcianos: parasitas que exploram e destroem a vida no planeta e, no entanto, acabam ameaçados por “vírus estúpidos que só se multiplicam cegamente e sofrem mutações”. (p. 30-1) Se Žižek menciona essa visão não é, entretanto, para advogá-la. Pelo contrário: seu objetivo é recusar qualquer narrativa redentora segundo a qual o vírus teria vindo para punir a humanidade pela exploração impiedosa de outras formas de vida. “Devemos resistir à tentação de tratar a epidemia em curso como algo dotado de um significado mais profundo”, escreve o autor. Ela é resultado “de uma contingência natural, […] simplesmente algo que aconteceu” (p. 32). Sob este aspecto, a experiência contemporânea parece instanciar de maneira radical a crise tal como definida por György Lukács em História e consciência de classe: a saber, como um momento no qual a coerência racional da ordem capitalista é perturbada pelo surgimento repentino de uma contingência concreta, material, que não pode ser administrada racionalmente pelo sistema e, portanto, revela a contingência do próprio sistema. As “leis naturais” da sociedade capitalista se mostram, então, nas palavras de Engels retomadas por Lukács, como as “leis do acaso” (HCC, p. 101).

Tanto para Žižek quanto para Lukács, há algo de crucial nesse confronto com a contingência da natureza, que é também a contingência da nossa natureza. Para ambos é preciso encarar a crise de frente, com seus perigos e seus potenciais, se quisermos encontrar uma saída para os impasses que ela coloca. Por isso, afirma o filósofo esloveno, devemos evitar buscar conforto masoquista na ideia de que nós, como os marcianos, estamos sendo punidos por algo que fizemos. Daí também ser necessário evitar a atitude – apenas aparentemente oposta – de encontrar prazer sádico na noção de que a pandemia, com todo o sofrimento que ela provoca, ajudará automaticamente a “nossa causa”. Em ambos os casos, assumimos uma posição de passividade na medida em que encaramos a contingência que interrompeu bruscamente o curso das nossas vidas como se ela fosse uma necessidade. A crise da covid-19, diz Žižek, torna urgente precisamente o contrário: teríamos de nos reconciliar com o fato de que “há uma subcamada de vida – a vida pré-sexual, estupidamente repetitiva, morta-viva dos vírus – que sempre esteve aqui e que sempre estará entre nós como uma sombra escura, representando uma ameaça a nossa própria sobrevivência, sendo capaz de irromper quando menos esperarmos” (p. 39).

O confronto com essa subcamada da vida envolve, no entanto, um risco de outro tipo: o de que, reconhecendo a contingência da ameaça existencial que ela representa, venhamos a encarar nossas próprias vidas como contingentes e desprovidas de sentido. A pandemia viral assume nesse caso a forma de um Outro todo-poderoso, indefinido, em relação ao qual nos sentimos ansiosos e indefesos, “como uma fantasia espectral invisível e, por isso mesmo, muito mais poderosa” (p. 108). Esse Outro cujos desígnios mal podemos compreender nos incita a tomar novas precauções, a nos recolhermos em nossas casas, a evitarmos o contato uns com os outros. O isolamento imposto pelo vírus afeta assim mesmo aqueles a quem, como Žižek, agrada permanecer em casa. Mesmo aí, a nova condição não gera alívio, mas angústia. Faz diferença que num caso o isolamento seja fruto de uma escolha (como um café que se pede “sem leite”), ao passo que no outro não resta senão um mero fato a ser aceito (“o café puro do isolamento”), sem qualquer negação implícita (p. 108). Em lugar de aparecer como a totalidade substancial de um “significado mais profundo” que nos conduz à passividade, seja masoquista ou sádica, o vírus assume aqui o aspecto de uma totalidade indeterminada, de um Real imperscrutável e por isso particularmente ameaçador. O que se tem neste caso não é o “tempo morto” como uma oportunidade para se pensar a respeito do sentido (ou da falta de sentido) da situação em que nos encontramos, isto é, como uma condição para “a revitalização de nossa experiência de vida” (p. 22). Trata-se, antes, de um puro tempo vazio: uma liberação sem conteúdo, uma indeterminação que angustia e paralisa.

“Deparar-se com a contingência radical do vírus pode levar à inatividade. Porém, ao revelar a abertura radical do futuro, a pandemia é também um convite à ação: ela demanda que confiramos forma e sentido a um mundo que se revelou mais contingente do que imaginávamos.”

Deparar-se com a contingência do vírus pode, desse modo, levar à inatividade. Porém, ao revelar a abertura radical do futuro, a pandemia é também um convite à ação: ela demanda que confiramos forma e sentido a um mundo que se revelou mais contingente do que imaginávamos. Uma das reações que vimos então ocorrer é a do pânico. Com toda a sua exasperação, sua lógica intensificadora e recursiva (“sei bem que há papel higiênico suficiente e que o boato é falso, mas e se algumas pessoas levarem o boato a sério e, em pânico, começarem a comprar reservas excessivas de papel higiênico, provocando assim uma verdadeira escassez do produto?”), o pânico, contudo, trivializa a pandemia (p. 54). A atividade compulsiva encobre nossa inatividade passada: podíamos ter agido antes a respeito do problema, mas não o fizemos. Limitamo-nos a lidar com ele por meio de cenários apocalípticos projetados em filmes como Contágio (2011) e em outras formas de fantasia. Mas o pânico nos conforta, sobretudo, em relação ao sentimento de impotência e à ausência de ação efetiva no presente: a ideia de que ter papel higiênico suficiente seria importante em meio a uma pandemia mortal, embora obviamente ridícula, ao menos nos dá a ilusão de estar fazendo algo a respeito.

O exemplo do consumidor de papel higiênico é anedótico, mas ajuda a iluminar um outro tipo de atividade exasperada, de implicações mais amplas: a urgência a retornar o mais rápido possível à vida anterior e, sobretudo, ao curso regular das atividades econômicas. Žižek vê a esse respeito um “retorno triunfal do animismo capitalista, em que se tratam fenômenos sociais, tais como os mercados ou o capital financeiro, enquanto entidades vivas” (p. 46). O que importa não são os milhares que morreram ou que virão a morrer, mas sobretudo aplacar o “nervosismo” dos mercados. Mais preciso seria, talvez, descrever esse fenômeno em outros termos: o que caracteriza o fetichismo capitalista não é bem que coisas sem vida sejam tratadas como vivas, mas antes que o mundo pareça constituído por entidades a um tempo naturais e eternas, “físicas metafísicas”, como diz Marx, abstraídas dos processos vitais concretos que as sustentam e que são por elas engendrados. A afirmação de Bolsonaro de que “economia é vida” pode ser lida exatamente nessa chave. Não se tratava então de reconhecer os frágeis fundamentos vivos do sistema econômico, mas, pelo contrário, de forçar a continuação da única vida que valeria a pena ser mantida: a vida abstrata da economia. Neste caso, como na luta pelo papel higiênico, o pânico equivale a uma forma de pseudo-atividade: age-se compulsivamente para encobrir a própria impotência, segue-se a todo custo a vida “de sempre” para evitar o reconhecimento do caráter contemplativo das próprias ações.

Para Žižek, a figura ausente em todos esses exemplos é aquela de uma prática realmente transformadora, constituída por ações que confrontem a contingência do vírus reconhecendo suas ameaças sem, contudo, sucumbir a elas ou denegá-las fetichisticamente. “Nossa situação é […] profundamente política: estamos diante de escolhas radicais” (p. 100). A pandemia teria demonstrado a esse respeito a necessidade de um Estado forte, capaz de estabelecer medidas em grande escala “com disciplina militar”. Mais ainda, ela exigiria uma coordenação internacional eficiente, que interviesse “da mesma forma que faz em condições de guerra” (p. 58). Propostas como essas suscitam, com razão, uma série de preocupações. Estas apontam para o perigo de que, sob justificativas médicas, sejamos submetidos a um controle total de nossas vidas pelos aparatos estatais, de que à crise da pandemia se siga um permanente estado de exceção – uma forma de sociedade que, não acreditando em mais nada além da vida nua, esteja disposta a sacrificar tudo diante do perigo da doença. Como mostra Žižek, a denúncia dessa possibilidade pode, entretanto, ela mesma assumir uma forma problemática. Ela pode levar à recusa (comum tanto à alt-right como a frações da esquerda europeia no início da crise) em aceitar a realidade plena da pandemia, reduzindo-a seja a uma trama chinesa para enfraquecer Trump ou Bolsonaro, seja a um projeto de poder estatal ao qual se deve resistir pela manutenção das interações sociais e dos apertos de mão. Algo dessa ordem, ainda que nem sempre amparado por tais discursos, pode ser testemunhado nas várias formas de rejeição à quarentena levadas a cabo por parcelas da população brasileira e estimuladas pelo presidente. Reabertura dos shoppings e do comércio, recomeço dos campeonatos de futebol, idas em massa às praias: tudo se passa como se a (salutar) resistência a ser controlado pelo Estado conduzisse, precisamente em tempos nos quais a intervenção estatal se torna mais urgente, a uma negação maníaca da realidade da pandemia.

A ação contra o vírus não implicaria, em todo caso, apenas a necessidade de uma maior coordenação política. Ela também estabelece novas condições micropolíticas. A pandemia impacta nossas interações mais básicas com as outras pessoas, com os objetos a nossa volta e inclusive com nossos próprios corpos. “Não são apenas o Estado e outras instâncias que nos controlarão: devemos aprender a controlar e a disciplinar a nós mesmos”, diz Žižek (p. 46). A nova disciplina para o isolamento envolve, decerto, seus próprios riscos: ela pode levar a um “sobrevivencialismo apolítico” que “nos faz perceber os outros como uma ameaça mortal, não como camaradas de luta” (p. 98, 100). Num dos cenários projetados por Žižek, e não inteiramente inimaginável no Brasil, senhores de guerra locais passariam a controlar seus territórios em uma luta geral por sobrevivência ao estilo Mad Max. A redução à vida nua não decorreria, neste caso, de um Estado forte e totalizante, mas sim de uma desintegração social anômica.

É numa espécie de combinação desses dois riscos políticos que Žižek parece ver a ameaça provável de uma “barbárie refinada”: Estado forte para os ricos, sobrevivencialismo bárbaro para os pobres. O cenário não é de todo estranho a quem acompanha o desenrolar da crise a partir do Brasil, onde se explicita, talvez mais nitidamente do que noutras partes do mundo, que o isolamento e o cuidado médico de uns são mantidos às custas da luta diária pela sobrevivência de outros. Mas é, também, justamente no estabelecimento de uma articulação entre coordenação política forte e isolamento autodisciplinado que Žižek vê o potencial emancipatório da pandemia. A crise atual não demonstraria apenas como uma forte totalização na forma de cooperação global é do interesse da sobrevivência de todos, e não somente de poucos privilegiados. Ela também revelaria como uma particularização estrita constitui no contexto atual, como argumentou Catherine Malabou, “o único acesso à alteridade” (p. 98) – sem que isso conduza necessariamente a uma luta de todos contra todos. É por esse horizonte duplo que a reinvenção do comunismo proposta por Žižek se orienta. Hoje, passados alguns meses da escrita do livro, essa perspectiva pode soar demasiado otimista, sobretudo para o leitor brasileiro. Como quer que seja, o esforço em projetá-la no auge da crise tem o mérito de indicar a magnitude das dificuldades, dos desvios e dos bloqueios que se interpõem a qualquer projeto emancipatório no contexto atual. Na medida em que procura atualizar a ideia de comunismo, este pequeno livro revela como esse projeto não pode prescindir de um confronto com as contingências irracionais, os “meteoros” que emergem a cada nova crise da sociedade capitalista. Contingências que abrem, certamente, novos potenciais solidários, mas também colocam, como hoje, novos perigos.


Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo, de Slavoj Žižek

Uma pandemia global assola o planeta. Com a brusca mudança na rotina de bilhões de pessoas, vivemos em um momento em que o maior ato de responsabilidade é se manter distante daqueles que amamos. Em treze ensaios de escrita rápida, afiada e bem-humorada, a obra destrincha diferentes aspectos do surto provocado pelo novo coronavírus: filosóficos, psicanalíticos, políticos, sociais, econômicos, ecológicos e ideológicos.

Escrito com seu conhecido estilo irreverente e o gosto do autor por analogias da cultura pop (Tarantino, Hitchcock e H. G. Wells flertam com Marx, Hegel e Lacan nestas páginas), este livro fornece fotogramas concisos e provocativos da crise à medida que ela se alastra e engole todos nós. Para apresentar a ousada tese que atravessa os ensaios que compõem esta obra, Žižek não se furta de travar um debate direto com outros intérpretes contemporâneos da crise causada pela covid-19, como Giorgio Agamben, Byung-Chul Han, Alain Badiou e Bruno Latour, entre outros.

O autor abriu mão dos direitos autorais da obra, que serão revertidos à organização internacional Médicos Sem Fronteiras, dedicada a oferecer ajuda médica e humanitária a populações em situações de emergência em todo o planeta. Com tradução de Artur Renzo e edição de Carolina Mercês, a obra conta ainda com prefácio assinado pelo psicanalista Christian Dunker.

Pandemia Capital é uma série especial de obras curtas, objetivas e com preços acessíveis que aborda a crise atual do novo coronavírus e suas implicações na sociedade, na psicologia e na economia.

Disponível também em versão e-book nas principais lojas do ramo:


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Arthur Bueno é professor assistente no departamento de Filosofia da Universidade de Frankfurt e professor visitante no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Colabora com o Blog da Boitempo especialmente para o dossiê “Coronavírus e sociedade“.

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