O maior imperativo de nosso tempo!

A edição do livro "Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado", de Ricardo Antunes, lança um olhar lúcido e realista sobre a tragédia dos e das trabalhadoras antes, durante e depois da pandemia da covid-19.

Arte de capa do livro Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado (Boitempo, 2020), de Ricardo Antunes, feita por Maguma e Flavia Bomfim.

Por Fábio Coltro.

Cumpadi em Brasília, espaiaram
um boato muito chato
que o mundo vai se acabar

“Moda do fim do mundo”, de Tom Zé

Quando as notícias de uma “nova” doença surgiram na China, muitos não imaginavam a extensão de seus efeitos, já que surto, posteriormente convertido em pandemia, ocorre 102 anos depois da disseminação da gripe espanhola. A devastação sistemática do trabalho, do meio ambiente e das instituições políticas, no entanto, não se constituíram em novidade.

O professor Ricardo Antunes já havia alertado para essa devastação letal em inúmeras obras. Agora, apresenta-a na sua relação com os efeitos deletérios da disseminação do coronavírus. A edição do livro Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado (Boitempo, 2020) lança um olhar lúcido e realista sobre a tragédia dos e das trabalhadoras antes, durante e depois da pandemia da covid-19. A epígrafe da obra, de Marx, sintetiza os traços da devastação: “assistiu-se a verdadeiros experimenta in corpore vili [experimentos num corpo sem valor], como aqueles que os anatomistas realizam em rãs”.

Partindo da premissa da impossibilidade de o capitalismo ofertar algo que não contemple a destrutividade, Antunes ressalta a letal relação entre crise estrutural do capital, há tempos em curso, e contexto da atual emergência de saúde pública. Assim, soma-se a crise social à profunda crise política de consequências nefastas.

O autor salienta que no Brasil convivemos com a vil realidade da precarização do trabalho desde muito antes. Em 2019, 40% da classe trabalhadora encontrava-se na informalidade e mais de 5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras experimentavam as condições da chamada uberização do trabalho, proporcionada pelos aplicativos e plataformas digitais. Ainda assim, acreditavam serem privilegiados por essa nova “servidão”.

Com a chegada da pandemia, que não foi repentina e nem sem ser antes amplamente anunciada1, foi se configurando um “desenho societal ainda mais desolador”. Antunes questiona sobre o que esperar: o que esse sistema de metabolismo antissocial do capital tem a oferecer?

Aqui minhas inquietações se somam com as inquietações do autor, conciliando e dialogando com a hecatombe socioambiental em curso. Não só Antunes, mas outros grandes nomes como Istvan Mészáros, John Bellamy Foster, David Harvey, Kohei Saito e Jason W. Moore, só para citar alguns, também relacionam as preocupações sociais, trabalhistas, ambientais e identitárias numa grande crítica ao capital.

No segundo capítulo do livro, Antunes retoma a ideia proposta por Marx, que em Mészáros, especialmente em Para além do capital, encontra um rico desenvolvimento analítico: a teleologia autofágica deste sistema, sua eterna busca pelo acúmulo e expansão (em busca da produção de mais capital), resultante sempre em destruição acentuada.

No mesmo sentido, Jason W. Moore ressalta em Capitalism in the Web of Life que o acúmulo de capital é um projeto de longa duração e aponta que o metabolismo não é rompido, conforme afirma Bellamy Foster, em A ecologia de Marx, mas reconfigurado sempre para a extração ad infinitum de mais capital. Nesse processo, o capital foi reconfigurando quem era e quem não fazia “parte” da natureza (criando as abstrações sociedade versus natureza). Ao fazê-lo, foi se apropriando de quatro elementos baratos que constituem as bases de desenvolvimento do capitalismo, a saber: matéria-prima barata, energia barata, alimento barato e mão-de-obra barata. Neste ponto Moore e Antunes confluem para apontar como as estratégias do capital, principalmente com a vertente neoliberal, se apropriam do trabalho cada vez mais barato da classe trabalhadora. O que Moore chama de trabalho barato está implícito na ideia do sistema de metabolismo antissocial do capital que Antunes apresenta no segundo capítulo do seu livro.

Seguindo esta jornada, no capítulo “Pandemia Capital e o (des)valor do trabalho”, Antunes analisa os efeitos nefastos desse sistema de metabolismo antissocial do capital, principalmente nos “tristes trópicos”2. Afirma ainda que a divisão sociossexual e racial do trabalho penaliza ainda mais as mulheres negras, submetidas de forma particular à violência e ao feminicídio. Aqui Moore e Antunes também convergem suas análises, pois para Moore, a vida das mulheres, negros, indígenas foi – ao longo do processo de consolidação da dicotomia abstrata do capitalismo (sociedade versus natureza) – associada à natureza e, portanto, submetida ao domínio da sociedade (heterossexual, branca, europeia e burguesa).

A vida das e dos trabalhadores não vale muito para o capital. Essa afirmação encontra-se subjacente às análises de Antunes e Jason Moore e Raj Patel. Para os autores de A history of the world in seven cheap things, a vida dos trabalhadores é outro elemento “barato”, que o capital se utiliza para o acúmulo de mais capital. Antunes, por sua vez, nos apresenta perspectiva similar: demonstra como as discriminações de classe, gênero, etnia (a exemplo dos indígenas e refugiados) e raça, se expressam ainda mais durante a pandemia, submetendo todos e todas ao fogo cruzado.

Por um lado, o isolamento social (nem sempre favorecido por um ambiente doméstico adequado para tal) e a quarentena, ambos necessários para que se evite a contaminação pelo coronavírus. Por outro, as urgências do desemprego, informalidade, intermitência, uberização, tercerização, subutilização, ou seja, da condição imposta a aqueles e aquelas “que não têm direitos sociais e que só recebem salário somente quando executam algum trabalho”. Tudo isso no momento em que o Brasil tem mais de 50 mil mortos pela covid-19 e uma figura grotesca no comando presidencial.

As ações que poderiam assegurar a vida da classe trabalhadora brasileira são enxovalhadas pelo presidente Jair Bolsonaro e seu séquito de zumbis acéfalos, que propagam o funéreo caminho da acumulação do capital apontado por Moore – matéria-prima barata (com o lúgubre ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles); energia barata; alimentos baratos (com a aprovação recorde de agrotóxicos em seu [des]governo), e mão de obra barata (a qual nem precisamos apontar aqui, basta dizer que 50 mil trabalhadores já estão debaixo da terra e aguardando muitos outros).

Em seu quarto capítulo, “Qual será o futuro do trabalho?”, Antunes afirma ser a pandemia um enfeixamento de um sistema letal à natureza, ao trabalho e à “liberdade substantiva” de todos os gêneros, raças e etnias, em busca de sua autoemancipação humana e social.

Neste momento, Antunes e Moore também dialogam. Moore aponta que novas epistemologias e, até mesmo, uma nova linguagem é necessária para o enfrentamento do sistema. Antunes aposta em uma contrarrevolução preventiva. Ao destacar o desespero do capital mundializado, Antunes afirma que “sem trabalho não há valorização do capital”, demarcando que aí reside o traço parasitário do sistema. Sem a apropriação do trabalho não se produz. Resta ao capital depauperar o labor e apropriar-se de tudo o que restava à classe trabalhadora. Demonstrando como o EAD, o home office e outros subterfúgios cooptam a vida privada dos trabalhadores, Antunes conclui sobre o vilipêndio que chamou de escravidão digital. Conforme o autor,

“Se deixarmos o capitalismo responder à crise, sua proposta é clara: obrigar a força de trabalho a ir à labuta e assim conhecer os subterrâneos do Inferno de Dante. Em contrapartida estamos compelidos a seguir em outra direção, visto que vivenciamos um momento crucial de interrogações a humanidade. O que devemos fazer para sobreviver?”

Ricardo Antunes, Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado (Boitempo, 2020, l. 458)

Aqui, os questionamentos de Antunes são fundamentais para que possamos pensar sobre um “novo sistema metabólico verdadeiramente humano-social”, reflexão que encontramos no capítulo final, “Um imperativo vital contra um mundo letal: inventar um novo modo de vida”.

Neste momento, Antunes aponta para a necessidade de reconfigurar o nefasto sistema de metabolismo antissocial. Neste ponto, Moore, por não ter a experiência da luta nos trópicos, afasta-se levemente de Antunes: não aponta o caminho que devemos seguir, mas aponta para a necessidade de novas linguagens e metodologias. Antunes, por sua vez, aponta para a práxis extraída da própria vida cotidiana. Talvez por se situar no centro do poder hegemônico, Moore careça da força de resistência que reside na obra de Antunes.

Assento-me com Ricardo Antunes na sua perspectiva de que deixar às mãos turibularias das classes dominantes do capital é o exício do trabalhador.

O professor Ricardo Antunes declara que tão vital quanto o trabalho é a questão do meio ambiente e sua inadiável entrada nas agendas e no cotidiano de toda classe trabalhadora, por compartilhar com esta a apropriação de seu trabalho não-remunerado. Assim, o capital pandêmico não tem como continuar seu metabolismo antissocial sem intensificar a destruição da natureza através da expropriação de seu trabalho não-remunerado.

A recuperação do espírito comunal das comunidades indígenas, da resistência comum aos quilombolas, da sabedoria cabocla do sertanejo, deve ser o caminho de uma nova forma de metabolismo socioambiental que transcenda o sistema de metabolismo antissocial do capital, que destrói o trabalho (humano e extra-humano).

Talvez para buscar esse “novo” metabolismo, devamos lobrigar nossos povos tradicionais. Como afirma Davi Kopenawa,3

“(os brancos são) o povo da mercadoria. Por quererem possuir todas as mercadorias, foram tomados de um desejo desmedido. Seu pensamento se esfumaçou e foi invadido pela noite. Fechou-se para todas as outras coisas. Foi com essas palavras da mercadoria que os brancos se puseram a cortar todas as árvores, a maltratar a terra e a sujar os rios. Hoje já não resta quase nada de floresta em sua terra doente e não podem mais beber a água de seus rios. Agora querem fazer a mesma coisa em nossa terra. O valor que damos a essas coisas é maior até do que o que os brancos dão ao ouro que tanto cobiçam. Temo que sua excitação pela mercadoria não tenha fim e eles acabem enredados nela até o caos.”

A queda do céu, David Kopenawa e Bruce Albert, Cia. das Letras, 2019, p. 407.

Ficamos por fim com as palavras finais de Ricardo Antunes para nossa reflexão e ação diligente: “A pandemia do capital tornou a invenção de um novo modo de vida o imperativo maior de nosso tempo”.


Notas

1 Ver, por exemplo, o livro: WALLACE, Rob. Big farms make big flu: dispatches on influenza, agribusiness, and the nature of science. NYU Press, 201, recentemente traduzido para o português.
2 Antunes faz menção à obra de Claude Levi-Strauss, Tristes Trópicos, publicado pela Companhia das Letras em 1996.
3 Ver também Jean Tible, “Cosmologias contra o capitalismo: Karl Marx e Davi Kopenawa”. Revista de Antropologia da UFSCar, v. 5, n. 2, p. 46-55, 2013.

O Blog da Boitempo apresenta um dossiê urgente com reflexões feitas por alguns dos principais pensadores críticos contemporâneos, nacionais e internacionais, sobre as dimensões sociais, econômicas, filosóficas, culturais, ecológicas e políticas da atual pandemia do coronavírus. Confira aqui a página com atualizações diárias com análises, artigos, reflexões e vídeos sobre o tema.

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Fábio Coltro é doutor em Geografia e professor colaborador do programa de mestrado em Administração da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Colabora com o Blog da Boitempo especialmente para o dossiê “Coronavírus e sociedade“.

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