As políticas da desigualdade racial no Brasil: uma república erguida com cotas para os brancos
Nunca houve nada de propositivo na história da República brasileira visando a melhoria das condições de vida da população negra. Muito pelo contrário, o que se constata é a construção ativa de inúmeras políticas afirmativas para brancos, com cotas para imigração, trabalho, terras e crédito.
Por Leonardo Fabri.
No debate público acerca das relações étnico-raciais no Brasil, especialmente no que tange à assimetria existente entre brancos e negros na sociedade, é muito recorrente a ideia de que os quase quatro séculos de escravidão negra seriam o fator nevrálgico para o “estado da arte” da atual desigualdade racial brasileira. No entanto, essa formulação ignora as inúmeras políticas públicas postas em ação, antes e depois da abolição de 1888, responsáveis pela consolidação de nossa demografia racial e a materialidade do racismo. Sem contar a eficácia de “jogar” para um passado longínquo as causas e os proponentes dessa desigualdade, interditando ações concretas para a superação dessa realidade.
Este texto busca relacionar o debate acerca da questão racial e sua relação com as políticas públicas (migratórias, de regulação fundiária, trabalhistas e de segurança), onde a naturalização da desigualdade obedece a certos critérios e lógicas sociopolíticas, apoiando-se em marcos do pensamento científico brasileiro.
Exclusão ou inclusão precária?
Mario Theodoro (2007/2008), importante intelectual negro e economista, entende que a ideia de exclusão da população negra precisa ser repensada. Segundo ele, tal linha de raciocínio que pressupõe a dualidade “incluídos” e “excluídos”, não daria conta de entender a fundo os mecanismos de funcionamento e controle da sociedade brasileira. Dentro dessa chave de interpretação, a desigualdade racial, e consequentemente o racismo, não seria uma anomalia ou uma disfuncionalidade de um sistema defeituoso, mas sim a regra para a sua produção, manutenção e reprodução. Menos um acidente e mais um desenho institucional. Nesse caso, a população afro-brasileira não estaria excluída, mas sim incluída dentro desse sistema social numa eterna condição precária de subcidadania.
“Somos desiguais, convivemos com a desigualdade e o fazemos com um certo desleixo, em um processo de naturalização da pobreza, mesmo quando ela atinge proporções extremas e abjetas, […]. A sociedade brasileira parece operar com uma espécie de pacto com a desigualdade”. (THEODORO, 2007/2008, p.02)
Esse pacto com a desigualdade, cristalizado em nossas práticas coletivas e individuais, pode ser também encontrado em algumas iniciativas do Estado brasileiro, com destaque para a chamada Lei de Terras (Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850), que em seu primeiro artigo já declara que: “Ficam proibidas as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de compra”. Essa política também definiu penalidades para quem se apossasse indevidamente de terrenos públicos ou privados, sujeitos à expulsão, prisão de seis meses a dois anos, e multa. Na prática, a lei manteve a posse da terra exclusivamente para os grandes proprietários (brancos), alienando-as das mãos de inúmeros trabalhadores que delas tiravam o seu sustento (pretos e “mestiços” pobres).
A Lei do ventre livre (Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871), por sua vez, marca o início da desigualdade entre brancos e negros já na infância e o abandono, avalizado e promovido pelo Estado, a que estes últimos são submetidos, marcando profundamente a demografia das famílias (negras e brancas) brasileiras. Seu artigo primeiro atesta que “os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre”. E seu primeiro inciso estabelece que:
“Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indemnização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indemnização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de 30 anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.” (grifou-se)
Na prática, essa lei serviu para indenizar proprietários de escravos e criar um contingente de crianças negras desassistidas.
Já a Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885, apelidada de Lei dos Sexagenários, sancionou a liberdade dos escravizados com idade igual ou superior a sessenta anos. Essa lei é reflexo de inúmeras disputas políticas, dentro e fora do Parlamento. As pressões sociais pelo fim da escravidão e a crescente dificuldade de controlar as fugas e os diversos territórios autônomos (quilombos) foram elementos fundamentais na disputa pela abolição (processo que não pode ser confundido com um certo senso comum narrativo que enxerga na figura “benevolente” de uma princesa o principal elemento). Essa lei, no entanto, produzia poucos efeitos concretos na realidade dos negros em cativeiro. Primeiro porque os poucos homens e mulheres escravizados dessa idade já valiam muito pouco para seus proprietários, representando inclusive maiores custos de sustentação. Segundo porque as condições dos trabalhadores escravizados eram tão extenuantes que pouquíssimos sequer tinham condições de chegar em vida a essa idade. Além do mais, imagine o que significaria para um idoso negro, recém-liberto no fim do século XIX, sem nenhum tipo de reparação ou indenização pelos anos de trabalho forçado em cativeiro.]
Porém, nenhuma iniciativa em prol da desigualdade racial foi tão contundente quanto a que balizou o modo pelo qual transitamos para o regime de trabalho livre. A Lei da Abolição (conhecida como Lei Áurea ou Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888) marcou uma abolição sem proteção, com ausência de qualquer mecanismo de inclusão seguro e consistente, sem políticas voltadas para a mão-de-obra negra recém-liberta. É válido de nota que o contingente de escravizados à época da abolição representava uma parcela mais do que considerável da população: cerca de 1,5 milhão de pessoas, num âmbito de 8 milhões de trabalhadores (THEODORO, 2007/2008, p. 02). Ou seja, a soma dessas iniciativas gerou (i) a falta de proteção social para um número gigantesco de pessoas (em sua maioria negra) e (ii) a criação de um enorme contingente de mão-de-obra excedente num contexto de extrema escassez de ocupação.
Esse excedente se viu associado ao estigma do atraso, da preguiça e da violência, marcado pela discriminação e o preconceito, fruto de uma elite que afirmava que seu país estava em processo de transformação e aprimoramento racial. Sérgio Costa (2006) aponta que as ideias que sustentavam os estudos sobre raça difundidos na Europa entre o fim do século XIX e início do século XX foram muito bem adaptadas à realidade brasileira, sendo possível identificar um “campo disciplinar com lógica própria” (p. 151). Ainda segundo seu estudo, a atividade científica brasileira apresentava uma natureza muito primária no que diz respeito à sua institucionalização e à formação de cientistas (mesmo em comparação com países vizinhos). O resultado prático se dava no modo como as teorias produzidas na Europa eram recebidas e aplicadas no Brasil, fortemente influenciadas pela ânsia local em estudar os “obstáculos que separavam o país do progresso” (p.156). Na virada para o século XX, o consenso existente entre as elites intelectuais, políticas e econômicas nacionais apoiava-se na difusão de que a evolução da sociedade era o caminho para qualquer projeto de nação, embora houvesse uma disputa entre os defensores das ideias biologistas e os defensores do culturalismo nacionalista (que em poucas décadas encontraria na obra de Gilberto Freyre seu maior expoente e se tornaria hegemônico no debate público nacional até quase o fim do século XX).
“Contra um pano de fundo de profunda ansiedade pelo fato de o Brasil ter deixado de obter um tipo nacional homogêneo e receosos de que a degeneração racial ameaçasse a nação, começou a firmar-se a ideia de que a miscigenação racial do país deveria ser vista em termos positivos, em vez de negativos. Os poucos negros e índios puros remanescentes estavam desaparecendo, argumentavam os pensadores sociais, porque a seleção, tanto natural quanto social, trabalhava contra os tipos inferiores e porque as altas taxas de mortalidade e a baixa reprodução entre eles diminuíam sua participação na população.” (STEPAN, 2005, p.166).
As políticas migratórias foram estabelecidas dentro desse contexto: os imigrantes europeus eram vistos como meio próprio para aumentar rapidamente a proporção de brancos, possuidores do capital eugênico necessário para o processo de civilização nacional. Essa política deve ser vista como uma política de desenvolvimento, onde raça e racismo se relacionavam diretamente com o progresso da nação. O decreto nº 528, de 28 de junho de 1890, regulariza a política migratória no território nacional, com destaque para o impedimento da entrada de africanos e asiáticos e a livre circulação de trabalhadores europeus:
“É inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não se acharem sujeitos à ação criminal do seu país, excetuados os indígenas da Ásia, ou da África que somente mediante autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de acordo com as condições que forem então estipuladas.”
Desse modo, as políticas públicas voltadas à promoção da imigração europeia, fortemente inspiradas na ideologia do branqueamento (fruto do debate científico que deu ossatura para a eugenia nacional) são fatores primordiais para entendermos a desigualdade entre brancos e negros no Brasil. O período mais intenso de entrada de imigrantes brancos se deu entre 1888 e 1900, com aproximadamente 1,5 milhão de imigrantes – em sua maioria de origem italiana. De acordo com Mário Theodoro (2005), “o governo brasileiro subsidiou quase 80% do total dos gastos dos imigrantes que aqui chegaram nesse período”. A Lei nº 28 de 1884, aprovada pelo governo paulista, reservou vultosos recursos para atrair imigrantes europeus, bem como terras agriculturáveis de excelente qualidade para compra a prazo, com acesso a crédito barato e condições especiais de pagamento:
“Art. 1.° : O governo auxiliará os imigrantes da Europa e ilhas dos Açores e Canarias, que se estabelecerem na província de São Paulo, com as seguintes quantias, como indenização de passagem: 70$000 para os maiores de 12 anos; 35$000 para os de 7 a 12 e 17$500 para os de 3 a 7 anos de idade.
Art. 2.º: O governo dará hospedagem, por 8 dias, na hospedaria dos imigrantes da capital, a todo o imigrante que vier para a província, embora sem destino à lavoura, quer tenha desembarcado no porto de Santos, quer no do Rio de Janeiro, devendo, neste caso, trazer uma guia da inspetoria geral do terras e colonização.
Art. 3.º: O governo fica autorizado a criar até 5 núcleos coloniais ao lado das estradas de ferro e margem dos rios navegados, nas proximidades dos principais centros agrícolas da província.”
Tais escolhas políticas resultaram no fechamento de oportunidades para pretos e “mulatos”, que somados aos 300 mil escravizados recém-libertos e 1,5 milhão de negros livres (apenas no estado de São Paulo) ficaram de fora da economia formal e da proteção social. O deslocamento dos imigrantes europeus na virada do século XIX para o século XX acirrou o conflito racial não apenas no plano material como também no simbólico. A população negra passou de “força motriz da atividade produtiva” e futuro da nação para o empecilho da civilização nos trópicos, sendo seu desaparecimento um objetivo de Estado.
Em 1912, João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional calculava com base em dados do censo brasileiro que por volta de 2012 o contingente afro-brasileiro estaria reduzido a zero e os “mulatos[1]” não seriam mais que 3% do total da população, uma vez que se acreditava que os cruzamentos entre “mulatos” e brancos favoreciam um contínuo branqueamento em virtude da superioridade biológica dos brancos (STEPAN, 2005, p.166).
Em função do tipo de abolição adotada e da especificidade das leis migratórias, o fim do século XIX e início do século XX consolidou uma nova etapa para o mercado de trabalho brasileiro, com o crescimento das disparidades[2] raciais, regionais e de classe (todas interligadas). Na cidade de São Paulo, por exemplo, crescimento urbano e industrialização caminharam em conjunto, com uma taxa de empregabilidade de trabalhadores estrangeiros próxima a 92% (KOWARIC, 1994, p.92), com destaque para a comunidade italiana. As Leis estaduais paulistas nº 25 e nº 26 de 1884 marcam a perversidade dessa lógica, pois passaram a tributar os trabalhadores escravizados com a finalidade de criar um fundo público de financiamento da imigração europeia para o estado. Na prática se criou um programa estadual de ação afirmativa voltada para imigrantes brancos às custas do trabalho negro (escravizado), com direito à disposição de transporte, terras, crédito, trabalho e moradia subsidiada.
O artigo primeiro da Lei nº 25 informa que “cobrar-se-á de cada escravo existente na província e que não se aplique ao serviço da lavoura o imposto anual do 5$000, que reverterá no fundo de emancipação e será distribuído pelos municípios onde residirem os mesmos escravos”; enquanto o artigo primeiro da Lei nº 26 informa que “cobrar-se-á de cada escravo de lavoura existente na província o imposto de 3$000 por ano, sendo este imposto aplicado às despesas com o serviço de imigração”.
Se em São Paulo a imigração de italianos era predominante, o Rio de Janeiro recebeu uma população grande de imigrantes portugueses e espanhóis. Ambas cidades passam a assistir ao desenvolvimento de uma atividade comercial e industrial robusta, dando fruto a uma classe urbana (proletária e média) significativa, rodeada por um exército de reserva negro, disposto a ocupar qualquer posto para sua sobrevivência. Esse é o pontapé para a relação entre brancos e negros no mercado de trabalho e a existência maciça de funções precárias e subalternas das mais variadas atividades. Aqui se acentua o processo de aglomeração da pobreza e da “inclusão precária” da população negra na ordem social brasileira, com a proliferação de favelas e guetos, territórios definidos pelo estado de exceção permanente.
Progresso, modernidade e racismo
O regime Vargas dá forma política ao desejo de criar uma “consciência homogênea de nacionalidade com base na vida política e social” (STEPAN, p. 170). Ao fim da década de 1930, uma ideologia da fusão racial enquanto solução para o Brasil havia se tornado pensamento oficial do Estado – ideologia que apesar das profundas divisões raciais e conflitos sociais permaneceria praticamente inconteste até (quase) o final do século. Novos aparatos estatais surgiram para forjar essa consciência de brasilidade, mobilizando o patriotismo para fomentar a unidade nacional. O foco era ignorar as disparidades raciais e de classe sob a égide do “povo brasileiro”. Articulou-se, assim, um mito da identidade nacional compatível com as necessidades do novo Estado moderno. É nesse contexto que o pensamento de Gilberto Freyre se torna hegemônico, um racismo culturalista (oposto ao determinismo biológico de alguns ramos da eugenia), que enxerga de forma positiva e harmônica a interação sexual e reprodutiva entre brancos e negros (homens brancos e mulheres “mulatas”).
Nesses termos, a identidade nacional foi encorajada por um nacionalismo de cunho eliminatório, com a criação de inúmeras leis restritivas quanto ao número de estrangeiros que poderiam ter empregos em empresas nacionais e que alçou o português a idioma oficial de instrução escolar. A supressão de jornais em língua estrangeira, de bandeiras de outros países e o apagamento da identificação das colônias estabelecidas no país foi recorrente. O mesmo ocorreu com a cultura e identidade negra e indígena (esta última relegada à mitologia do romantismo brasileiro do século XIX). A partir da concepção da mistura das três raças, a única identidade nacional possível exaltada pelo Estado Novo era a do “brasileiro”. Qualquer debate profícuo sobre a diversidade racial e as desigualdades existentes era, assim, prontamente interditado por esse apagamento. Vargas sufocou inúmeras organizações populares, dentre elas a Frente Negra Brasileira[3], que desenvolveu diversas ações para a melhoria das condições de vida da população negra, com destaque para o periódico A voz da Raça (1933-1937).
Nessas circunstâncias, a imagem positiva do mestiço brasileiro foi atrelada a uma nova ideologia do trabalho e da modernização, não havendo espaço para narrativas que “dividissem” a ordem nacional. Eugenia e Estado se entrelaçaram de tal modo na década de 1930 (período em que o Brasil lidava com as consequências da depressão econômica e da crise do sistema agroexportador) que a Comissão Central Brasileira de Eugenia, criada em 1931, adquiriu protagonismo político a ponto de um de seus membros, Belisário Penna, ter sido nomeado Diretor do Departamento Nacional de Saúde (órgão pertencente ao Ministério da Educação e Saúde Pública). O controle de “grupos socialmente problemáticos”, como prostitutas, jovens delinquentes e “doentes mentais”, serviu de desculpa para a ampliação do poder do Estado Novo, com a criação do Gabinete de Identificação na capital, liderado por Leonídio Ribeiro, 1933, trabalhando “em íntima ligação com o chefe de polícia da cidade, o direitista Felinto Muller para atualizar e introduzir técnicas científicas de identificação e tratamento dos criminosos patológicos no Brasil” (STEPAN, 2005, p. 174).
No Ministério do Trabalho, Renato Kehl e Roquette-Pinto (membros ativos da Sociedade Eugênica Brasileira) integraram um comitê sobre imigração e trabalho. É válido de nota o Decreto Lei nº 7.697 de 18 de setembro de 1945, que em seu segundo artigo aponta: “Atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional”. O racismo brasileiro desse período em diante se configurou a partir da vertente da eugenia que via a hibridização racial (por meio do estoque eugênico superior de brancos) e as políticas sanitárias como caminhos para o desenvolvimento nacional:
“A comunidade imaginada do Brasil negava a realidade do racismo no país e exaltava as possibilidades de harmonia e unidades raciais. A variante da eugenia identificada com higiene pública e compatível com a miscigenação racial e o mito da democracia racial ganhou apoio; eugenias reprodutivas extremadas, ou higiene racial ao estilo nazista, não”. (STEPAN, 2005, p.177).
A mestiçagem é o elemento nevrálgico da ideia de nação e do nacionalismo brasileiro, com uma hierarquia visual branco > mulato > preto na ordem narrativa estabelecida, que também acompanhou a ordem material. Quase um século depois o cenário se mantém estático. Em pesquisa recente, intitulada “Desigualdades sociais por cor e raça no Brasil”, publicada em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, é apresentado em dados o que todos percebem pelo olhar:
- A renda média mensal do brasileiro branco, tanto os que atuam no mercado formal ou informal, é de R$ 2.796,00 Entre os pretos e pardos, é de R$ 1.608,00 De forma proporcional, o estudo aponta que para cada R$ 1.000,00 pago a uma pessoa branca, paga-se R$ 575,00 para um trabalhador negro (preto ou pardo).
- No quesito gênero e raça, os homens brancos estão no topo dos maiores rendimentos. Eduardo Cucolo, em matéria para a Folha de São Paulo mostra que para cada R$ 1.000,00 recebidos por esse grupo, são pagos R$ 758,00 para mulheres brancas, R$ 561 para homens pretos ou pardos e R$ 444,00 para mulheres pretas ou pardas. Essa diferenciação se mostra ainda na ocupação de cargos gerenciais: quase 70% das vagas para brancos e menos de 30% para pretos ou pardos.
- Outro indicador apresentado na pesquisa aponta que, mesmo representando 55% da população, os negros (pretos e pardos) equivalem a 66% dos desocupados e dos subutilizados. A taxa de desocupação também é maior entre eles (14,1%) do que entre os brancos (9,5%).
- Na relação ricos e pobres, o IBGE aponta que, de cada quatro pessoas no grupo dos 10% com menores rendimentos, três são negras (pretas e pardas) e uma é branca. Entre os 10% mais ricos, a proporção se inverte. A partir desses dados, é possível inferir que a pobreza branca é um efeito colateral de um projeto de precarização e extermínio da vida negra.
- O percentual de pretos e pardos abaixo da linha da pobreza é mais que o dobro dos brancos. O estudo aponta que dos brasileiros que recebem menos do que US$ 5,50 por dia, o percentual de brancos é de 15,4%, enquanto o de negros (pretos e pardos) é de 32,9%.
- Conforme se caminha para a extrema pobreza, a diferença se amplia ainda mais. 3,6% dos brancos vivem com menos de US$ 1,90 por dia, enquanto a proporção de pretos e pardos nessa situação é de 8,8%.
No que tange as políticas de segurança pública, o Decreto Lei 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais) aplica inúmeras contravenções ao Código Penal, passíveis de multa e prisão. É válido de destaque a especificação dos “tipos perigosos” presentes no artigo décimo quarto: “Presume-se perigosos os indivíduos – (i) condenados por motivo de contravenção cometido em estado de embriaguez pelo álcool ou substância de efeitos análogos, quando habitual a embriaguez; (ii) condenados por vadiagem ou mendicância.” Na prática, esse Decreto Lei institucionalizou a perseguição ao negro, já marcado como elemento de entrave para o progresso nacional. Com a confluência das políticas supracitadas, era mais do que esperado que negros (especialmente os homens negros) fossem considerados “vadios”, já que trabalho formal, moradia adequada e condições mínimas de dignidade lhes foram negados sistematicamente. O início do encarceramento massificado dessa população, bem como as estratégias de extermínio passam a ser experimentadas de maneira cada vez mais sofisticada, sendo uma realidade presente nos territórios de maioria negra até os dias atuais. O IBGE aponta (no mesmo estudo supracitado) que:
“[…] no Brasil, a taxa de homicídios foi 16,0 entre as pessoas brancas e 43,4 entre as pretas ou pardas a cada 100 mil habitantes em 2017. Em outras palavras, uma pessoa preta ou parda tinha 2,7 vezes mais chances de ser vítima de homicídio intencional do que uma pessoa branca. A série histórica revela ainda que, enquanto a taxa manteve-se estável na população branca entre 2012 e 2017, ela aumentou na população preta ou parda nesse mesmo período, passando de 37,2 para 43,4 homicídios por 100 mil habitantes desse grupo populacional, o que representa cerca de 255 mil mortes por homicídio registradas no Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM, do Ministério da Saúde, em seis anos.” (IBGE, 2017, p. 09).
Considerações finais
Efetivamente, nunca houve nada de propositivo na história da República brasileira visando a melhoria das condições de vida da população negra, muito pelo contrário, o que podemos constatar ao longo da história são inúmeras políticas afirmativas para brancos, com cotas para imigração, trabalho, terras e crédito. O negro, de elemento central para a economia do país, na condição de escravo e motor do modelo agroexportador nos distintos períodos (ciclo do açúcar, ciclo do ouro e ciclo do café) e até importante fator da dinâmica urbana, com grande parcela de pretos e “mulatos” livres em diversos extratos da sociedade, e nomes proeminentes da cultura brasileira (a exemplo de Machado de Assis e Lima Barreto), passou à condição de refém de inúmeras violências que selaram seu futuro numa dinâmica de desigualdade que persiste até os dias atuais. Essas violências foram instrumentalizadas a partir das inúmeras leis apresentadas (e tantas outras que não puderam entrar neste curto espaço), com destaque para a Lei de Terras e a Lei da Abolição (sem proteção ou planejamento), aliadas às políticas migratórias, de segurança pública, trabalhistas e culturais. Conforme afirma Alfredo Bosi (1992, p.144) “para o negro brasileiro, o liberalismo republicano nada tinha a oferecer”. O embranquecimento foi a principal política de interesse das elites brasileiras, responsável por abrir as portas do país para imigrantes europeus. Aos negros restou negligência, violência e genocídio..
Por fim, o mercado de trabalho brasileiro foi formado a partir da imigração branca, com foco não apenas na substituição da mão-de-obra negra, mas principalmente na assimilação de seu “estoque eugênico”, garantindo o futuro do país rumo à civilização. Criou-se as condições materiais para que se consolidasse a existência de um excedente estrutural de trabalhadores (THEODORO, 2008, p. 43), que hoje chamamos de “ralé” (SOUZA, 2009), precariado (BRAGA, 2012) ou subproletariado (SINGER, 2012). A ideologia “do Brasil do progresso e da modernização” que não abarcava o pobre, especialmente o pobre negro. O progresso brasileiro não optou por sua incorporação digna a partir da política, mas sim valeu-se da política pública para marcar a sua inclusão precária, mantendo-o estagnado e subalterno por 130 anos. É digno de nota que o brasileiro apenas tolera conviver com tamanha desigualdade e injustiça porque ela foi desenhada e endereçada aos milhares de negros e negras, resultantes da mesma visão de mundo encimada na eugenia e no branqueamento do país. Thales de Azevedo (1975), importante intelectual baiano, constatou em inúmeras pesquisas que, concomitante à discriminação contra negros (uma realidade cotidiana), a tolerância racial surge como principal elemento evocado pelos brasileiros ao definir sua identidade nacional. “A mais sensível nota do ideário moral no Brasil, cultivada com insistência e intransigência”. Como bem lembrado por Mário Theodoro (2008, p. 44): “o negro, ao perder o lugar central no mundo do trabalho, não deixou de exercer o papel social como núcleo maior dos pobres, prestadores de serviços aos quais as classes médias recorrem ostensivamente” e sem nenhum constrangimento.
Nessa lógica, as elites brasileiras viam como única redenção possível para a comunidade negra o processo de “mestiçagem” e a resignação em viver nos cenários mais abjetos da sociedade brasileira. Felizmente os milhares de homens e mulheres negras que resistiram pensaram diferente, pois sempre souberam que as (suas) vidas negras importam.
Notas
1 Importante ressaltar que o entendimento científico da mestiçagem, no período mencionado, afirmava que qualquer mistura racial entre pretos e brancos promoveria automaticamente a evolução preta (detentora do estoque genético inferior) para uma “realidade branca” (portadora do estoque eugênico favorável). Desse modo, “mulatos” seriam o próximo passo evolutivo de seus antepassados pretos, estando um passo atrás de suas contrapartes brancas. Uma “raça” de transição, necessária para a completa aniquilação de pretos e indígenas. Um “mal necessário”.
2 Esta análise reconhece a necessidade de pontuar as disparidades de gênero e as distinções na inserção de homens e mulheres no mercado de trabalho e na estrutura social (especialmente dentro das desigualdades raciais). A análise de gênero nesse período é fundamental para entender a inserção de mulheres negras (especialmente pretas) na vida doméstica das famílias brancas, e a criação da imagem de controle do homem negro violento e perigoso (sem espaço na organização do trabalho formal e da própria construção tradicional da masculinidade provedora). Devido ao pequeno espaço do texto e a profundidade necessária para tal discussão, não irei incorrer por essa linha analítica. Espero contar com este espaço para futuras contribuições e desenvolvimento dessa e de outras problemáticas.
3 Curiosamente a Frente Negra Brasileira foi uma apoiadora de primeira hora do varguismo, com inúmeros quadros figurando no Movimento Integralista Brasileiro. Recomendo a recente matéria da BBC News Brasil sobre essa pioneira organização antirracista. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/amp/brasil-53000662?__twitter_impression=true>. Acesso em: 13 de junho de 2020.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Thales. Democracia racial: ideologia e realidade. Petrópolis: Ed. Vozes, 1975.
BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2013.
COSTA, Sérgio. Dois Atlânticos – Teoria social, antirracismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: Editora UFMG/Humanitás, 2006.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.
KOWARICK, Lucio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
STEPAN, Nancy Leys. Identidades Nacionais e Transformações Raciais. In: A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.
THEODORO, Mário. As características do mercado de trabalho e as origens do informal no Brasil. In: JACCOUD, Luciana (Org.). Questão social e políticas sociais no Brasil contemporâneo. Brasília: IPEA, 2005. p.91-126.
_________________. “Exclusão ou inclusão precária? O negro na sociedade brasileira”. Inclusão Social, Brasília, v. 3, n. 1, p. 79-82, out. 2007/mar. 2008.
_________________. “A formação do mercado de trabalho e a questão racial no Brasil”. In: THEODORO (org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil – 120 anos após a abolição. Brasilía: IPEA, 2008. p.19-47
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Leonardo Fabri é Sociólogo e Cientista político (FESPSP) e cursa Mestrado em Administração Pública e Governo (FGV EAESP), onde pesquisa padrões de desenvolvimento, políticas públicas e as múltiplas dimensões da desigualdade. Como pesquisador, trabalhou na Oxford University Press do Brasil, Fundação Perseu Abramo, Laboratório de Educação e GVces. Atualmente desenvolve projetos de comunicação e equidade racial no Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT).
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