Marx das margens ao centro

O livro "Marx nas margens", de Kevin B. Anderson, se situa nos debates do nosso tempo à contracorrente de alguns aspectos centrais da ideologia contemporânea.

Escultura do artista plástico Sergio Romagnolo, utilizada na capa do livro Marx nas margens: nacionalismo, etnias e sociedades não ocidentais (Boitempo, 2019), de Kevin B. Anderson.

Por Marcelo Guimarães Lima.

O marxismo, observou o filósofo Michel Henry1, é a série histórica de mal entendidos, o conjunto de contrassensos, incompreensões e distorções (inconscientes ou designadas), pronunciadas, reproduzidas e estabelecidas, em contextos diversos e de formas variadas, sobre a obra de Marx.

Dentre os vários equívocos sobre as concepções do pensador alemão, as imputações, mais ou menos recentes, relacionadas por diferentes críticos de etnocentrismo, determinismo ou fatalismo, reducionismo, linearidade, unidimensionalidade, o que poderíamos chamar de “hegelianismo sistêmico”, isto é, a projeção de distinções abstratas sobre o curso real da história, estas atribuições e outras caracterizações semelhantes, são analisadas, problematizadas e criticamente refutadas por Kevin Anderson no exame paciente, documentado, contextualizado e argumentado dos escritos de Marx no importante livro Marx nas margens: nacionalismo, etnias e sociedades não ocidentais.

Anderson examina o desenvolvimento do pensamento de Marx sobre a dinâmica do moderno sistema capitalista em expansão interna e externa. A obra se debruça sobre as ideias do pensador e revolucionário alemão sobre as sociedades não-capitalistas na história e na atualidade, as relações de subordinação e exploração sistemática que o capitalismo estabelece entre centro e periferias no colonialismo moderno e como esta questão, na visão do autor, é absolutamente central para a compreensão do marxismo de Marx. De Marx, ele próprio o qual, como diz a conhecida anedota, negava enfaticamente ser “marxista”, et pour cause.

O moderno capitalismo industrial se desenvolveu inicialmente em núcleos determinados na Europa. Este desenvolvimento produziu assimetrias, conflitos e hierarquias várias, sejam as internas entre os agentes, isto é, as classes sociais diferenciadas nos seus papéis na estruturação do sistema, ou as externas entre os núcleos iniciais concorrentes e entre estes e os espaços ou domínios sócio-históricos que se situavam à margem, em diferentes graus e aspectos, dos novos processos.

Como Marx compreendeu, o capitalismo é sistema total e, como tal, tende a subordinar, absorver, modificar e satelizar todos os processos e as estruturas de reprodução material e simbólica da sociedade, por toda parte. O capitalismo moderno, isto é, aquele que se desenvolveu com a indústria em finais do século XVIII e no século XIX, é um sistema global, ou seja, um sistema que necessitou desde o início, para solidificar-se e prosperar, ultrapassar limites regionais ou nacionais e ter como terreno, como fundamento, base e destino, o mercado mundial.

A análise estrutural do capitalismo, a que Marx dedicou suas energias e seu talento de pensador, teve sempre como característica essencial demonstrar, no interior dos processos do capital, as contradições fundamentais que constituem o limite histórico-estrutural do capitalismo, e assinalar, nestes mesmos processos, a dimensão negativa, aquela que aponta para o modo ou modos possíveis de superação do capitalismo, de resolução das contradições que este produz e estabelece para os quadros da vida humana, alternativas que nascem dialeticamente destas mesmas contradições, das possibilidades futuras ou possibilidades de futuro que o capitalismo ao mesmo tempo põe e suprime.

O moderno capitalismo industrial europeu na sua expansão geográfica se apresentou como um crucial desafio histórico, um desafio vital às diversas formações sociais “periféricas” ou não-capitalistas com seus níveis diversos de desenvolvimento cultural, econômico e tecnológico.

As análises distintas e complementares dos Grundrisse e de O capital demonstram que, para Marx, não se trata de reprodução secundária ou “marginal” de um suposto movimento linear de sentido único da “flecha do tempo” histórico mas, ao contrário, de compreender globalmente os conflitos essenciais do presente que se apresentam, com seus elementos próprios e dinâmicas específicas, ao mesmo tempo nas sociedades capitalistas centrais e na periferia do espaço sócio-histórico do capitalismo europeu, isto é, no sistema mundial tal qual Marx viu emergir desde os primórdios da modernidade.

No processo de expansão capitalista, Marx observou, as muralhas da China nada podem contra a invasão dos “exércitos” de mercadorias barateadas, o sistema fabril aniquila o artesanato e os artesãos, o progresso técnico é pago com sangue no centro e nas periferias, a dominação sob justificativas “civilizatórias” se dá de fato como barbárie e crime. Deste modo, em suas análises das lutas anticoloniais de seu tempo no Império Britânico, Marx pode lembrar à burguesia britânica que a colônia, a periferia, é parte integrante do núcleo do sistema. De te fabula narratur: a narrativa sangrenta da dominação e humilhação colonial, da barbárie estabelecida, não é outra história, a história mais ou menos distante do outro, mas a sua própria.

O capitalismo na sua imperiosa expansão cria um espaço de unificação da humanidade. Unificação conflitiva, sob a hegemonia do sistema da produção mercantil, que cobra dos homens resolução vital no presente. Neste espaço unificado se manifestam as potencialidades efetivas de superação dos antagonismos sociais constituídos e constitutivos da história. Potencialidades que, como observamos, o capitalismo coloca e suprime num mesmo movimento para o conjunto da humanidade no processo histórico de superação da pré-história humana do homem.

A partir do paradigma europeu inicial, isto é, do exame aprofundado da formação histórica da Europa de seu tempo e na experiência das transformações revolucionárias contemporâneas, as quais Marx, o ativista e exilado político, o intelectual cosmopolita e escritor multilíngue, testemunhou e das quais também participou, o pensamento do filósofo alemão vai se desenvolver, como mostra Kevin Anderson, incorporando de modo essencial as experiências das lutas de resistência dos povos subjugados pelo colonialismo (Índia, China), das lutas de emancipação dos negros escravizados nos EUA, das lutas de libertação nacional-popular na Europa (Polônia, Irlanda), na análise dos movimentos populares da atualidade, suas relações complexas e essenciais com as iniciativas autônomas da classe operária, e na apreciação, dentro de uma visão efetivamente global e, portanto, multidimensional, da diversidade e unidade do presente. O autor observa o aporte conceitual das análises da atualidade, a obra jornalística de Marx sobre, entre outros temas do presente, a Guerra Civil nos Estados Unidos, os conflitos do ópio na China, as rebeliões na Índia, para o amadurecimento e finalização da arquitetura teórica de O capital como estabelecida na sua ultima revisão por Marx de forma especial na tradução francesa.

É nesta perspectiva global e multidimensional que Marx vai subsequentemente desenvolver a conceitualização das vias diferenciadas de superação possível do sistema capitalista como, por exemplo, no estudo da sociedade russa sob a autocracia tsarista e as potencialidades revolucionárias das comunidades camponesas estabelecidas, fazendo economia da fase histórica da revolução burguesa ali onde a burguesia balbuciava um papel imaginário na falta de potência histórica real. A história universal humana deixa, portanto, de exibir um caminho único e de apresentar um paradigma exclusivo na visão do presente.

No Manifesto comunista, Marx, tal qual um “poeta das mercadorias”, no dizer de Edmund Wilson3, louva expressa e entusiasticamente as realizações materiais (revolucionárias na perspectiva histórica) da burguesia, a classe portadora das novas relações capitalistas. A grande obra da burguesia para a consciência do tempo e da história foi desmistificar o passado, mostrar na prática o fundamento material que estrutura os múltiplos aspectos da vida humana, rasgar o véu milenar das ilusões idealistas na vida comum e nas formas de pensamento.

O papel do socialismo, ancorado na experiência da moderna classe operária e dimensionado nas lutas contra as variadas formas de opressão das nacionalidades, das minorias étnicas, povos, raças e de gênero, é desmistificar o presente. No mesmo momento em que a burguesia, por suas ações revolucionárias e por meio de seus ideólogos e representantes espirituais, desvendava o caráter histórico da vida humana, a transitoriedade das formas sociais fundamentadas na produção e reprodução material das condições de vida, ela tratava de encobrir a dimensão histórica do presente. Houve uma história de fato para a burguesia, processo que culminou na civilização material e espiritual moderna: a civilização burguesa. A partir daí, observa Marx com ironia, para a nova classe dominante a história deixa de existir.

No Manifesto comunista, Marx explicitava de forma breve e didática as razões fundamentais da criação histórica do novo sistema, gestado no interior da formação social prévia, e sua relativa “inevitabilidade”, ou seja, o triunfo do capitalismo industrial na Europa, baseado numa capacidade produtiva inédita que revolucionava os modos de vida tradicionais superando as estruturas e processos socioeconômicos anteriores. Ao mesmo tempo, o Manifesto apontava as contradições, a instabilidade estrutural do capitalismo moderno e a sua igualmente “inevitável” transformação, enquanto criação histórica, como filha do tempo e, portanto, forma transitória.

Explicitar as razões quer dizer: mostrar como se deu um desenvolvimento determinado e por quais motivos foi precisamente assim e não de outra maneira. Aqui vemos o autor de O capital como pesquisador científico de grande rigor e talento. Apontar as contradições no interior da formação presente significa: mostrar que o processo histórico continua e se desenvolve em dimensões várias, instâncias diversas e intimamente relacionadas e que, a partir desta complexidade estruturada e estruturante, o futuro não se delineia de uma vez por todas na herança do passado e nem no resultado presente tal e qual.

E aqui o cientista social se mostra, num mesmo gesto, ativista revolucionário: o futuro é, na verdade, um livro a ser escrito hoje ainda, uma narrativa (pouco interessa se classificada como “maior” ou “menor”) que depende da iniciativa de seus atores, onde as condições dadas delimitam mas não excluem escolhas, alternativas geradas a partir de processos materiais e interesses em conflito com suas expressões próprias, isto é, suas concepções e valores respectivos.

A um futuro aberto corresponde um passado redimensionado: em suas investigações etnológicas Marx aprofunda o conhecimento das sociedades não-capitalistas, das formas de vida comunitárias que demonstram no processo histórico a capacidade inventiva e adaptativa da espécie e as aptidões humanas, em contextos diversos, para formas não-conflitivas, ainda que limitadas, de sociabilidade cooperativa e algumas das potencialidades de desenvolvimento humano multidimensional.

A análise dialética da história em Marx procede como crítica imanente, isto é, partindo do interior dos processos sócio-históricos e das formas de consciência correspondentes, tomando tais quais suas determinações próprias, aponta os limites tendenciais, as contradições internas que os conduzem ao impasse e à necessidade de superação prática e ideológica dos mesmos. Ignorar nestas análises a “dança” dos conceitos, quer dizer, o movimento do pensamento próprio da abordagem dialética, é tomar as partes isoladas pelo todo, algo que produz leituras redutoras, empobrecedoras, equivocadas sobre a vasta e complexa obra de Marx.

Do mesmo modo, um problema recorrente tanto de determinadas leituras militantes como de leituras rápidas e abreviadamente críticas da obra de Marx é o de tomar imagens, metáforas e ilustrações por conceitos, como observou Ludovico Silva a propósito da forma plástica dos escritos do pensador alemão2. Nas descrições do capitalismo, por exemplo, as formulações e imagens sintéticas, evocativas, incisivas, nos textos de Marx produzem uma espécie de abreviação e curto-circuito expressivo (unidade e contraste da forma e do conteúdo) como uma forma instigante de figuração das contradições, de apresentação do próprio movimento dialético da história.

Aqui, a partir da argumentação de Kevin Anderson, podemos fazer um paralelo entre a leitura da obra de Marx como um capítulo a mais da economia política no século XIX e aquela que assinala nos escritos de Marx os percalços, os riscos, as aporias, limitações, contradições, etc., próprias da filosofia da história (burguesa) tal qual esboçada no século XVIII e que culmina no idealismo alemão (a ”sublimação” da revolução francesa no mundo das ideias) com Hegel. O marxismo seria neste particular, mais uma “grande narrativa” submetendo a diversidade da história real a uma consideração linear, limitada, subjetiva e assim marcadamente “etnocêntrica”, etc. Narrativa que os desastres do século XX, as guerras, revoluções interrompidas e abortadas, os riscos da tecnologia, a administração mercantil da vida social, a crise ecológica, etc. teria sepultado de modo definitivo. Como os argumentos de Marx nas margens evidenciam, tais leituras e suas formulações críticas ficam muito aquém da complexidade da teoria elaborada por Marx no exame minucioso e crítica das categorias da economia política e na análise igualmente densa da ideologia, isto é, das ideias dominantes de seu tempo. Estas, em aspectos essenciais, como “herança” e por meio de adaptações, reformulações e atualizações, ainda vigentes em nosso tempo.

As análises de Kevin Anderson neste livro nos lembram que o exame e avaliação da obra de Marx implicam não apenas a necessidade de contextualizar, localizar no seu tempo e no seu campo teórico e prático de intervenção as ideias do pensador e revolucionário alemão, o que o autor norte-americano faz com brilho, mas que este procedimento implica igualmente a análise e avaliação recíproca das perspectivas próprias do analista. Algo que não é evidente em vários dos críticos recentes, ditos com propriedade ou não “pós-modernos”, das obras do autor de O capital.

O livro de Kevin Anderson se situa nos debates do nosso tempo à contracorrente de alguns aspectos centrais da ideologia contemporânea os quais, no contexto da fragmentação e “privatização” da experiência pelo sistema do capitalismo neoliberal, tendem a dificultar de modo paradoxal a compreensão do todo e suas articulações fundamentais, no momento em que a mercantilização universal das relações humanas se aprofunda no sentido de equiparar enquanto abstrações equivalentes e subordinar, em nome das qualidades, preferências e diferenças, os sujeitos e seus contextos.

Estas breves observações têm por objetivo apenas indicar ao leitor a riqueza historiográfica, documental e conceitual do livro de Kevin Anderson. O autor recorre às fontes de modo exaustivo e produtivo, demonstrando o papel criativo que a erudição deve ter no trabalho intelectual e comprovando em suas análises a prática da reflexão crítica como autorreflexão.


Notas
1 Michel Henry, Marx, a philosophy of human reality, (Bloomington, Indiana University Press, 1983).
2 Ludovico Silva, El estilo literario de Marx (México, DF, Siglo XXI Editores, 1975)
3 Edmund Wilson, To the Finland Station (Garden City, NY, Doubleday, 1953).

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Em Marx nas margens: nacionalismo, etnias e sociedades não ocidentais, o sociólogo norte-americano Kevin B. Anderson promove uma reflexão instigante e precisa a respeito de questões que incomodam o campo marxista desde meados do século XX: o que pensava o autor de O capital sobre as relações entre classe, gênero e raça ou sobre a dominação colonial, por exemplo?

São aspectos aos quais um dos principais pesquisadores marxistas dos Estados Unidos dedica uma diligente investigação. Seu objeto não é o marxismo, mas Karl Marx. A partir da análise de artigos de jornal, cadernos etnológicos e de citações – com muitos textos ainda não publicados e pouco acessíveis –, livros canônicos e cartas, Marx nas margens demonstra que, no decorrer de sua trajetória intelectual, questões como o impacto europeu na Índia, na Indonésia e na China, as relações entre emancipação nacional e revolução (na Rússia e na Polônia), entre raça, classe e escravidão (nos Estados Unidos) e entre nacionalismo, classe e movimento dos trabalhadores (na Irlanda) tornaram-se alvo do interesse e de estudos aprofundados do pensador alemão.

Com edição de Isabella Marcatti, a obra conta com prefácio de Guilherme Leite Gonçalves, texto de orelha de Jones Manoel e tradução de Allan M. Hillani e Pedro Davoglio. A capa é de Heleni Andrade, sobre escultura de Sérgio Romagnolo.

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