O futuro pós-pandemia: prever e agir

O mundo “pré-coronavírus” era um mundo imerso numa profunda crise. Que efeitos uma pandemia pode provocar num sistema que já dava evidentes sinais de fadiga?

Metrô de São Paulo, 27 fev. 2020. Foto de Victor Moriyama.

Por Juliano Medeiros.

“Porque o tempo é apenas isto: o número do movimento segundo o antes e o depois”
Aristóteles

Enquanto escrevo este ensaio, num sábado ensolarado de outono na cidade de São Paulo, o mundo vive realidades muito distintas em relação à pandemia de covid-19. Enquanto em Wuhan, cidade chinesa que é considerada o primeiro epicentro da doença, a vida social está praticamente normalizada, com o fim das medidas de isolamento social e a retomada dos serviços públicos, a Europa dá seus primeiros passos para a uma volta segura, lenta e gradual à normalidade. Na Alemanha, país considerado exemplo no combate à covid-19, o campeonato alemão de futebol já tem data para ser retomado (sem público) e a chanceler Angela Merkel acaba de anunciar a volta das aulas e a reabertura do comércio. Outros países europeus seguem no mesmo caminho, especialmente aqueles que tiveram um número relativamente baixo de casos registrados, como Áustria e Portugal. Até mesmo países que viveram de forma dramática os efeitos da pandemia, como Itália e Espanha, já colocaram em marcha um cronograma de afrouxamento da quarentena.

Do outro lado do Atlântico, porém, a pandemia está longe de ser superada. Nos Estados Unidos, país que registra no dia de hoje a maior quantidade de vítimas da covid-19, foram registrados 1900 novos óbitos nas últimas 24 horas. No total, já são 67 mil vidas perdidas no país, que contabiliza 1,2 milhão de casos1. No Brasil, com 10 mil óbitos e 146 mil casos confirmados – com uma enorme subnotificação, já que o país não está realizando testes em larga escala – a situação parece fora de controle2. Enquanto escrevo essas linhas, o Brasil deve ultrapassar a Rússia e ocupar o posto de segundo país do mundo com maior número de infectados pelo novo coronavírus.

Como falar, portanto, de um mundo “pós-pandemia” se países como Estados Unidos e Brasil estão longe de vencê-la? Acontece que, para chineses e alemães, esse mundo já começou. Alguém poderia afirmar, assim, que o presente e o futuro estariam, numa espécie de compressão tempo-espaço, ocorrendo simultaneamente. Bastaria olhar para os países que controlaram a contaminação da doença e extrair as lições de seu aprendizado, numa espécie de “pedagogia da crise”. Teríamos aí uma previsão do que acontecerá conosco. Mas, infelizmente, não funciona assim.

O mundo não é uma simples soma de países separados. O que acontece a um país, impacta de forma distinta o outro e assim por diante. O chamado “sistema-mundo” teorizado por Immanuel Wallerstein3 compreende um conjunto de relações dialéticas estabelecidas pelas nações a partir das diferentes atribuições que cada país assume na divisão internacional do trabalho. Esse sistema pressupõe uma desigualdade hierárquica na distribuição dessas atribuições a fim de manter o funcionamento do sistema do capital, gerando Estados “centrais” e “periféricos” no sistema-mundo. Por isso os impactos econômicos, sociais e políticos de um acontecimento das dimensões de uma pandemia, atinge cada país de forma particular, mas gerando uma cadeia de consequências que impacta todo o planeta.

Além disso, lembremos que, já faz algumas décadas, a dimensão estrutural da crise de valorização do capital vem impondo profundas transformações às relações de produção, seja pela revolução tecnológica em curso, seja pelos novos arranjos no mundo do trabalho. Parques industriais inteiros foram transferidos de um país para o outro, nações se desindustrializaram numa velocidade espantosa e novas ocupações surgiram. A crise econômica de 2008 arrastou consigo a própria democracia liberal, questionando os arranjos democráticos existentes até então e ensejando o aparecimento de novas forças políticas e sociais – à esquerda e à direita.

O mundo “pré-coronavírus” era, portanto, um mundo imerso numa profunda crise. Que efeitos uma pandemia pode provocar num sistema que já dava evidentes sinais de fadiga? Para responder a essa pergunta, recorreremos a uma ilustrativa polêmica travada entre os filósofos Slavoj Žižek e Byung-Chul Han. O esloveno Žižek é famoso por sua confluência entre filosofia marxista, psicologia lacaniana e cultura pop. O sul-coreano Han, por sua vez, combina filosofia existencialista, psicanálise e sociologia.

Žižek e Han, ao lado de outros intelectuais de peso – como David Harvey, Giorgio Agamben e Judtith Butler – vêm apresentando suas perspectivas para o mundo pós-pandemia. Em uma intervenção de fevereiro, o primeiro afirma que o coronavírus é um golpe no capitalismo ao estilo Kill Bill que poderia conduzir à uma reinvenção do comunismo. Embora admita que junto com a covid-19 surgiram outros “vírus ideológicos” que estavam latentes em nossas sociedades, como as notícias falsas, as teorias da conspiração e as explosões de racismo, Žižek parece apostar que o mais provável é que a experiência da pandemia reforce valores como a solidariedade e a cooperação global. Como nos filmes que descrevem uma catástrofe cósmica – um asteroide que atinge o planeta, uma epidemia que dizima a humanidade ou uma invasão alienígena – o filósofo esloveno acredita que a pandemia de coronavírus, sendo ela própria uma ameaça global, “traz a potencialidade de ensejar uma nova solidariedade global: diante dela, nossas pequenas diferenças tornam-se insignificantes e todos passamos a trabalhar juntos para encontrar uma solução”.

De fato, os exemplos de solidariedade são incontáveis. Num país desigual como o Brasil, onde 52 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza4 (poder de compra de menos de cinco dólares diários) as demonstrações de generosidade e empatia são emocionantes. Mas essa solidariedade estaria se traduzindo em potencial de transformação política? Byun-chul Han pensa que não. Para ele, o mais provável é que vejamos uma espécie de “ultracapitalismo”, onde os mecanismos de controle social por parte do Estado, como aqueles praticados na China, passariam a ser legitimados globalmente como necessários ao controle de novas pandemias. Segundo ele, “o vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução.” Contudo, Han não descarta, por completo, as possibilidades de mudanças sociais. Sendo taxativo de que “não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus”5.

A polêmica entre Žižek e Han expressa, além de análises fundamentas em percepções da realidade concreta – sim, há mais solidariedade sendo exercida pela humanidade; sim, há potencialmente maiores condições para a implantação de um Estado policial global – dois futuros possíveis. Não se trata, portanto, de opor “pessimismo” e “otimismo”. Tampouco é propósito deste ensaio realizar o escrutínio das posições de Žižek e Han, mas demonstrar que uma análise “a frio” pode permitir diferentes apostas sobre que virá no pós-pandemia. O que parece ausente nessa e em muitas análises sobre o mundo pós-coronavírus é a ação consciente das pessoas sobre este ou aquele cenário possível. Em outras palavras: o futuro depende precisamente das escolhas que a humanidade fizer hoje.

Gramsci escreveu que prever significa ver o presente e o passado como movimento: ver bem, isto é, identificar com exatidão os elementos fundamentais e permanentes do processo. Ele ressalta, no entanto, que seria absurdo pensar numa previsão “puramente objetiva”. Para ele, “quem prevê, na realidade, tem um ‘programa’ que quer ver triunfar e a previsão é exatamente um elemento de tal triunfo”6. Por isso, dizer como será o mundo no pós-pandemia também é parte do exercício de prever as saídas possíveis. A disjuntiva prever versus agir é, portanto, falsa, como demonstra o marxista sardo.

As informações de que dispomos nos permitem crer que o impacto da pandemia do novo coronavírus sobre o sistema do capital será enorme. Segundo o FMI, a retração da economia global deve ser de, no mínimo, 3% em 2020. A maior economia do planeta, os Estados Unidos, terão uma contração de pelo menos 5,9%. A China, que tem puxado o crescimento da economia mundial nos últimos anos, deve ter um crescimento de apenas 1,2%. Países da semiperferia do sistema, como o Brasil, sofrerão ainda mais. Por aqui a previsão é de que o PIB fique em -5,3% este ano7. Esses números, no entanto, não revelam o drama social que está por vir.

Segundo dados da OIT, o desemprego pode atingir mais de 25 milhões de trabalhadores e trabalhadoras em todo o mundo8. Com o desemprego vem a migração forçada, a violência, o aumento da miséria e a deterioração das condições de vida. Esse cenário de crise social poderia desembocar tanto em convulsões políticas potencialmente fatais para o sistema do capital – nos aproximando assim do cenário previsto por Žižek – quanto no incremento dos assombrosos mecanismos de controle social e repressão dos governos a eventuais revoltas – como previsto por Han. Aliás, os recentes exemplos de “coronagolpes” na Hungria e em Israel mostram que líderes conservadores não estão dispostos a esperar que as revoluções se ponham em marcha para agir.

O futuro, portanto, está em aberto. É importante fazer previsões e perceber as tendências que a realidade aponta. Mas não devemos desprezar a possibilidade de reviravoltas. As “massas” podem alterar drasticamente o rumo da história se suas vidas estiverem sob grave ameaça. Exemplos não faltam. Elas ainda não entraram em cena nesta crise. No entanto, num passado recente, que remonta à crise econômica de 2008, a presença de multidões nas praças no norte da África, Europa, Estados Unidos e América Latina, impediu que a conta da recessão global recaísse exclusivamente sobre as maiorias sociais. Também ali se rompeu o consenso democrático-liberal, com o surgimento de novos atores sociais e partidários que mudaram a realidade da luta política em muitos países.

Por isso, além de prever, é preciso agir. A crise do discurso neoliberal em torno do Estado mínimo, do equilíbrio fiscal, da globalização de mercados – e nunca de pessoas – da imposição de metas econômicas, e mesmo num nível subjetivo, da meritocracia e do individualismo, é evidente. As medidas de proteção social adotadas em todo o mundo demonstraram de forma cabal que um outro tipo de Estado, à serviço das maiorias sociais, é possível e necessário. Abre-se, portanto, a possibilidade de uma ação no presente que determine o futuro. Os jovens Marx e Engels apontaram os limites da teoria, pela certeza de que ela não pode e não deve substituir a práxis, pretendendo resolver em seu lugar as questões que só ali se colocam e podem ser decididas. Isso não significa escolher entre teoria versus práxis. Em nenhum momento Marx apresenta essa oposição em suas “Teses sobre Feuerbach”, onde expressa de forma mais definitiva sua filosofia da práxis. O que ele fazem, ao contrário, é apresentar uma constatação radical para sua época: a de que a História é escrita pela atividade humana, acumulada geração após geração9.

O futuro pós-pandemia, portanto, está sendo escrito hoje. Só temos o presente. O passado já não existe, servindo, no máximo, como bussola para nossa ação no agora. Sabemos que o sistema do capital vive uma profunda crise. Ele buscará aproveitar a pandemia para se reinventar, de preferência, “descartando” força produtiva excedente num contexto de recessão global. Também buscará aprimorar os mecanismos de controle social, como aponta Han. Por isso é preciso pôr em marcha uma “luta à morte” para que a crise atual se transforme na crise terminal do sistema. E isso só pode ser feito com organização e ação consciente: em outras palavras, só pode ser feito pela política.

Como lembra Wallerstein, o capitalismo – como todas as formas de organização da vida social anteriores – perecerá. Falta saber o que irá substituí-lo; a transição não será apocalíptica e dependerá das escolhas feitas agora10. Cabe aos que vivem do trabalho e suas organizações políticas, tomarem a iniciativa de impulsionarem desde já um projeto alternativo de futuro para que o delírio de Žižek, além de nos confortar, possa também tornar-se uma realidade.

O Blog da Boitempo apresenta um dossiê urgente com reflexões feitas por alguns dos principais pensadores críticos contemporâneos, nacionais e internacionais, sobre as dimensões sociais, econômicas, filosóficas, culturais, ecológicas e políticas da atual pandemia do coronavírus. Confira aqui a página com atualizações diárias com análises, artigos, reflexões e vídeos sobre o tema.

Notas

1 Dados registrados em 9 de maio. Disponível aqui.
2 “Casos de coronavírus e número de mortes no Brasil”. Informações disponíveis aqui.
3 Immanuel Wallerstein, World-systems analysis: An introduction (Duke University Press, 2004). p. 23-24
4 Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível aqui.
5 Uma excelente análise dessa polêmica está disponível em Erick Kayser, “Os limites das políticas otimistas e pessimistas na crise do Covid-19 ou o “duelo” Slavoj Zizek vs Byung-Chul Han”, Instituto Humanitas Unisinos. É de lá que extraímos este pequeno excerto do artigo de Byung-Chul Han.
6 Antonio Gramsci, “Sobre o conceito de previsão ou perspectiva”. Cadernos do cárcere, vol. 3 (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, , 2007), p. 342.
7 Dados do Fundo Monetário Internacional. Disponível aqui.
8 Dados da Organização Mundial do Trabalho apresentados no documento “COVID-19 e o mundo do trabalho: Impactos e respostas”.
9 Karl Marx, “Ad feuerbach”, em Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 533-40.
10 Immanuel Wallerstein em entrevista a Sophie Shevardnadze para o Russia Today, 4 out. 2011. [Edição brasileira: “O tempo em que podemos mudar o mundo”, trad, Daniela Frabasile, Outras Palavras, 14 out. 2011].

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Juliano Medeiros é historiador pela Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Ciência Política pela mesma instituição. É autor de Um Mundo a Ganhar e Outros Ensaios (Multifoco, 2013) e coautor e organizador de Um Partido Necessário – 10 anos do PSOL (Fundação Lauro Campos, 2015) e Cinco mil dias: o Brasil na era do lulismo (Boitempo, 2017). Colabora com veículos no Brasil e exterior e, desde janeiro de 2018, preside o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

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