Trótski se pergunta: Outubro teria sido possível sem Lênin?
O livro que a Boitempo entrega em nova tradução é o principal clássico do marxismo sobre a necessidade insubstituível de um partido militante centralizado para o triunfo da revolução socialista. Essa é a ideia mais poderosa de "O que fazer?", de Vladímir Lênin.
Por Valério Arcary.
“A História esclarece duas grandes “crises internas” do bolchevismo no ano da revolução. Na primeira, Lênin, que acabara de voltar da Suíça, apresenta suas Teses de abril e “rearma” politicamente o seu partido para a guerra contra o regime de fevereiro; na segunda, no penúltimo estágio da revolução, os defensores e adversários da insurreição se enfrentam mutuamente no Comitê Central bolchevique (…) Em ambas as crises, somos levados a sentir que é dos poucos membros do Comitê Central que a sorte da revolução depende: seus votos decidem se as energias das massas devem ser dissipadas e derrotadas, ou dirigidas para a vitória. O problema das massas e lideres é apresentado com toda a sua agudeza e quase que imediatamente as luzes focalizam de forma ainda mais limitada e intensiva, um único líder, Lênin. Tanto em abril, como em Outubro, Lênin fica quase que sozinho, incompreendido e renegado pelos seus discípulos. Membros do Comitê Central quase queimam a carta na qual ele insiste em que se preparem para a insurreição, e Lênin resolve ‘travar a guerra’ contra eles e se necessário for recorrer as fileiras, desobedecendo a disciplina partidária. ‘Lênin não confiava no Comitê Central – sem Lênin’, comenta Trotski, e ‘Lênin não estava muito errado nessa desconfiança’. Em cada crise, porém, acabou convencendo o partido a adotar sua estratégia e lançou-o na batalha Sua ousadia, realismo e vontade concentrada surgem da narrativa corno os elementos decisivos do processo histórico, pelo menos da mesma importância que a luta espontânea de milhões de trabalhadores e soldados. Se a energia destes foi o “vapor” e o partido bolchevique o ‘êmbolo’ da revolução, Lênin foi o condutor.
Isaac Deutscher, Trótski: o profeta banido (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira: 1984), p.250.
O livro que a Boitempo entrega em nova tradução é o principal clássico do marxismo sobre a necessidade insubstituível de um partido militante centralizado para o triunfo da revolução socialista. Essa é a ideia mais poderosa de O que fazer? Questões candentes de nosso movimento, de Vladímir Lênin. Ela remete à discussão do lugar do fator subjetivo ou da qualidade da direção nos processos revolucionários.
Trótski dedicou mais de duas décadas, depois de 1917, à reflexão sobre o tema do papel da direção. E foi até à mais radical das consequências ao formular a pergunta perturbadora: sem a presença de Lênin, Outubro teria sido vitorioso? Não é possível respondê-la. Contrafactuais são exercícios legítimos, porém, hipotéticos, que só podem ter o mérito de sugerir um problema. Neste caso, o problema não é simples: e se Lênin não tivesse atravessado a Alemanha no trem blindado, não tivesse convencido o partido bolchevique para a defesa das Teses de abril, e depois, para a insurreição, Outubro teria ocorrido? A resposta não é simples, e nunca poderá ser irrefutável.
Trótski se coloca a questão e responde que não. A sugestão de Deutscher é que Trótski, talvez porque só tardiamente tenha defendido a união da organização interdistritos com o partido bolchevique, teria se inclinado por uma hípervalorização do lugar individual de Lênin no desenlace vitorioso de Outubro.
Por outro lado, é bem conhecido que o giro tardio de Trótski para a unificação com Lênin, fez dele, até ao final de sua vida, um defensor entusiasmado do bolchevismo como modelo de partido. Deixou como herança uma posição “superleninista”. Acontece que uma supervalorização da autoridade de Lênin, necessariamente, diminui a ideia da eficácia do papel do partido como organização coletiva. O que não impediu Trótski, surpreendentemente, de escrever variadas vezes nos seguintes termos:
“A ditadura do proletariado se deduzia a partir de toda a situação. Além disso, era necessário instaurá-la, e isso não teria sido possível sem o partido. E ele só poderia cumprir sua missão se a compreendesse. Para isso era necessário Lênin. Antes de sua chegada a Petrogrado, nenhum dos líderes bolcheviques se atreveu a fazer o diagnóstico da revolução. Pelo curso dos acontecimentos a direção Kamenev-Stálin foi empurrada para a direita, para a posição dos social-patriotas: a revolução não deixou espaço para uma posição intermediária entre Lênin e os mencheviques. A luta intestina dentro do partido bolchevique era inevitável. A chegada de Lênin só acelerou o processo. Sua ascendência pessoal reduziu as proporções da crise. No entanto, alguém pode afirmar com segurança que, sem ele o partido teria encontrado o seu caminho? Nós não ousaríamos dizê-lo. O fator decisivo nesses casos é o tempo, e quando a hora passou é muito difícil ter uma visão retrospectiva do relógio da história. De qualquer forma, o materialismo dialético não tem nada em comum com o fatalismo. (…) Claro, as condições da guerra e da revolução não deixavam para o partido muita margem de tempo para cumprir sua missão. Portanto, poderia muito bem acontecer que o partido, desorientado e dividido, perdesse por muitos anos a ocasião revolucionária. O papel da personalidade alcança aqui, diante de nós, proporções verdadeiramente gigantescas.”
Leon Trótski, Historia de la Revolución Rusa (Bogotá, Pluma, Tomo I), p. 300
O argumento polêmico mais forte de Trótski é que a oportunidade poderia ter sido perdida, porque os prazos seriam irreversíveis e, sem Lênin, a crise política do bolchevismo, em sua opinião inexorável, teria se prolongado e exaurido o partido em uma luta fracional da qual não poderia sair intacto.
Deutscher argumenta contra Trótski que a personalidade “excepcional”, elevada a uma grande autoridade pelos sua capacidade ou pelas circunstâncias, bloqueia o caminho para que outros, que poderiam ocupar o seu lugar pudessem cumprir a mesma tarefa, ainda que imprimissem aos acontecimentos as marcas próprias do seu estilo. É o “eclipse” dos outros que criaria a “ilusão de óptica” da personalidade insubstituível. Deutscher acrescenta que mesmo que a crise revolucionária aberta entre Fevereiro e Outubro se perdesse, outras voltariam a se abrir:
“Trotski afirma que somente o gênio de Lênin podia enfrentar as tarefas da Revolução Russa e insinua frequentemente que, em outros países, também, a revolução deve ter um partido como o bolchevique e um líder corno Lênin, para vencer. Não há nada de novo em falar-se da extraordinária capacidade de Lênin ou da boa sorte que teve o bolchevismo encontrando um líder corno ele. Mas em nossa época, as revoluções chinesa e iugoslava não triunfaram sob partidos muito diferentes do boIchevique de 1917, e sob líderes de menor estatura, em certos casos de muito menor estatura? Em cada caso, a tendência revolucionária encontrou ou criou seu órgão com o material humano de que dispunha. E se parece improvável supormos que a Revolução de Outubro teria ocorrido sem Lênin, tal suposição não será tão pouco plausível quanto a inversa, de que um tijolo caindo de um telhado em Zurique em princípios de 1917, poderia ter modificado a sorte da humanidade neste século.” (grifo nosso)
Isaac Deutscher, Trótski, o profeta banido (cit.), p. 255
Deutscher leva o raciocínio até ao fim, e conclui que a hipótese de Trótski seria “espantosa em um marxista”. No entanto, não nos enganemos: não estamos diante de uma discussão “bizantina”, mas diante do lugar do último elo de uma complexa cadeia de causalidades. A questão remete tanto à personalidade política notável de Lênin, quanto sobre o lugar do sujeito político coletivo na crise revolucionária.
Se até o partido bolchevique, talvez, o mais revolucionários da história contemporânea, teve uma fração hostil à luta pelo poder em sua máxima direção, em plena crise revolucionária, que dificuldades esperar no futuro? A pressão das classes socialmente hostis a um projeto socialista seria tão grande que esse processo tenderia a se repetir?
A premissa de que os fatores subjetivos se neutralizam, mutuamente, e, portanto, se anulam, não tem sustentação: são justamente as diferentes margens de erro, ou seja, a qualidade do sujeito político que pode fazer a diferença, e inclinar a balança em uma ou noutra direção. Se as oportunidades históricas colocadas pela luta de classes se perderem, sempre existe a possibilidade de um impasse histórico prolongado cujos desenlaces são, a priori, indefinidos e imprevisíveis. George Novack acrescentou um argumento:
“A discrepância observada por Deutscher entre as observações de Trótski sobre que Lênin era essencial para a vitória de outubro, e as que dizem que as leis objetivas da história são mais fortes do que as características peculiares dos protagonistas, deve ser explicada pela diferença entre o curto prazo, e a história a longo prazo (…) A qualidade da direção pode decidir qual das alternativas válidas que emergem das condições prevalecentes irão realizar-se. O fator consciente tem uma importância qualitativa distinta, ao longo de uma época histórica inteira, que a que tem em uma fase ou situação específica dentro dela (…) O tempo é um fator importante no conflito entre as classes sociais enfrentadas. A fase indeterminada em que os acontecimentos podem ser desviados em qualquer direção não dura muito tempo. A crise das relações sociais deve ser, rapidamente, resolvida de uma forma ou de outra. Nesse ponto, a atividade ou passividade de personalidades dominantes, os grupos e partidos, pode fazer pender a balança de um lado ou do outro. O indivíduo pode intervir como um fator decisivo no processo de determinação histórica somente quando todas as outras forças em jogo estão, temporariamente, empatadas. Então, o peso extra pode servir para inclinar a balança.”
George Novack, Para comprender la Historia (México, Fontamara, 1989), p.80.
Os critérios de Deutscher são estritamente deterministas. E os de Trótski, talvez, mais flexíveis: os fatores objetivos e subjetivos são, também, mutuamente, relativos, e guardam uma sutil interação entre si. Em relação às massas operárias e camponesas, o partido bolchevique era um fator subjetivo. Mas em relação aos seus membros ele era um elemento objetivo. Em relação ao partido, a presença de Lênin era um elemento subjetivo, mas nas suas relações com os outros membros da direção, sua presença era um fator objetivo. O método dialético exige graus diferentes de abstração.
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Na TV Boitempo, Virgínia Fontes, Jones Manoel e Fábio Palácio debatem a atualidade de O que fazer?, de Lênin, nos 150 anos de nascimento do teórico marxista e revolucionário russo. A mediação foi de Genilda Souza.
O que fazer? Questões candentes de nosso movimento
Com edição, sempre primorosa, de Carolina Mercês, este quarto título da coleção Arsenal Lênin da Boitempo conta com revisão de tradução de Paula Almeida e o prefácio à edição brasileira é assinado por Valério Arcary.
“Em O que fazer? não há respostas às perguntas de hoje, mas elementos para ajudar a construir as soluções práticas atuais. Vivemos o início de uma nova era. É possível (e necessário) fazer uma nova leitura da obra de Lênin, na certeza de que ela pode constituir uma contribuição valiosa para nos orientar nos desafios de nosso tempo. Trata-se de um regresso criativo e promissor: não voltamos ao mesmo, nem temos a mesma atitude. O que persiste é o compromisso com a criação de uma nova sociedade, com a superação histórica do capitalismo.” – Atilio A. Boron
“Em O que fazer?, encontramos uma compreensão aguçada de que, por trás do confronto entre “partido revolucionário” e “partido das reformas”, jaz outro conflito entre as relações de ambos com o Estado e a revolução, com a burguesia e o capitalismo.” – Tamás Krausz
“O livro O que fazer? é uma enorme lição, não apenas porque a grande maioria de suas análises permanece válida, mas sobretudo porque ele nos oferece uma verdadeira aula prática de marxismo: não basta ter uma receita, é preciso enfrentar o cotidiano das lutas, as armadilhas que a dominação de classes lança mesmo sobre aqueles que pensam ser… a favor dos trabalhadores.” – Virgínia Fontes
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Valério Arcary é Doutor em história pela USP, é professor do Centro Federal de Educação Tecnológica e autor de As esquinas perigosas da História (São Paulo, Xamã, 2004). É um dos autores de István Mészáros e os desafios do tempo histórico (Boitempo, 2011), organizado por Ivana Jinkings e Rodrigo Nobile.
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