A face trágica do capitalismo: guerra e vírus, destino e liberdade
O terror trágico em reação a uma ameaça viral só pode emergir de uma consciência unificada pela oscilação entre os polos da contingência total, perante a qual nada ou quase nada se pode fazer a não ser desesperar-se e lamentar-se, e da necessidade extrema, perante a qual deve-se resignar.
Por Lindberg Campos.
Este texto tem como intenção destacar, e indiretamente explicar, a famosa tese de Marx, segundo a qual “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo” (2007, p. 539). De fato, não foram poucos os que viram os textos coletados sob a rubrica de A ideologia alemã (1845-1846) como uma espécie de marco para o marxismo em particular, e para o materialismo em geral. Nesse trabalho, Marx demonstra, entre outras coisas, o caráter ideológico da filosofia, isto é, como “a ideologia em geral, em especial a filosofia alemã” se transformava em impedimento à prática. Foi tendo isso em vista que, para ele, por mais que a filosofia proclamasse estar tratando de “objetos sensíveis”, ela deixaria de apreender “a própria atividade humana como atividade objetiva”, já que consideraria “apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano” (ibid., 537). Dessa maneira, este escrito terá conseguido produzir tal encomenda, caso ele argumente convincentemente que a trajetória de Marx pode perfeitamente persuadir você, leitor, a se perguntar não somente sobre “o que”, “como” e os “porquês” das contradições atuais, mas também e crucialmente “o que”, “como” e os “porquês” da sua ação dentro da pandemia da covid-19 em particular, e do capitalismo em geral.
Montando a questão: pandemia da covid-19, mero acaso ou manipulação total?
Uma das características do que veio a ser conhecido como “capitalismo tardio” foi precisamente a emergência de uma consciência sócio-histórica, digamos assim, mais “precária” graças a uma série de fatores. Isto é, o alto grau de desenvolvimento do modo de produção capitalista se traduziu em uma naturalização do sistema de dominação atual de tal modo que ele virou “cultura”, ele se transformou na nossa própria “natureza” e boa parte das pessoas parte do pressuposto de que a vida sempre foi assim. A demonstração da inviabilidade estrutural da manutenção desse modo de produção realmente existente pode ser facilmente encontrada no colapso da trajetória ascensional do capitalismo durante os seus “anos dourados” (1945-1973). Formou-se, ao redor daquele período, o consórcio entre a máquina fordista e o sistema colonial, que possibilitou, entre outras coisas, taxas de crescimento econômico, de emprego, de consumo e de bem-estar social – principalmente nos países do G7 (Reino Unido, França, Estados Unidos, Alemanha, Itália, Japão e Canadá) – até então desconhecidas. Esse quadro não foi apenas precondição para uma verdadeira fusão entre a estrutura psicossocial e a forma mercadoria, mas também foi responsável por pavimentar o caminho para uma maior “modernização” da agricultura – o que não se restringiu ao desaparecimento virtual de modos de vida tradicionais ou pré-capitalistas, mas também incluiu uma maior dependência “sociometabólica” do sistema produtor de mercadorias. Some-se a tudo isso o fato de a partir da segunda metade do século XX, termos um quadro em que há uma crescente e substancial ausência de gerações que viveram ou que tiveram contato com pessoas que acumularam a experiência de ter conhecido um mundo muito menos modernizado à imagem e à semelhança do capital. Uma visão histórica do modo de produção capitalista não é, portanto, algo que necessite, a todo custo, ser escondida, é algo efetivamente complicadíssimo de se obter na própria prática vital diária das pessoas de maneira geral.
Os historiadores, economistas e sociólogos, via de regra, marcam o “último” fim dessa “fase heroica”, ou da “superstição” da harmonia das relações capitalistas, principalmente ao redor dos anos 1960. Tal mal-estar se instalou, como não poderia deixar de ser, primeiramente nos países dependentes e coloniais – e dentro destes, com ainda maior intensidade, nas zonas econômicas mais distantes dos centros do sistema exportador, da manufatura ou da indústria, sempre incipiente, mas possivelmente existente –, já que eles foram responsáveis por garantir a sobrevida dos “anos dourados” no centro. Some-se a isso que a “constelação”, formada por processos como o maio de 1968 na França, a crise petrolífera de 1973 e a derrota da investida imperialista liderada pelos Estados Unidos no Vietnã em 1975, assinala o fim dos “anos de ouro” da chamada “Pax Americana”. Daí em diante é montada, ou melhor mesmo seria dizer remontada, uma “nova” e contínua operação de “guerra” contra os trabalhadores de todo o mundo e em todas as trincheiras da luta de classes – é também resultado desse fenômeno histórico (uma consciência a-histórica dominante) o embasbacamento diante do que se tem apresentado como pura novidade histórica, tal como a multiplicidade formal dos confrontos militares, tecnológicos, culturais ou ideológicos. Nesse sentido, a ininterrupta sobreposição categorial e conceitual se impõe como uma consequência da prática concreta daqueles que relatam pouca coisa além do “museu de grandes novidades”, dos tratados baseados quase que exclusivamente em rupturas ou continuidades totais. A lógica do Novum, por parte de um sistema de dominação que atinge sua maturidade, em si mesma não é nova, mas ajuda a explicar a série de “pseudoeventos” que a ideologia tem de lançar mão para nublar a percepção das relações reais, já que a principal vitória da fase heroica da pós-modernidade representou, além de tantas outras coisas, precisamente o avanço da “epistemologia” e o recuo da “ontologia” sob um “equilíbrio atômico”. Esse é um “fragmento” do retrato do mundo das imagens instantâneas, do cinismo, da simulação e do pragmatismo do “pós-humanismo” e do “conjunturalismo”.
Visto desse jeito esquemático e sumário, até pode parecer que a história é tão somente uma lista de eventos quase que puramente lógicos e autoconscientes e que seus agentes estão sempre operando a racionalidade entre meios e fins para dar respostas à cadeia lógica de acontecimentos. De fato, o capitalismo, enquanto sistema racionalmente articulado, foi capaz de produzir um desenvolvimento científico e tecnológico sem precedentes e isso normalmente nos faz crer que não haja pontos cegos, imprevisibilidades ou contingências no seu desenvolvimento. É dessa percepção que brotam as mais variadas teorias conspiratórias – “teorias” que reduzem todas as determinantes de um dado processo às incontáveis e inegáveis células conspiratórias que a política desde sempre implica –, bem como os contínuos “giros em falso” das diversas perguntas para as quais jamais teremos respostas, simplesmente porque parecemos não entender os limites da razão humana na sua relação inseparável com a totalidade da experiência histórica. Em momentos como o atual, é de suma importância reiterar o óbvio: de um ponto de vista materialista, certo nível de imprevisibilidade é um dado da existência.
Com efeito, como nos lembra Immanuel Kant em a sua Crítica da Razão Pura (1781), a “razão” humana é algo tão extraordinário que ela, dada a sua própria natureza, necessariamente se extrapola, se coloca questões que ela mesma não pode responder e começa a “tatear às cegas” (2018, p. 17). Para esse sempre desconcertante pensamento cético, “aquilo que nos impulsiona necessariamente a ir além dos limites da experiência é o incondicionado, que a razão exige necessariamente nas coisas em si mesmas” (Ibid., p. 31-32), assim, o necessário passo de esclarecimento burguês acerca do aspecto “estético transcendental” da intuição estava anunciado: “toda a nossa intuição não é senão a representação dos fenômenos […] as coisas que intuímos não são em si mesmas tal como as intuímos […] toda a constituição, todas as relações dos objetos no espaço e no tempo, e mesmo o espaço e o tempo desapareceriam, não podendo, como fenômenos, existir em si mesmos, mas apenas em nós” (Ibid., p. 86-87). Está aqui, simultaneamente, uma inegável contribuição na luta contra a metafísica teológica e uma antinomia irresolvível da busca da verdade por parte de uma classe; aqui encontramos uma excelente ilustração do salto materialista que Marx dá em A ideologia alemã, sobretudo quando diz que a filosofia é ideologia ao rejeitar “a própria atividade humana como atividade objetiva”, já que considera “apenas o comportamento teórico como o autenticamente humano”.
Extrapolar a potência da razão e especular sobre problemas para os quais dificilmente se encontrará uma prova definitiva não é algo completamente negativo, já que, às vezes, é justamente nessa extrapolação que se pode “ver” e “antecipar”. É muito possível que uma das colaborações de certo “kantismo” tenha sido justamente colocar questões incontornáveis para aqueles que creem em um mundo totalmente apreensível por raciocínios e esquemas lógico-formais. Essas visões de mundo tratam a totalidade mais como se ela fosse um ponto de chegada do que um ponto de partida e é encontrada da direita à esquerda; é como se o “todo” fosse apenas télos (finalidade, objetivo, destino) e restrito ao reino da necessidade, enquanto a totalidade formada pelo mundo físico e a experiência histórica humana não contasse sempre com níveis, ora maiores ora menores, de contingência (algo mais fortuito, que escapa ao controle, mais imprevisível, eventual, sem necessidade de acontecer, circunstancial, algo que está para além da vontade e do poder internos ao sujeito individual ou coletivo). Contudo, o alerta de Kant parece se dirigir tanto a racionalistas quanto a irracionalistas, já que, é sempre bom que se diga, inesperado está longe de significar o mesmo que inexplicável, inapreensível, inefável, irrepresentável, até mesmo porque, caso não queiramos cair em um dualismo, o contingente deve ser visto como um momento do necessário. Por mais que sejam extremamente bem-vindos esses alertas em relação à faculdade da razão, o medo de extrapolá-la e cair em um possível engano ao se aproximar da “coisa em si”, no limite, inviabiliza a própria prática de pensar: “o assim chamado medo do erro é, antes, medo da verdade” (Hegel, 2002, p. 70).
É deveras compreensível que o desenvolvimento técnico que o capitalismo tardio tem mobilizado, bem como todos aqueles elementos listados mais acima, nos façam desenvolver uma “mentalidade” cética, pragmática e imaginar que a realidade é quase que exclusivamente necessidade ou contingência. Afinal, se o capitalismo virou a nossa própria natureza, não é de se surpreender muito que o entendamos como aquilo que inexorável e necessariamente se impõe: dito de maneira mais simples, o “tá tudo dominado”, pelo qual muitas pessoas buscam compreender a vida sob o regime do capital, é menos algo da ordem da “má fé” do que a forma que a ideologia dominante da resignação trágica assume muitas vezes. Um “evento” como a pandemia da covid-19, por exemplo, é não raramente pensada, da esquerda à direita do espectro político, a partir de extremos, que normalmente se constituem de um lado pela adesão à contingência total, mistificando-a seja religiosa, psicológica ou culturalmente, ou, por outro lado, pela positividade (ou imposição) do “necessário absoluto” (ou “absolutamente necessário”), tendo como carro-chefe a capitulação à onipotência, onipresença e onisciência do fetiche e da reificação (desumanização) sob o qual os seres humanos seriam tão somente joguetes de forças racionais e tecnológicas. É possível que, em termos de análise e de caracterização de um fenômeno como uma pandemia, fiquemos entre, primeiramente, a praga divina, a essencialização da condição humana como aquela de agentes passivos do sofrimento e não implicados na “coisa em si”, e, secundariamente, entre as guerras híbridas, o positivismo economicista ou o labirinto sem saída da manipulação técnica alheia (todos se encontram irremediavelmente manipulados com exceção, é óbvio, do próprio advogado da manipulação alheia). O que une ambos os polos é o elemento trágico visto desde uma perspectiva antidialética, ou seja, a tragédia enxergada quase que simplesmente como “acaso” (talvez como pura aleatoriedade) ou como “destino” (visto como imposição completa).
O que está na base de uma problemática como essa, como espero ter conseguido assinalar até aqui, não é algo em si mesmo particular à nossa atual totalidade sócio-histórica. Ela, na verdade, parte de uma longa querela envolvendo a dialética da contingência e da necessidade até finalmente chegar a algumas contribuições do materialismo histórico, ou marxismo. A propósito, não é por simples “acidente” que esse tenha sido, em linhas gerais, o tema da tese de doutorado de Karl Marx e que foi publicada no Brasil sob o título de Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro (1841). Esse trabalho serve como um tipo de ponto de partida de um impasse bastante antigo e que ganha contornos mais desenvolvidos, desde uma perspectiva materialista, na produção tardia de Marx. Mais: esse livro nos devolve um universo intelectual em que matemática, ética, física, política e filosofia não estavam tão apartadas como hoje em dia. A convergência, já para o jovem Marx, parece se dar sobre bases menos abstratas do que “a procura da verdade”, e, em vez disso, de uma defesa intransigente de uma noção de liberdade. Nesse sentido, vejamos então como o próprio trata a questão da liberdade ao longo da sua formação política e como isso pode nos ajuda a “determinar” o caráter, à primeira vista, exclusivamente trágico da pandemia da covid-19.
Fetichismo trágico, tragédia como dialética
Para o Marx jovem hegeliano de esquerda – um democrata radical – interessava enormemente identificar, explicar e salientar o princípio de certa “autonomia do sujeito” em oposição à “positividade”, ou imposição, da efetividade exterior. Em outras palavras: “a questão em foco é a da relação entre autoconsciência e mundo – questão que, no idealismo ativo, é tratada de forma a privilegiar a autoconsciência como elemento reclamador do princípio da razão contra a positividade do real” (Albinati, em Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro, p. 10-11). Traduzindo em termos mais políticos, poder-se-ia elucubrar que, por mais idealista que fosse tal proposição, interessava verificar até onde iria a liberdade do ser humano para transformar a sua respectiva situação. Mais: a preocupação central da tese de Marx parece girar em torno da afirmação de uma “autoconsciência subjetiva” que poderia inclusive ser encontrada na própria natureza e comprovada por meio do trato que a filosofia pós-aristotélica de Epicuro daria à formação do mundo desde as suas unidades constituintes mínimas. Dito de modo mais simples, o movimento natural de queda dos átomos em linha reta representaria a necessidade, ou a lei natural, ao passo que a declinação inesperada do átomo significaria a constatação de uma autodeterminação contingente que “possibilitaria o encontro dos átomos e a formação do mundo”. Albinati desembrulha isso da seguinte forma: “o interesse por Epicuro pode ser compreendido por ser esse o autor que, ao trabalhar a contraditoriedade do átomo em sua determinação natural – a queda em linha reta – e em sua autodeterminação, através do movimento da declinação, introduziria a liberdade na própria natureza” (Idem). Trocando em miúdos, mesmo dentro do reino da física, onde, grosso modo, encontraríamos o império da necessidade e a imposição de leis naturais minimamente previsíveis, também estaríamos face a face da contingência e da liberdade.
Para o nosso jovem revolucionário, a luta vitoriosa da burguesia liberal contra o antigo regime teria demonstrado a possibilidade histórica da “autoconsciência” e, consequentemente, da liberdade: “só agora chegou a época em que será possível entender os sistemas dos epicuristas, dos estoicos e dos céticos. Trata-se das filosofias da autoconsciência” (Marx, 2018, p. 25). Além de um bom entendimento do epicurismo supostamente eclipsar o bastião clerical da “providência”, já que ele deixaria uma porta entreaberta para se conceber a “imprevisibilidade” da contingência como algo que já existe na natureza sem a intervenção magistral de Deus, essa filosofia da autoconsciência poderia repor a perspectiva da liberdade por meio da autoconsciência em relação à imposição do que é dado e que se impõe pela força avassaladora da natureza.
Efetivamente, o terror trágico em reação a uma ameaça viral só pode emergir de uma consciência unificada pela oscilação entre os polos da contingência total, perante a qual nada ou quase nada se pode fazer a não ser desesperar-se e lamentar-se, e da necessidade extrema, perante a qual deve-se resignar. A inserção da contingência como momento necessário da experiência temporal seria, para esse idealismo, a própria condição de possibilidade de uma revolução entendida como a entrada em cena do “sujeito autoconsciente”: “um materialismo capaz de dar espaço à liberdade e à indeterminação, tanto no mundo físico quanto no mundo dos homens. Desta forma, o materialismo aparece como abertura à força de criação da contingência […] um pensamento materialista radicalmente contrário a toda determinação estrita e estabilidade. Abria-se, assim, o espaço às bases teóricas de um mundo no qual transformações e revolução são possíveis” (Safatle, 2018). Vejamos como o próprio Marx nos explica o que está em jogo.
“Epicuro assume um movimento triplo dos átomos no vácuo. Um dos movimentos é o da queda em linha reta; o outro consiste em que o átomo se desvia da linha reta; e o terceiro é posto pela repulsão dos muitos átomos. Demócrito tem de comum com Epicuro a assunção do primeiro e do último movimento, diferindo dele quanto à declinação do átomo da linha reta. […]
Cada corpo, na medida em que é concebido no movimento de queda, não passa, portanto, de um ponto em movimento, mais precisamente, um ponto sem autonomia, que renuncia à sua particularidade em uma existência bem determinada – a linha reta que [Epicuro] descreve. […] A consequência disso […] no caso […] dos átomos, seria, portanto, que eles estão em constante movimento, que não existem […] [os átomos], mas, muito antes, desaparecem na linha reta; pois a solidez do átomo ainda nem existe enquanto ele for compreendido apenas como caindo em linha reta. […] Além do mais, mesmo que não se queira assumir isso, o átomo, na medida em que seu movimento for uma linha reta, é determinado puramente pelo espaço, sendo-lhe prescrita uma existência relativa, e sua existência é puramente material. Porém, vimos que um dos aspectos no conceito do átomo é pura forma, negação de toda relatividade, a de ser toda relação com outra existência. […]
Ora, como Epicuro pode realizar a pura determinação formal do átomo, o conceito da pura particularidade, que nega toda a existência determinada por outra? […] a existência relativa com que se depara o átomo, a existência que ele tem de negar, é a linha reta. A negação imediata desse movimento é outro movimento e, portanto, igualmente concebido como espacial – a saber, a declinação da linha reta.
Os átomos são corpos puramente autônomos ou, muito antes, corpos pensados como tendo autonomia completa, como os corpos celestes. Por conseguinte, eles também se movimentam, não em linhas retas, mas em linhas inclinadas. O movimento da queda é o movimento da não autonomia.
Portanto, quando representou a materialidade do átomo em seu movimento em linha reta, Epicuro realizou a determinação de sua forma na declinação da linha reta; essas determinações contrapostas são representadas como movimentos frontalmente antagônicos.
Por conseguinte, Lucrécio afirma, com razão, que a declinação rompe com os [laços do destino]; e, por aplicar isso de imediato ao consciente, pode-se dizer do átomo que a declinação seria aquele algo em seu âmago que é capaz de contra-atacar e resistir.”
[Karl Marx, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro (São Paulo, Boitempo, 2018), p. 71 e p. 75-76]
Após listar os três movimentos do átomo, Marx destaca o segundo movimento, exatamente por ser esse o coração da filosofia epicurista e a sua principal diferença em relação ao atomismo de Demócrito – embora ambos aceitem (1) a queda em linha reta e a (3) repulsão dos muitos átomos, (2) o desvio da linha reta só é posto por Epicuro. Da perspectiva desse último, o átomo é indeterminável enquanto estiver no movimento em linha reta, isto é, aquele que vai de (1) a (3) sem passar por (2) – é o indiferenciável e diluído na linha reta, pois não conta com autonomia, ou “particularidade abstrata”, em relação à “existência bem determinada” da linha reta. Esse desaparecimento na linha reta ainda implicaria uma “existência relativa”, pois os corpos se diferenciariam apenas em relação ao vácuo, em suma, ele ainda não existiria para si mesmo – a dependência da matéria em relação ao espaço não constituiria ainda uma “existência formal”. É por isso que o que conferiria “pura forma” e “negação de toda relatividade” ao átomo seria precisamente “o desvio da linha reta”, isto é, a sua “relação com outra existência”. Em outras palavras, para o átomo alcançar uma inteligibilidade, uma imagem mesmo que conceitual ou uma representação (“pura determinação formal”), ele tem que negar a existência em que ele é indistinguível, produzindo “outro movimento” em oposição à trajetória da linha reta. Se por um lado é (1) a queda em linha reta que dota os átomos de materialidade, por outro lado (2) o desvio da linha reta proporciona-lhes uma determinação formal – e esta ocorre em contradição àquela. Dessa maneira, sendo os átomos, a um só tempo, “puramente autônomos” e a origem de toda matéria, não é de se surpreender que isso signifique que sua “particularidade abstrata”, sua “determinação formal”, seu “conceito”, seu “puro ser para si” possa igualmente ser encontrado em organizações mais complexas da matéria tal como a “autoconsciência subjetiva”.
Passemos novamente a palavra para Marx nos mostrar como ocorre a passagem da (3) repulsão dos muitos átomos para o “contrato social” e a “amizade”, ou, da física à política e à ética:
“Analisaremos agora a consequência direta da declinação do átomo. Nela está expresso que o átomo nega todo movimento e toda relação em que é determinado por outro como existência específica. Isso é representado de tal modo que o átomo abstrai da existência com que se depara e escapa a ela. Porém, o que está contido nisso, sua negação de toda relação com outra coisa, precisa ser realizado, posto em termos positivos. Isso só pode acontecer na medida em que a existência a que se refere não for diferente de si mesma e, portanto, for igualmente um átomo e, dado que ele mesmo é imediatamente determinado, muitos átomos. Assim, a repulsão dos muitos átomos é a realização necessária da [lei dos átomos] […] a declinação. Porém, pelo fato de que aqui toda determinação é posta como existência específica, a repulsão seria acrescentada como terceiro movimento aos dois anteriores. […] se os átomos são o único objeto de si mesmos, só podendo se referir a si mesmos e, portanto, em termos espaciais, chocar-se, negando toda a existência relativa deles, na qual eles se refeririam a outro; e essa existência relativa é, como vimos, seu movimento original, o da queda em linha reta. Portanto, eles só se chocam por declinação desse movimento. Não se trata aqui da simples fragmentação material.
[…] a particularidade imediatamente existente só se realiza, segundo seu conceito, na medida em que se refere a outro, diferente de si mesma, quando ela se depara com o outro também na forma de existência imediata. Assim, o ser humano só cessa de ser produto da natureza quando o outro a que ele se refere não é uma existência diferente, mas igualmente um ser humano individual […] Para que o ser humano enquanto ser humano se torne seu único objeto real, é preciso que ele tenha rompido dentro de si com sua existência relativa, com a força do desejo e da simples natureza. A repulsão é a primeira forma da autoconsciência; ela corresponde, por conseguinte à autoconsciência que se concebe como imediatamente existente, abstratamente individual.
Na repulsão […] aquilo a que ele se refere de fato são átomos, mas outros átomos. Se eu me comporto em relação a mim mesmo como se eu fosse um imediatamente outro, meu comportamento é material. É a máxima exterioridade que pode ser pensada.
[…] Em contraposição a Epicuro, Demócrito converte em movimento violento, em ato da necessidade cega, o que para aquele é realização do conceito de átomo. […] Ele apreende, portanto, na repulsão, apenas o lado material, a fragmentação, a mudança, mas não o lado ideal, segundo o qual nela é negada toda relação com outro e o movimento é posto como autodeterminação […] [Demócrito] pensa, de modo bem sensível, um só e o mesmo corpo dividido em muitos pelo espaço vazio, como o outro partido em pedaços. Na prática, ele não concebe o uno como conceito do átomo.
[…] A declinação epicurista do átomo modificou, portanto, toda a construção interna dos átomos, na medida em que, por meio dela, ganhou relevância a determinação da forma e foi realizada a contradição que reside no átomo. Por conseguinte, Epicuro foi o primeiro a captar ainda que de forma sensível, a essência da repulsão, ao passo que Demócrito tomou ciência apenas de sua existência material.
Por essa razão, encontramos em Epicuro a aplicação de formas mais concretas da repulsão; no plano político, é o contrato, no social, a amizade, enaltecida como a coisa mais elevada.”
[Karl Marx, Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro (São Paulo, Boitempo, 2018), p. 81-84.]
Primeiramente, pode-se ressaltar que o núcleo do raciocínio de Marx a respeito da diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e de Epicuro é encontrado na “autodeterminação” do átomo no seu movimento de externalização de uma “particularidade abstrata” – ele nega e escapa à determinação de outrem. Entretanto, pensado dialeticamente, tal movimento que, à primeira vista, aparece como pura negatividade é, na sua imediatidade, também positivo, pois aparece como autodeterminação em relação aos outros átomos igualmente entendidos como dotados de “particularidade abstrata”. A repulsão (o entrechoque dos átomos) seria a concretização da declinação (desvio dos átomos da linha reta), pois ela assinala o ímpeto de realização específica do átomo em franca oposição à indiferenciação produzida pelo movimento de queda em linha reta – o átomo se choca com a sua existência relativa e gera uma autodeterminação: “portanto, eles só se chocam por declinação desse movimento” natural ou impositivo. Transpondo isso para a relação entre ser humano e natureza, o que teríamos seria a individualidade pessoal, que busca afirmar-se para além dos instintos inatos ou naturais, e que só se formaliza quando ela se defronta com outra individualidade pessoal, chocando-se contra ela. Tal particularidade é certamente abstrata, já que não deixa de integrar um todo, mas “imediatamente existente”, principalmente a partir do momento em que nega aquele todo formado por individualidades não-diferentes e que se insurge contra a positividade da “força do desejo e da simples natureza”. Ao que tudo indica, o que parece estar em jogo aqui é uma leitura da declinação dos átomos pelas lentes da dialética hegeliana da “independência e dependência da consciência-de-si”: “a consciência-de-si é em si e para si quando e por que é em si para uma Outra; quer dizer, só é como algo reconhecido”, pois “para a consciência-de-si há uma outra consciência-de-si ou seja: ela veio para fora de si” (Hegel, 2002, p. 142-143). E é justamente esse “vir para fora de si” que possibilita a determinação formal dos átomos para além da materialidade em que se encontram.
Se para Demócrito a repulsão significa a “necessidade cega” de fora para dentro, para Epicuro ela representa a “realização do conceito de átomo”, pois ela assinalaria a sua autodeterminação de dentro para fora. É provavelmente graças a isso que Marx vai dizer que enquanto Demócrito era somente capaz de apreender a materialidade do átomo (a fragmentação, a mudança, em suma, a criação do mundo advinda do choque e da repulsão entre os átomos), Epicuro avança e nota o contrário desse processo, que é o seu momento ideal (“é negada toda relação com outro e o movimento é posto como autodeterminação”); nem é preciso ser recordado que para a dialética a unidade dos opostos é algo do maior interesse. Outra implicação dessa diferença entre Demócrito e Epicuro advém do fato do primeiro parecer enxergar o uno apenas na totalidade dos átomos, ao passo que o segundo insere o uno na própria estrutura interna do conceito de átomo. Desse modo, finalmente chegamos à conclusão do jovem Marx, e que tanto interessa-nos para pensar se, afinal, ainda é plausível falar em “agência humana” em meio a uma tragédia social tão avassaladora. Basicamente, a conclusão acerca do estudo do movimento de declinação do átomo da linha reta por parte de Epicuro demonstrou que apesar de Demócrito ter sido capaz de capturar a “existência material dos átomos”, foi Epicuro que identificou a essência da matéria por meio da sua contradição e, por isso mesmo, ele conseguiu tirar consequências políticas e sociais desse achado, afirmando que o “contrato” e a “amizade” entre indivíduos são, a um só tempo, negações da existência relacional das individualidades pessoais, pois os indivíduos se constituiriam para então firmar ou não alianças com outros indivíduos, e, portanto a condição de possibilidade da criação do político e do social.
Tendo dito isso – a saber, verificada a contingência desde o nível atômico – e usado isso para afirmar uma “particularidade abstrata”, “autoconsciência” ou “autodeterminação” subjetivas, observemos como esses postulados, bem como o desenvolvimento deles em bases radicalmente diferentes na obra posterior de Marx, ajudam-nos a refletir sobre a situação atual para além de conjecturas e impressões.
É precisamente nesse sentido que conceber, seja a pandemia da covid-19 ou as reações a ela associadas, como poucas coisas além de uma grande conspiração, significa certamente sucumbir a um dos principais efeitos da sociabilidade constrangida pelo sistema produtor de mercadorias, que é o fetichismo da relação entre os trabalhadores e o mundo que eles produzem – afinal de contas, o que pode o frágil corpo político do trabalhador perante uma guerra com armas biológicas? Que espécie de autoconsciência ou autodeterminação é possível dentro de um quadro de inteligência artificial? Para além do prazer narrativo que esse tipo de especulação ao redor de aporias gera – isso sem nem começar a mencionar os louros acadêmicos e a circulação mais fácil, tendo em vista a sintonia com a ideologia trágica dominante –, o que é que objetivamente se produz com tal superstição? Provavelmente uma nova naturalização do capitalismo pela via da transformação do processo sócio-histórico em uma tragédia inevitável e inerente à “condição humana”, cuja determinação é o engano e o sofrimento. Talvez importe menos se o vírus foi ou não criado em laboratório e propositalmente liberado para servir de cortina de fumaça para a crise estrutural do capitalismo do que as imprevisibilidades que uma operação dessa natureza sem sombra de dúvida ensejaria. Trocando em miúdos, a jaula aporética da escatologia das incontáveis declarações de “fim de linha”, como esperamos ter conseguido demonstrar, é uma visão de mundo fetichista e reificada, cuja retórica idealista salta de um extremo ao outro: uma celebração da pura contingência da aleatoriedade para a defesa intransigente da pura necessidade do destino e assim sucessivamente.
Isso pode ser dito porque se por um lado afirmar que trata-se de uma mera obra do acaso e totalmente alheia à potência do ser humano, significa cair em um “rebaixamento do acidental”, já que seríamos enxergados como simples joguetes de uma força onipotente, onisciente e externa a nós, por outro lado aceitar que estamos diante de um processo totalmente consciente de “desubstancialização” do capital, durante o qual uma razão superior livrar-se-ia racionalmente das populações excedentes através de um aparato científico-tecnológico inelutável, equivaleria a reiterar que o mundo é pura necessidade, que não há ponto-cego no desenvolvimento histórico e, no limite, de uma “secularização do destino”. Em suma, em ambos os polos fica decretado, até última ordem, o fim da liberdade, da autoconsciência e a naturalização do controle social e político por parte do grande capital.
A trajetória de Marx nos fornece pistas em relação a como lidar com esses impasses, que brotam, não totalmente por acaso, de momentos propícios a superstições acerca da perenidade capitalista e do fim das revoluções. Ao combater a ideologia alemã, ou seja, a filosofia alemã, Marx também desmonta pressupostos messiânicos ou milenaristas a respeito do desenvolvimento sócio-histórico e a sua principal arma começa a deixar de ser a filosofia para aos poucos se transformar na crítica da economia política – a determinação conceitual da sociedade burguesa. A superação, ou revolução, era disputada de modo a reduzir o espaço não apenas de seus traços teológicos (redenção, utopia etc.), mas fundamentalmente de seus aspectos idealistas ativos (autoconsciência e autodeterminação subjetivas, isto é, dos sujeitos, dos indivíduos). Além disso, centra-se fogo na concepção de história como pura catástrofe e pura negatividade, que convenientemente joga na lata do lixo qualquer ideia de desenvolvimento: “o comunismo não é […] um estado de coisas que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual” (A ideologia alemã, p. 38).
Vale a pena observar como isso acontece na própria crítica, porque a transição do Marx de 1841 para aquele de 1846 é bastante eloquente:
“O comunismo distingue-se de todos os movimentos anteriores porque revoluciona os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio precedentes e porque pela primeira vez aborda conscientemente todos os pressupostos naturais como criação dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados. Sua organização é, por isso, essencialmente econômica, a produção material das condições dessa associação; ele faz das condições existentes as condições da associação. […] Desse modo, os comunistas tratam, praticamente, as condições criadas pela produção e pelo intercâmbio precedentes como condições inorgânicas […] sem crer que essas condições eram inorgânicas para os indivíduos que as criaram. A diferença entre indivíduo pessoal e indivíduo acidental não é uma distinção conceitual, mas um fato histórico […] por exemplo o estamento como algo acidental para o indivíduo do século XVIII […] É uma distinção que […] cada época faz por si mesma […] não segundo o conceito, mas forçada pelas colisões materiais da vida. O que, em oposição à época anterior, parece acidental à época posterior – o mesmo vale também para os elementos que foram transmitidos da época anterior à posterior – é uma forma de intercâmbio que corresponde a um determinado estágio de desenvolvimento das forças produtivas. […] As condições sob as quais os indivíduos intercambiam uns com os outros, enquanto não surge a contradição, são condições inerentes à sua individualidade e não algo externo a eles, condições sob as quais esses indivíduos determinados, que existem sob determinadas relações, podem produzir sua vida material e tudo o que com ela se relaciona; são, portanto, as condições de sua autoatividade e produzidas por essa autoatividade. A condição determinada sob a qual eles produzem corresponde, assim, enquanto não surge a contradição, à sua real condicionalidade, à sua existência unilateral, unilateralidade que se mostra apenas com o surgimento da contradição e que, portanto, existe somente para os pósteros. Assim, essa condição aparece como um entrave acidental e a consciência de que ela é um entrave é também furtivamente introduzida na época anterior.”
[Karl Marx e Friedrich Engels, A ideologia alemã (São Paulo, Boitempo, 2007), p. 67-68.]
A palavra-chave acima é o adjetivo “acidental” (zufällig, no original em alemão). Marx está tentando, primeiramente, chamar nossa atenção para a tendência da filosofia em geral, e a alemã em particular, de confundir uma certa prática histórica como algo refletido em vez de uma realidade transmitida por indivíduos que vieram antes e operada por indivíduos que vieram depois. A ênfase, embora ainda difusa, já está na conciliação entre agência e condicionamento. O exemplo dado mais acima – sobre a dificuldade de se obter uma consciência histórica a respeito das relações de produção capitalistas na virada do século XX para o XXI –, é algo percebido como contrafactual, justamente porque essas relações são vivenciadas como “acaso”, “coincidência” ou “acidente” – em suma, elas não são vistas como relações erigidas pelos seres humanos que viveram anteriormente. Daí Marx fazer questão de ressaltar que o comunismo – concebido como superação dialética do capitalismo – manifestaria um sociometabolismo que pela primeira vez abordaria “conscientemente todos os pressupostos naturais como criação dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados”. Ou seja, o comunismo não seria um Ideal para o qual a prática deveria ser orientada, mas, em termos gerais, uma organização das relações de produção e de intercâmbio material através da qual ficassem explicitados os seus pressupostos nas próprias condições de associação prática dos indivíduos – aqui os fundadores do materialismo histórico rompem com o pressuposto filosófico de que a atividade mais humana é a teórica, precisamente ao afirmar que práticas associativas e condições de produção teriam que formar um todo e esse seria um traço distintivo de suma importância na superação real do capitalismo e da sociedade de classes.
É possível especular se não é exatamente a dinâmica generalizada do fetiche da mercadoria e da reificação – que estranha produtores do mundo que produzem – que faz com que uma pandemia possa irromper como uma grande tragédia; entendida como pouca coisa além do que, de um lado, fatalismo, e de outro, conspiracionismo. Vírus, doença, morte e guerra, dentro do quadro da precariedade de condições sanitárias e do rápido colapso de sistemas de saúde nacionais inteiros, são enxergados como a chegada totalmente “acidental” ou completamente “manipulada” de uma dada desordem, que desorganiza as relações de produção e de intercâmbio material, que consolidadaram-se, é sempre bom lembrar, quase que por efeito de mágica. A bem da verdade, até a emergência de uma contradição tão avassaladora como a da pandemia da covid-19, tais relações eram dificilmente percebidas como resultados de tomadas de decisão de um sistema que tem sido conscientemente gerido – aliás, o “corte” realizado por parte de Marx em A ideologia alemã baseia-se na compreensão de que a filosofia teria como horizonte a “autoconsciência subjetiva”, enquanto a desautomatização de fato das relações reais teria como precondição a experiência prática da contradição daquilo que ele chama de condicionalidade unilateral herdada pelas sucessivas gerações. Isto é, de modo semelhante como as relações de produção e de intercâmbio material são vivenciadas como “autoatividades” (ou automatismo social), obras do acaso ou da indiferença do real, que se cristalizaram quase que espontaneamente daquela maneira, mas que poderiam muito bem ter se solidificado de qualquer outra, as contradições – a confluência entre uma ameaça viral e uma depressão econômica, por exemplo – de um modo de produção racional e cientificamente articulado são rapidamente conceituadas como tragédias sem agentes pessoais ou organizacionais. Mesmo quando a contradição do modo de vida é compreendida através do outro polo da ideologia trágica dominante – em vez de pura contingência, pura necessidade –, ocorre uma mistificação análoga, pois o mercado de armas biológicas ou de identificação facial, por exemplo, são autonomizados e normalizados, projetando uma figuração essencialmente “distópica” da realidade a partir da qual a impotência do ser humano diante da suposta racionalidade de meios e fins funcionaria como imperativo inabalável de uma condição humana imutável. Em resumo, independentemente das ideias abstratas que podem porventura ser propaladas, a consequência política objetiva é a “resignação trágica” – extremamente conveniente do ponto de vista dos interesses dominantes.
Efetivamente, é da falta de explicitação dos pressupostos da sociabilidade em geral, e da capitalista em particular, que emerge “o ato de separar […] a ação humana da nossa compreensão da vida política e social” (Williams, 2002, p. 73). Dito de outro jeito, esse “rebaixamento do acidente tem raízes mais profundas” e elas podem começar a ser pensadas a partir da seguinte pergunta retórica: “que tipo de sociedade é essa […] que não encontra nenhum conteúdo ou ação ética em eventos tais como guerra, fome, trabalho, trânsito e política, mas que, em vez disso, os trata como puras contingências?” (Eagleton, 2013, p. 181). Nesse sentido, a ideia de tragédia, que se estrutura sob as condições de produção e de intercâmbio capitalistas, parece ter cumprido um papel decisivo “nos conflitos internos da cultura burguesa”, especialmente porque, entre outras coisas, realizou o cultivo meticuloso da noção de que “somos livres por dentro, mas por fora empiricamente acorrentados” (Ibid., p. 173). Esse longo processo de aburguesamento do trágico, por esse ângulo, se traduziria em uma espécie de “saneamento do sofrimento” e de ocultamento do caráter sistêmico das contradições, já que ela pode tanto ser a pura contingência do modus operandi de um mundo e de uma condição humana igualmente caóticos, arbitrários e sem sentido quanto a pura necessidade da debilidade do sujeito em face do poder implacável do destino. Portanto, ao que tudo indica, entender dialeticamente a tragicidade de um fenômeno, evento ou processo sinaliza o entendimento de que não há nada, nem no céu nem na terra, que seja unicamente contingente ou necessário.
A relação entre consciência histórica e tragédia ainda possui mais uma dimensão que vale a pena ser mencionada. Embora a parcela mais significativa da moderna teoria do trágico tenha sido articulada em reação à sensação de “desordem social” que a Revolução Industrial e a Revolução Francesa ocasionaram e, portanto, pertença crucialmente ao universo filosófico oitocentista, foi somente a partir da virada do século XIX para o XX que a tragédia moderna ganhou seus contornos mais definidos. De fato, o que parece estar na raiz da experiência trágica moderna é a combinação entre “uma perdida crença na imortalidade com uma nova convicção de imortalidade, ou uma perdida crença no destino com uma nova convicção de indiferença” (Williams, 2002, p. 89). Se levarmos as lições de Marx em consideração, notaremos que uma das estruturações da tragédia em nossa própria cultura está na complexa conexão entre tragédia e revolução: a crise social generalizada, que antecede, permeia e persiste mesmo após uma era de revoluções, é objetivamente vivenciada como trágica, ou seja, uma revolução na contemporaneidade é confundida com uma tragédia, pois “da mesma forma que reduzimos a tragédia à morte do herói, reduzimos também a revolução às suas crises de violência e desordem” (Ibid., 93). A percepção “acidental” à qual Marx se referia, desse modo, não parece se limitar à totalidade das relações de produção, mas avança inclusive em direção à percepção da desarmonia que eventualmente se manifesta mais ostensivamente, já que é muito mais fácil para uma geração pós-revolucionária obter uma configuração épica, narrativa ou mais processual de uma revolução bem-sucedida do que quem a está vivendo. Algo parecido ocorre com uma pandemia como a que estamos vivendo – as respostas irracionalistas a ela são frutos da quase ausência de uma maior transparência e implicação com conhecimento de causa em relação não apenas à organização do modo de produção capitalista, mas também à história da luta pela sobrevivência dos seres humanos como um todo.
A tragédia como cativeiro das forças produtivas
Caso avancemos, vamos de imediato verificar como a trajetória de Marx, ao menos no que tange ao papel da ação humana na história, nos permite obter um entendimento mais completo do processo trágico de lenta decomposição do capitalismo em que nos encontramos. Observemos, ainda em relação àquele trecho de A ideologia alemã, que a centralidade da operação de visualização e de explicação da autoconsciência subjetiva (ou do sujeito) é deslocada para uma ênfase na consciência prática da totalidade da produção material da existência, isto é, das condições da associação de produtores que formam todas as relações de produção e de intercâmbio. Além disso, é digno de nota, e talvez isso seja da maior importância, que as condições realmente existentes de produção são enxergadas tragicamente, isto é, como o estado natural (necessidade) ou acidental (contingência) aparentemente desconectado de uma processualidade sócio-histórica dialética e que comportava ambos – a tragédia vista como essência ou condição humana não se restringe a ser o resultado de um estranhamento entre produtores e os produtos da sua prática e intercâmbio materiais, mas também da organizações dessa prática vital. Tal aceitação de uma autonomização das relações de produção para além de qualquer controle por parte de seus agentes, ou produtores, é percebida como trágica até o momento em que a contradição, ou a qualidade, da experiência do tempo se impõe e os força a tomar consciência das suas condições como produtores na própria prática de continuar a produzir e a intercambiar para continuar a existir: “tudo o que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são levados finalmente a encarar sem ilusões a sua posição social e as suas relações com os outros homens” (Manifesto Comunista, p. 43). Esse já é o Marx às portas das revoluções de 1848 e que astutamente nota que a contradição objetiva do sistema de dominação impõe o encarar a totalidade das relações sem imaginá-las como acidentais ou eternas, em suma, sem ilusões, sejam elas de ordem religiosa ou filosófica.
O Marx de 1852 articula aquelas noções de “autoconsciência subjetiva” da década anterior em termos ainda mais objetivos: “os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas como se encontram” (O 18 de brumário de Luís Bonaparte, 2014, p. 25). Aqui, mais uma vez, a unilateralidade da contingência ou necessidade é indiretamente evocada para rapidamente ser rejeitada por uma dialética entre agência e condicionamento. Com efeito, outro sinal de um afastamento em relação ao idealismo de juventude pode ser encontrado na substituição da categoria de “tempo” por uma mais precisa e científica, aquela de “história”. Embora sejam os seres humanos eles mesmos que façam a sua própria história, eles não são seres abstratos, mas determinados pela totalidade das circunstâncias que encontraram. Isso equivale a dizer que por mais autoconsciente que sejamos, o mundo está longe de ser vontade e representação dessa autoconsciência; estamos longe de ser indivíduos autossuficientes cuja potência é capaz de condicionar completamente as condições da existência – isso equivale a afirmar que por mais poderosa que uma classe seja e por mais desenvolvida uma tecnologia seja, a contradição mais cedo ou mais tarde se impõe e a instabilidade é reinserida. O processo real, vale recordar, não ocorre apenas na queda em linha reta determinada dos átomos, mas também a partir da declinação incondicionada que desvia os átomos da sua trajetória predeterminada. O que está em jogo aqui é, de um ponto de vista político, nada mais nada menos, do que uma afirmação da perenidade da liberdade através do preenchimento do seu conteúdo pela via da própria experiência prática do conjunto dos produtores com as verdades e as contradições do movimento da história.
Voltemos nossa atenção, por fim, à uma passagem da última fase de Marx:
“O resultado geral a que cheguei […] pode ser formulado, resumidamente, assim: na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social.”
[Karl Marx, Contribuição à crítica da economia política (São Paulo, Expressão Popular, 2009), p. 47]
A tomada de consciência, portanto, não é um ato meramente do espírito, mas fundamentalmente da ordem da atividade prático-crítica de organizar as precondições do próprio ser social, pois trata-se de uma consciência de classe obtida na prática da luta política. O ato fundante não é o verbo, a autodeterminação ou qualquer outra abstração, mas a atividade laboral de produção das dimensões mais imediatas (base) e mediadas (superestrutura) da existência. Daí a ênfase tão exuberante na “produção social da própria existência”, a qual envolve ao menos duas esferas em forte sintonia, a saber, aquela da totalidade das relações de produção e a outra refere-se à formalização, ou, à consciência dominante a respeito daquela totalidade das relações de produção. Da maneira como está posta, a hierarquização da metáfora envolvendo base e superestrutura parece sugerir menos uma falta de importância da segunda em relação à primeira do que uma dimensão de ordenação. Em outros termos, a materialidade certamente precede a formalização, mas é essa autoconsciência que permite antecipar ou extrapolar determinadas condições de um estágio de desenvolvimento das forças produtivas. As duas imagens da metáfora, na verdade, compõem uma totalidade; isso equivale a dizer que elas são tão facilmente distinguíveis e separáveis apenas analiticamente. Aqui novamente nos encontramos com aquilo que temos visto desde o estudo sobre os átomos – a unidade entre condicionado e incondicionado.
Simultaneamente, ainda se preserva a linguagem filosófica do “ser”, todavia, faz-se importante recordar o alerta de Hegel contra o dualismo entre “ser”, genericamente concebido, e o “nada”: o “ser, puro ser – sem nenhuma determinação ulterior. Em sua imediatidade indeterminada ele é apenas igual a si mesmo e não desigual diante de um outro, não possui nenhuma diversidade no interior de si nem para o exterior”. E continua Hegel: o “ser, puro ser” não seria “apreendido em sua pureza […] ele é a pura indeterminidade e o vazio. – Não há nada a intuir nele”, porque “o ser, o imediato indeterminado é de fato o nada e nem mais nem menos do que nada” (2011, p. 71). É possível que foi graças à precaução de não cair naquela armadilha idealista da dicotomia entre “ser” e “nada” que Marx concedeu ao “ser” a sua única qualidade ou determinação fundante, o “social” – não se trata de um ser genérico do qual nada possa ser intuído, mas um específico a partir do qual toda a vida humana advém. Diga-se de passagem, que essa é uma linha de continuidade que vai desde o Marx da tese sobre os atomistas até esse de 1859: de modo semelhante que o átomo só pode afirmar sua autodeterminação em relação a outros átomos, o indivíduo só pode se isolar socialmente.
Aqui há uma proposição incontornável para o marxismo e qualquer materialismo: “ser social que determina a sua consciência”. Não se pode perder de vista, contudo, que um dos termos-chave da proposição de Marx – determinar (o verbo bestimmen em alemão) – deve ser compreendido como “fixar limites e exercer pressões” (Williams, 2011, p. 44), tanto para exorcizar o materialismo marxista do determinismo da “secularização do destino”, quanto para livrá-lo da abstração da visão de mundo como pura contingência, indiferença ou aleatoriedade, que se livra de toda e qualquer ideia de determinação ou de condicionamento. Mais: além da contradição entre forças produtivas materiais e relações de produção existentes ecoar aquele processo de desvio do átomo da queda em linha reta, a época de revolução social pode ser vista como uma espécie de equivalente, ainda germinal, da energia criadora liberada pela repulsão dos átomos. Ou seja, para o materialismo histórico e dialético, determinação não é o mesmo que determinismo e liberdade não é o mesmo que incondicionado. Como esperamos ter conseguido argumentar desde a reconstrução da leitura de Marx dos atomistas antigos, necessidade e contingência são duas expressões da totalidade do modo de funcionamento do real.
Evidentemente um período histórico como o nosso – que virtualmente conhece uma invenção como o acelerador de partículas, o qual é capaz de manipular elementos subatômicos; que transita para a física quântica e para um melhor entendimento do que se tem chamado informalmente de “partícula de deus” –, não pode de maneira alguma se contentar com aquele atomismo antigo, mesmo que lido pelas lentes do jovem Marx. A agonia e o desespero, que assolam cada vez mais a humanidade, são manifestações de um momento de contradição flagrante entre a potencialidade do desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção realmente existentes. Nesse sentido, se é correto dizer que há quase duzentos anos a burguesia abandonou sua posição heroica e socialmente progressista, também é verdadeiro que ela se torna crescentemente reacionária, representa um entrave ao desenvolvimento e a possibilidade da extinção da vida humana no planeta terra. Com efeito, a única explicação plausível para a persistência do pior do irracionalismo teológico, que absurdamente convive com a disseminação diminuta de aceleradores de partículas (afinal, a propriedade privada da produção tecnológico-científica é um dado estruturante desse sistema), só pode ser encontrada na cumplicidade orgânica entre essas classes fetichistas. Portanto, a superação dialética da tragédia moderna (ou, capitalista), necessariamente implica a eliminação das classes fetichistas e a destruição definitiva do cativeiro das forças produtivas. Somente a associação organizada e consciente de produtores pode não apenas jogar na lata de lixo da história a atual entropia social articulada, que é tragicamente concebida, como também abrir as comportas da consciência humana para praticar toda a potencialidade represada pelas relações de produção realmente existentes e pelo atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas.
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Referências
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EAGLETON, Terry. Doce violência: A ideia do trágico. Trad. Alzira Allegro. São Paulo: Editora Unesp, 2013. [2003]
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2002. [1807]
______. Ciência da lógica: (excertos). Trad. Marco Aurélio Werle. Barcarolla, 2011. [1812-1816]
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Fernando Costa Mattos. Petrópolis: Vozes, 2012. [1781]
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MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo
alemão em seus diferentes profetas 1845-1846. Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.
______. Manifesto comunista. Trad. Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 2010. [1848]
SAFATLE, Vladimir. “Materialismo e contingência” em Folha de S. Paulo, 2018.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. Trad. Betina Bischof. São Paulo: Cosac Naify, 2002. [1966]
______. “Base e superestrutura na teoria cultural marxista” em Cultura e materialismo. Trad. André Glaser. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 43-68.
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Lindberg Campos tem formação em letras e filosofia, e normalmente ministra cursos e escreve sobre cultura brasileira, marxismo cultural, Virginia Woolf e Bertolt Brecht.
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