As falsas premissas de Guedes e Bolsonaro sobre a crise da Covid-19

Bolsonaro e Guedes persistem apegados ao dogmatismo neoliberal e neoclássico, mesmo diante do risco de morte e colapso gerado pela crise do novo coronavírus.

Por Guilherme Leite Gonçalves.

Em 2008, quando um dos maiores bancos de investimento do planeta, o Lehman Brothers, quebrou, desencadeou um tipo de crise que até agora não se esgotou. O estouro da bolha hipotecária norte-americana revelou uma economia global financeirizada, cujo principal efeito foi a superprodução de títulos mobiliários baseada então no endividamento das famílias trabalhadoras. Como se sabe, a solução imposta injetou enorme quantidade de dinheiro no mercado financeiro para evitar seu colapso. A maior parte desta liquidez, no entanto, conforme Yanis Varoufakis e Eric Tourssaint, não tem sido direcionada para investimentos produtivos, mas para recompra de ações, isto é, para fins especulativos. Neste sentido, quando o Covid-19 contaminou os mercados e as bolsas afundaram, ele foi o detonador da explosão de uma bolha que já existia anos antes.

Os anos de 2008 e 2020 confirmam, assim, diagnóstico que já circulava entre economistas marxistas: a acumulação neoliberal compreende uma dinâmica de financeirização, na qual o capital portador de juros se coloca no centro das relações sociais e se impõe sobre o processo produtivo para absorvê-lo, remunerando uma classe de rentistas que se encontra associada ao capital industrial.

A dificuldade do mainstream em dar conta dos desafios colocados pelas crises do Lehmann Brothers e da Covid-19 tem gerado desconforto. “Como vocês não viram que isso iria acontecer?”, perguntou atônita a rainha Elisabeth II a professores neoclássicos da London School of Economics, em junho de 2009. Do mesmo modo, desde que a pandemia do coronavírus se alastrou, orientações conservadoras e liberais têm reivindicado um “keynesianismo de emergência” com aumento de investimentos públicos, taxação de grandes fortunas e bancos, renda mínima universal, suspensão de contas de água, luz e aluguel, como instrumento para proteger vidas e garantir o trabalho e a própria produção.

Bolsonaro e Guedes persistem apegados ao dogmatismo neoliberal e neoclássico, mesmo diante do risco de morte e colapso gerado pela crise da Covid-19. Esse apego tem menos relação com a guerra cultural de Olavo de Carvalho do que com as orientações do Instituto Mises. O think-tank ultraliberal tem questionado o aumento dos gastos do governo e defendido a manutenção das atividades econômicas tais como antes da eclosão da pandemiaa livre oscilação dos preços do álcool em gel e das máscaras e a suspensão de políticas expansionistas fiscais para evitar inflação (que temem muito mais do que ao vírus). Em seus textos, aparece a ideia de que o pânico criado pelos governos deve piorar a doença e, na medida em que a política paralisa a economia, pode levar ao fim da divisão internacional do trabalho. Esse sim, para eles, seria a completa destruição da civilização. No lugar do keynesianismo de emergência, defendem que as empresas devem ser desoneradas de tributos e possam continuar a agir livremente, como remédio para a queda das bolsas e da produção. Com outras palavras, evidentemente mais toscas, Bolsonaro e Guedes não dizem (e fazem) o mesmo?

Diferentemente do tom vulgar, o Instituto Mises tem recorrido às teses da Escola Austríaca, sobretudo à sua teoria subjetiva do valor, para justificar seu diagnóstico e política para a crise do Covid-19. Dentre os diversos aportes marxistas disponíveis para criticar e rechaçar essa perspectiva neoclássica não há dúvidas que o mais atual é a teoria da crise. Sua potência reside inclusive na sua capacidade de mobilização de dados macros capazes de questionar a validade das hipóteses levantadas pelos ultraliberais. Já existem pesquisas nesse sentido. Pretendo aqui percorrer outro caminho: criticar os fundamentos que permitem ao Instituto Mises, Bolsonaro e Guedes persistir no dogma neoliberal.

Para tanto, vou reconstruir uma obra essencial para a compreensão da dominação financeira e da Escola Austríaca, sua expressão intelectual. A mesma escola que o Instituto Mises reivindica como definidora de seus princípios. Tal obra é o livro A miséria da teoria subjetiva do valor (a economia política do rentista), do intelectual e revolucionário russo Nikolai Bukharin (disponível em inglês aqui e em alemão aqui).

Concluída no outono europeu de 1914, a obra é uma crítica da economia política liberal pós-Marx ou, se preferir, uma crítica da economia política neoclássica. Bukharin a escreveu aos 26 anos em meio ao exílio e ameaças de deportação e prisão. Isso não o impediu de seguir na Universidade de Viena o curso de um dos principais autores da Escola Austríaca, Eugen Böhm Ritter von Bawerk. Conhecido sem as referências cavalheirescas, Böhm-Bawerk foi crítico obstinado do pensamento econômico marxista e um dos formuladores da teoria subjetiva do valor, uma concepção marginalista do valor, oposta à teoria do valor-trabalho de Marx. Seu nome, teses e obras são uma constante nos textos publicados pelo Instituto Mises.

O argumento de Bukharin está organizado em três eixos: (a) demonstração das contradições internas do pensamento de Böhm-Bawerk, (b) defesa das ideias de Marx e (c) desvelamento dos interesses que constituem a concepção marginalista. A teoria do valor é colocada no centro de sua reflexão. Dela Bukharin retira o critério da crítica. Ele aceita a premissa compartilhada pelos neoclássicos de que o valor regula as trocas e serve para explicar os preços, bem como de que, embora não se restrinja a isso, a teoria do valor é a base imediata de uma teoria dos preços. Dessa premissa Bukharin conclui que, se um determinado conceito de valor não consegue desvendar a razão dos preços (por suas falhas lógicas), deve ser rechaçado. Este é o caso da teoria de Böhm-Bawerk?

Crítica à teoria subjetiva do valor

Conforme a orientação geral da Escola Austríaca, os motivos dos indivíduos constituem a base da análise de Böhm-Bawerk; para ele, o valor é considerado resultado de avaliações individuais. Tais avaliações são formadas tanto por critérios psicológicos do sujeito (leis do valor subjetivo) que, conforme apreciação de seu bem-estar, atribui importância a um bem, quanto por aspectos do próprio bem que podem causar um resultado, efeito ou interesse (lei do valor objetivo). Dentre esses aspectos está o valor objetivo de troca: a propriedade que uma mercadoria possui de ser intercambiada por outras.

Segundo Böhm-Bawerk, este último depende da definição da utilidade de um bem e, portanto, também invoca uma avaliação subjetiva. Essa noção de utilidade confere ao valor subjetivo e objetivo a mesma gênese, constituída, porém, sob a base da prevalência do juízo individual. Embora o conceito de valor importe duas categorias, o valor subjetivo expressa uma grandeza fundamental, enquanto o objetivo, apenas uma grandeza derivada. Se transposto para a questão do preço, este último enquanto fenômeno social tem como referência um conceito de valor preponderantemente determinado pela psicologia individual. Isto é, para Böhm-Bawerk, os preços são considerados resultado de avaliações atomísticas.

Bukharin encontra na definição de valor objetivo de troca a primeira contradição da tese de Böhm-Bawerk. Ao considerar o valor de troca propriedade objetiva de um bem, tal valor é equiparado a características materiais, físicas e químicas. Com isso, a própria primazia do fator “avaliação subjetiva” é questionada e a representação de um fenômeno, que deveria ser determinado por juízos individuais, é identificada com seu elemento técnico: seu “efeito utilitário”. Tal efeito, no entanto, não poderia ser autônomo, pois gerado por fontes imateriais: as apreciações singulares dos atores econômicos. Nesse sentido, Bukharin conclui que Böhm-Bawerk só poderia igualar o valor de troca às propriedades físicas e químicas dos bens se negasse que o valor objetivo é resultado de avaliações subjetivas, o que implicaria rejeitar suas próprias premissas.

O princípio-vetor do valor para a Escola Austríaca é a utilidade. Isto é: a disponibilidade de bens destinados a satisfazer uma necessidade é a medida adotada de valoração. Quanto mais indispensável for o objeto ou insuficiente sua reserva disponível, maior seu valor. A avaliação subjetiva de um bem depende, assim, da variedade e urgência das necessidades que ele pode saciar. Trata-se de saber sua importância para o bem-estar do sujeito e o quanto de satisfação individual ocorre à medida que se possui o respectivo bem.

A Escola Austríaca, sobretudo Carl Menger, constrói uma escala de necessidades em que a grandeza do valor se mede pela relevância da necessidade parcial menos importante. É preciso conhecer a intensidade da última necessidade satisfeita para apreender o grau de utilidade restante do bem. Isso implica apreender o impacto da escassez e o grau de satisfação gerado pela aquisição da unidade adicional do produto. Quanto menor a disponibilidade, maior a intensidade da satisfação. O valor é, assim, determinado pelo tamanho da utilidade marginal. Para Böhm-Bawerk, a utilidade não apenas é condição do valor, mas também determina seu grau e, com isso, influencia a forma como se estabelece os preços das mercadorias.

Bukharin mostra que esse conceito contém uma noção de produção, baseada na satisfação das necessidades dos produtores. Esse postulado depende, porém, do reconhecimento do papel do consumo. Na medida em que o consumo não consegue exaurir os produtos excedentes, a produção se volta para a satisfação das necessidades do mercado. Mas mercados são estruturas setorializadas com limites físicos, temporais, jurídicos, sociais etc. Quando os excedentes já não são absorvidos por uma economia particular, precisam da abertura de novas. Nesse passo, se impõe uma produção maciça não para os produtores, mas para os mercados, que recebem a totalidade das mercadorias.

Segundo Bukharin, a consequência do desenvolvimento do modo de produção moderno é a diminuição da importância das avaliações subjetivas fundadas na utilidade. Isto é: o excedente perde seu sentido de valor de uso, pois seu valor passa a ser mensurado em comparação com outras mercadorias. No caso da produção maciça, emerge uma medida ainda mais abstrata: o valor é definido pela grandeza virtual do total de mercadorias. Essa grandeza reflete a evolução do preço e se torna fator de orientação das trocas subsequentes. Com isso, o valor de uso subjetivo não pode servir para a análise dos preços. A utilidade de uma mercadoria é apenas premissa para que ela seja intercambiada, não determina a magnitude de seu valor. Para tanto, é necessário pensar com Marx em seu valor de troca.

O individualismo econômico de Böhm-Bawerk não consegue, assim, perceber que o valor de uma mercadoria é definido por seu caráter social, incluído a divisão desigual do trabalho que o constitui. Dessa perspectiva, embora os neoclássicos neguem o conceito marxiano de valor de troca, fica claro porque, como dito acima, eles (leia-se: o Instituto Mises) temem que a destruição da divisão internacional do trabalho possa ser o fim da civilização. A proteção dessas condições desiguais é o objetivo de sua política para as crises e para além delas.

Sociologia do rentista

Além de demonstrar as contradições internas, Bukharin faz uma caracterização sociológica da base social que permitiu o surgimento da Escola Austríaca. Primeiro, mostra que a expansão da acumulação do capital levou à criação de diferentes formas de crédito, permitindo que a mais-valia passasse a ser apropriada por uma fração da burguesia que não tem relação direta com a produção: os rentistas. Bukharin demonstra que, embora essa fração se amplie com a importância da bolsa de valores, evita os riscos das operações financeiras e, em nome de rendas seguras, também busca especular com fundos públicos. Os rentistas tornam-se, assim, duplamente parasitários: da atividade produtiva e do Estado. Isso também explica sua dependência quanto aos bancos centrais nas crises ou fora delas.

A participação do rentista na vida econômica se resume à esfera do consumo. Tende, portanto, a se satisfazer com produtos de luxo, fechando-se para a cultura e o conhecimento. Segundo Bukharin, “o consumidor rentista só pensa em cavalos de corrida, tapeçarias de luxo, charutos aromáticos, vinhos finos”. Nesse sentido, sua “sociedade de consumo” é o oposto do projeto moderno das ciências humanas destinado ao desenvolvimento da personalidade por meio da formação intelectual. Mas também é pouco afeita às ciências exatas e naturais. Sem convívio com a produção e o trabalho, o rentista não precisa de modelos de longo prazo ou planejamentos. Busca apenas proteção diante dos riscos nas negociações da bolsa de valores. Pode, assim, em uma crise (como a atual), destruir as ciências sociais e descartar recomendações das ciências naturais. Sua preocupação é com as apostas do mercado. Nada diferente do que tem sido a campanha bolsonarista pela retomada das atividades econômicas em meio à pandemia da Covid-19.

Esse distanciamento do saber humano e da atividade produtiva torna o rentista mais individualista do que o resto da burguesia. É um “grosseiro” diante da questão social. Sua visão de mundo é pouco orientada ao futuro e à provisão. Ele opera pelo desejo de satisfazer seus interesses imediatos e aproveitar o momento, possuindo um campo visual anti-histórico e limitado ao presente. Despreocupado com a continuidade da vida social, o rentista experimenta apenas o carpe diem.

O medo da mudança, atrelado ao temor de protestos que podem implicar transformações no status quo e perdas de rendas, fazem do rentista um profundo conservador. É um grupo avesso a outros valores: de classe, gênero ou raça. Por isso, estimula práticas higienistas e segregacionistas, que, ao expurgarem grupos oprimidos (sobretudo a população negra), tornam os ambientes mais homogêneos para seu consumo exclusivo. O que diz Guedes? Que empregadas domésticas não devem ir à Disneylândia. E suas propostas para a crise da Covid-19? Não pagamento de salários por 4 meses e renda básica emergencial de R$ 200. Setores mais vulneráveis economicamente não poderiam parar de trabalhar, não obstante os perigos para sua saúde. Poderiam, isto sim, ser isolados em espaços de sobretrabalho, criando ainda mais valor para que seja apropriado por rendas.

Para Bukharin, a Escola Austríaca é a expressão intelectual dos três traços da “consciência social do rentista”: consumismo, individualismo e imediatismo. O primeiro reflete-se no conceito de valor baseado na noção de utilidade. O individualismo e o medo do futuro encontram respaldo no método “subjetivo-psicológico”, que se manifesta na ideia de avaliação subjetiva do agente econômico (e não nas pressões sociais por um produto, como na atual questão do álcool gel), na qual se recupera o hipotético Crusoé para se inferir a natureza da satisfação pessoal de uma necessidade de modo a generalizar uma ideia de preço, que, no fundo, é resultado de conflitos sociais. A Escola Austríaca constrói cenários fictícios de isolamento do indivíduo para expressar a utilidade supostamente universal de um bem, nunca parte das condições dos atores reais. Mas é curioso que, quando o interesse coletivo exige isolamento (como na atual crise), os discípulos da Escola Austríaca não o aceitam como método para pensar a economia a longo prazo. Neste caso, teriam que substituir o carpe diem pela segurança da vida, do trabalho e da produção.

Note-se que essa consciência social do rentista atravessa as soluções bolsonaristas para a crise da Covid-19. Por que, diante desse cenário, o Instituto Mises reivindica a Escola Austríaca? Qual sua utilidade em um contexto tão agudo de crise como a atual? Substituir vontade geral por interesse privado e permitir que o tipo de acumulação anterior, baseada na remuneração pela renda, continue a se desenvolver.

Conclusão

Embora a solução da crise do Lehman Brothers tenha acentuado o rentismo e aprofundado bolhas especulativas, seguidores da Escola Austríaca, como o Instituto Mises, ainda sustentam o individualismo metodológico e a desigualdade da riqueza como meio para superar o risco de destruição da vida e de colapso da economia. Esse instituto influencia não apenas, mas sobretudo políticas contra a crise da Covid-19 da extrema-direita, de Bolsonaro e Guedes. Diante desse contexto, as críticas de Bukharin não são apenas atuais. São necessárias. Fundamentais para desvelar falhas lógicas e contradições de um modelo de análise econômica, cujos seguidores arrogam ser imunes à falseabilidade. Mas que, por detrás de sua pretensão de verdade, estão ações estratégicas orientadas pelos interesses de uma determinada fração de classe, o rentismo, tão hegemônica quanto nefasta, como tem ficado cada vez mais claro nos últimos anos.

* Publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil em 7 abr. 2020.

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Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx, de Moishe Postone

Os sentidos do mundo: textos essenciais, de David Harvey

O capital: crítica da economia política, de Karl Marx

Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, de Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira (orgs.)

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Guilherme Leite Gonçalves é professor de Sociologia do Direito da Uerj. Seu mais recente livro é, em coautoria com Sérgio Costa, Um porto na história do capitalismo: desvendando a acumulação entrelaçada no Rio de Janeiro (Boitempo, no prelo).

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