Epidemia econômica: Covid-19 e a crise capitalista
A crise que se anuncia não resulta de uma interferência externa, muito menos é o mecanismo de “limpeza de terreno” de sempre. Aqui temos problemas estruturais em processo há quatro décadas que têm empilhado soluções mundiais fracassadas. Somente o positivismo sedimentado como forma corriqueira do pensamento pode estabelecer um vírus como causa de uma crise econômica.
Por Maurilio Lima Botelho.
[A crise que se anuncia não resulta de uma interferência externa, muito menos é o mecanismo de “limpeza de terreno” de sempre. Aqui temos problemas estruturais em processo há quatro décadas que têm empilhado soluções mundiais fracassadas. Somente o positivismo sedimentado como forma corriqueira do pensamento pode estabelecer um vírus como causa de uma crise econômica.]
I.
A explicação para tudo parece muito simples: a preocupação com a contaminação pelo coronavírus reduziu a circulação das mercadorias e, em alguns pontos, até provocou bloqueios. O primeiro ato do governo chinês para evitar a proliferação do vírus foi fechar os mercados na província de Wuhan, diminuindo assim os postos de vendas. Logo a preocupação se estendeu aos meios de transporte, principalmente os de massa (trem, metrô). Em várias partes do mundo, por exemplo na Coreia do Sul e em Portugal, fábricas estão sendo fechadas para desinfecção logo que se descobre algum funcionário com a doença. Portos gigantescos estão com dificuldade para desembarcar e distribuir as cargas que chegam de outros países: em meados de fevereiro reportagens davam conta de milhares de contêineres de carne congelada parados nos portos chineses. Notícias de todo o mundo tratam da interrupção da produção de eletrônicos em virtude da falta de componentes oriundos principalmente da China e Coreia. Um economista sempre disponível para fazer comentários à imprensa informou que “talvez seja preciso restringir a circulação de mercadorias”.1 A gravidade da situação pode ser avaliada pela decisão das autoridades chinesas em fazer a desinfecção de notas com luz ultravioleta ou até mesmo destruir dinheiro para eliminar os riscos de contágio.2 Talvez a melhor imagem para compreender esse nexo entre crise sanitária e crise econômica seja aquela utilizada há mais de dois séculos, no nascimento da economia política moderna: a da circulação sanguínea.
O modelo de circulação sanguínea de William Harvey, elaborado no século XVII, demonstrou o papel de bombeamento realizado pelo coração e como a saúde dos organismos dependia de uma adequada circulação do sangue. Essa imagem foi fundamental para a teoria de François Quesnay dos fluxos agregados e serviu para compor uma imagem do capitalismo como um grande sistema de movimentação de riqueza, a ponto de a própria dinâmica da circulação ser tomada como algo tão ou mais importante do que a produção – ainda que, por óbvio, a riqueza fosse produzida em determinada parte da sociedade, era a boa circulação dessa riqueza que caracterizava o capitalismo como a sociedade mais perfeita e racional que já existiu. Assim, o fluxo livre de mercadoria, dinheiro, renda etc. permitia que a sociedade fosse irrigada pela riqueza em todos os cantos e isso estimularia ainda mais a produção.
Seja na forma do Tableu Économique de Quesnay – ainda amparado na agricultura como única fonte de riqueza –, seja na forma do laisse faire de Adam Smith, a centralidade da circulação era fundamental na estrutura nascente da economia política e a base de um dos seus ideologemas repetido cegamente à exaustão: apenas a liberdade mercantil, a livre circulação, em suma, o livre mercado pode conduzir a humanidade a uma era de riquezas ilimitadas. Qualquer entrave para a circulação bloquearia as qualidades da maquinaria capitalista – tanto William Harvey quanto François Quesnay, ambos médicos, consideravam, respectivamente, o organismo corporal e o organismo econômico como máquinas.
Obviamente, apesar de toda aparente semelhança, isso não passa de autolegitimação burguesa barata que naturaliza a economia ao mesmo passo em que objetifica a natureza como uma máquina. Ela serve sobretudo para fixar na dinâmica circulatória um equilíbrio imanente e assim estabelecer que qualquer bloqueio no fluxo de mercadoria e dinheiro é uma interferência indevida externa que precisa ser removida. Assim, toda a crise passa a ser vista como interferência de um elemento exterior à máquina bem lubrificada do mercado. A profunda crise econômica em formação no horizonte atual é o resultado… de um vírus.
Não é a primeira vez que se aponta a causa da crise econômica em elementos alheios aos processos econômicos básicos – baseando-se no pressuposto circulatório perfeito, qualquer evento ou coisa podem ser responsabilizados. A própria história das crises poderia ser reconstituída por essas falsas atribuições. A crise do subprime, em 2008, por exemplo, foi culpa dos pobres que contraíram hipotecas sem ter condições de pagar (ou, numa versão antissemita, provocada pelas gananciosas instituições que forneciam crédito imobiliário para qualquer um). A crise da nova economia, em 2000, foi causada pela falsificação de balanços por algumas empresas ponto-com. A crise de 1974 foi provocada pela Opep que cortou a produção de petróleo no ano anterior. Exemplos não faltam e os neoliberais encontram constantemente motivos para culpar o Estado, sempre com sua autoritária mania de ingerência externa no mercado. Nesta versão, por exemplo, a crise de 2008 foi o resultado dos incentivos criados pelo governo Clinton que forçou o crédito imobiliário para as populações mais pobres, tradicionalmente alijadas do financiamento. Milton Friedman já até estabeleceu, em uma interpretação que pretendia refutar todos os teóricos até então, que a crise de 1929 foi provocada pela criação e pelas políticas adotadas pelo Fed tentando regular o mercado.3 Por fim, no caso mais famoso pelo exagero, o economista Stanley Jevons argumentou, num artigo de 1875, que as instabilidades na oferta de mercadorias estavam relacionadas às variações das manchas solares, responsáveis, em última instância, pelas crises comerciais ao afetarem os preços das commodities.4
Com o coronavírus se repete a constante externalização de causas. Embora seja motivo para grande preocupação, o vírus está longe de ser a razão da crise.
II.
Somente o positivismo sedimentado como forma corriqueira do pensamento pode estabelecer um vírus como causa de uma crise econômica: a prisão cognitiva a um mundo factualmente articulado por causas e efeitos imediatos é parte da estrutura mecânica abstrata da ciência moderna.
Nos seus estudos críticos da economia política, Karl Marx compreendeu já muito cedo que não eram as quebras de colheita, as políticas monetárias, as elevações salariais, as variações na oferta de ouro ou prata, a especulação financeira etc. as “causas” das crises. Mesmo esses eventos de natureza econômica são “fenômenos” de disrupções, “sintomas” que expressam as contradições mais profundas da economia de mercado e que, por isso, podem ser factualmente catalisadores que detonam os processos críticos já gestados. Eles formam, portanto, uma “causa” para as crises apenas no sentido convencional de estopim da quebra econômica – somente com uma compreensão das estruturas internas e externas do mercado, de suas categorias fundamentais e suas expressões aparentes, é que a empiria bruta do nexo entre os eventos pode ser ultrapassada.
Apesar de sua grande consideração pelo modelo de fluxos circulares de riqueza do Tableau de Quesnay, Marx o utilizou como uma referência para compreender que o caráter inexorável de expansão e abrangência da circulação capitalista tinha por base a dinâmica de uma produção cada vez mais acelerada – seria redundante explicar a natureza expansiva do capitalismo por seu processo circulatório. A dinâmica ascendente do capital é o resultado externo, a manifestação histórica de uma lógica interna mais profunda e essencial – a acumulação sem fim da forma valor. A multiplicação de dinheiro sob a forma do lucro, já reconhecido de modo límpido pela economia política inglesa clássica, é a manifestação imediata da produção incessante de valor através do trabalho e, como essa dinâmica só funciona nesse regime de ampliação constante, a expansão da base circulatória nada mais é do que o resultado da própria necessidade de ampliação da exploração de trabalho. Assim, quanto maior o influxo de trabalho para manter o sistema em dinâmica lucrativa, maior a riqueza produzida para colocar em circulação e maior a estrutura montada para a movimentação dessa riqueza.
Mas não é apenas a dimensão absoluta da circulação que segue uma tendência crescente nessa sociedade, sua própria qualidade muda de figura para fazer a riqueza fluir: além de percorrer maiores distâncias – uma base de circulação maior, que vai ganhando todo o planeta –, a expansão capitalista altera também, periodicamente, os modos de circular a riqueza, acelerando os fluxos. A obsessão circulatória do capital tende progressivamente a comprimir o espaço e o tempo (David Harvey), fazendo com que a riqueza possa se mover instantaneamente de um hemisfério a outro, ignorando até mesmo os limites de dia e noite.
Aqui, a imagem do bloqueio provocado pelo coronavírus salta aos olhos: os esforços de contenção do vírus atuam exatamente contra essa intensa integração gerada pela “circulação global do capital” e afetam aeroportos, portos, estações ferroviárias, grandes mercados etc. As repercussões rapidamente são sentidas em toda parte, não porque o local está articulado ao global, mas porque com o capitalismo as “condições de produção se originam no mercado mundial” (Marx),5 que é o fiador inicial e final de todo processo de circulação.
Entretanto, se a crise é uma “interrupção da circulação” (Marx), não é em si o fenômeno imediato que bloqueou os fluxos a causa para a crise, mas as contradições acumuladas internamente e que saltam com as barreiras levantadas à circulação. Em 1855, Marx apontou que uma crise comercial nos EUA não era o motivo para os percalços econômicos que afetavam a economia inglesa, pois nos dois casos “a crise pode[ria] ser rastreada até a mesma fonte: o funcionamento fatal do sistema industrial inglês que leva[va] à superprodução na Grã-Bretanha e à superespeculação em todos os outros países”.6 Ou seja, era “a mais elevada expressão do mercado mundial”, a produção inglesa, que possuía no seu ventre contradições radicalizadas que foram atingidas e reveladas pela crise comercial originada no outro lado do oceano, em solo norte-americano.
Obviamente, nosso patamar econômico atual está muito longe daquele da época de Marx, mas a mesma relação pode ser estabelecida: o coronavírus apenas trouxe à tona os problemas estruturais da produção capitalista avançada. Não é por acaso que, antes da Covid-19, era a desaceleração chinesa a justificativa esperada para a nova rodada de crise – a demora do governo chinês em reconhecer a existência de uma nova epidemia se deu exatamente diante do temor de que o desempenho econômico do país piorasse ainda mais. Há pelo menos dois anos os conflitos comerciais entre EUA e China têm provocado turbulências periódicas no mercado devido às tensões acumuladas e muito analistas responsabilizavam o “nacionalismo econômico” de Trump pela possibilidade de um novo crash. O coronavírus não é o responsável pela epidemia econômica que se desenvolve, mas apenas o gatilho de uma crise em processo há anos na economia mundial.
Desde a década de 1970, uma crise estrutural do capitalismo originada na Terceira Revolução Industrial transformou a contradição interna lógica do capital – sua fundamentação na produção de riqueza abstrata por meio de trabalho e sua tendência inversa de expulsar força de trabalho dos processos de produção – num limite objetivo para o seu desenvolvimento. Como as novas tecnologias geram mais economia de trabalho do que os mercados são capazes de criar em sua expansão, o coração da economia capitalista começa a fraquejar – a produção de valor. A partir de então, uma série de mecanismos foram utilizados para compensar os lucros cada vez mais minguados da produção capitalista, principalmente trocando os ganhos operacionais da produção por rendimentos derivados do mercado financeiro. O inchaço da “macroestrutura financeira” foi um resultado da crise estrutural, pois somente os juros obtidos por meio da ficcionalização de riquezas poderiam manter em fluxo circulatório o capital global.
Dívida estatal crescente, bolha nos mercados imobiliários, bolha nos mercados acionários, emissão desenfreada de moeda pelos bancos centrais e endividamento do consumidor são alguns dos dispositivos acionados nas últimas décadas para manter a aparência de vitalidade da economia – ou seja, manter o capital circulando. Entretanto, esses mecanismos desencadearam mais instabilidade do que propriamente solidez econômica e seus efeitos são bem conhecidos: quebra de nações inteiras, fuga de capitais de economias em dificuldade, desvalorização monetária acentuada, estouro de bolhas, falência generalizada de bancos e empresas. Desde a última grande rodada de crise mundial, em 2008, todos esses mecanismos foram acionados ao mesmo tempo, mas nenhuma solução duradoura se obteve. Talvez doze anos possa parecer um ciclo longo de “mitigação” de crise, mas é preciso lembrar que nesse intervalo outros eventos catastróficos ocorreram no mercado mundial, como a crise das dívidas soberanas europeias e o estouro da bolha das commodities que levou a periferia do capitalismo novamente à lona. Não houve ciclo de prosperidade algum, mas apenas uma administração desesperada de processos críticos.7 Agora começamos a sentir de modo mais profundo os efeitos do esgotamento dos corticoides financeiros – a epidemia se alastra.
III.
Uma das informações mais utilizadas para exprimir o “impacto econômico” do coronavírus é a que mede a atividade industrial da China. O “índice de gerente de compras” (PMI) apresentou em fevereiro a maior queda em sua série. Atingiu um número inferior até mesmo ao de dezembro de 2008, auge da crise do subprime. A queda brusca é usada como justificativa para a força da epidemia: mesmo durante a crise mundial, há 12 anos, o fundo do poço foi obtido gradualmente depois de vários meses de desaceleração.8
Não se pode negar esse aspecto agudo da paralisação econômica provocada pelo vírus, mas o índice deveria ser lido pelo seu desempenho histórico: depois do colapso imobiliário nos EUA, nunca mais foram registrados os pontos mais elevados do aquecimento industrial anterior, nem mesmo com o pesado investimento realizado em 2012, quando a formação bruta de capital fixo mobilizou metade do PIB chinês – a partir desse ano ocorreu uma queda progressiva na atividade produtiva. Ou seja, a desaceleração chinesa acusada pelo PIB foi o resultado de uma estagnação e recuo da produção industrial devido ao peso gigantesco do excesso de produção obtido nos anos anteriores. Não é por acaso que, há dez meses, o Partido Comunista da China acionou uma série de estímulos econômicos após quedas sucessivas da atividade industrial: ampliação de gastos do governo, facilidade de crédito e interferência no câmbio para aumentar a exportação. Não promoveu nada além de um espasmo imediato: em 2019 foi anotado o pior resultado do PIB em 29 anos. O bloqueio econômico da Covid-19 pode colocar abaixo também a imensa pirâmide de dívida acumulada em território chinês: o problema não é apenas a dívida pública de quase 18 trilhões de dólares, mas o imenso sistema financeiro informal (não-regulado pelas autoridades) que sustenta mais de 8 trilhões de dólares em empréstimos acumulados e que há anos atormentam os membros do PCCh (shadow banking system).9
Embora tenhamos no Império do Meio o maior parque industrial do mundo, é a epidemia nos EUA que deve provocar o colapso da economia mundial, já ensaiado pelas maiores perdas acionárias desde o crash imobiliário. Não se trata obviamente de um “contágio”. Integrados por um “circuito deficitário do Pacífico” (Robert Kurz) – a demanda norte-americana aciona a produção industrial chinesa que, por sua vez, financia os déficits comerciais e fiscais dos EUA10 –, os mercados dos dois países são tão íntimos que o historiador conservador Niall Ferguson criou a expressão “Chimérica”.11 A crise no Oriente, portanto, atinge diretamente as fontes de sustentação da maior economia mundial, principalmente o fluxo monetário que infla a maior bolha financeira de todos os tempos.
Apesar da medíocre recuperação do crescimento da economia norte-americana a partir de 2010 – a taxa média de variação anual do PIB não chegou a 2,3 % durante essa década –, as bolsas norte-americanas registraram um impulso histórico sem equivalentes. O Nasdaq duplicou seu índice, o Dow Jones quase triplicou e o Standard & Poor’s 500, que basicamente lista as maiores empresas de Wall Street, literalmente triplicou nesse intervalo de dez anos. O altismo acionário desse período não se compara à velocidade galopante da “exuberância irracional” da década de 1990, mas naquela época o produto interno apresentou taxas de crescimento muito maiores (com picos de quase 5 %). A discrepância entre o baixo crescimento da economia americana como um todo e a multiplicação financeira nas bolsas é a mais escandalosa de todos os tempos. A injeção de dinheiro patrocinada pelo Fed (“flexibilização monetária”) resultou em investimentos produtivos, mas como eles são cada vez mais voltados para a indústria 4.0, ou seja, alta tecnologia desempregadora de força de trabalho, a multiplicação monetária efetiva foi produzida no cassino das bolsas de valores, alimentando a “retomada” mesmo em meio à falta de lucros efetivos. Isso criou um fenômeno gigantesco de financiamento de empresas que não são lucrativas.
Stanley Jevons, que escreveu um Princípios de Economia Pura, ficaria assustado ao ver que, sob o sol do século XXI, algumas das maiores e mais famosas empresas do mundo se expandem de modo acelerado sem apresentar um níquel sequer de lucro. Antes mesmo do coronavírus assustar o mercado mundial, alguns colunistas econômicos já se perguntavam como uma realidade dessas poderia se sustentar. Em 2018, por exemplo, foi registrado o maior número de ofertas públicas de ações por empresas que não apresentaram lucros: 81 % de todos IPOs realizados no mercado financeiro americano eram de empresas com prejuízos. Um recorde só comparado a 2000, exatamente quando a bolha das ponto-com explodiu.12
Sobrevivente do colapso da nova economia, quando quase faliu, a Amazon demorou mais de 6 anos para apresentar lucros, mas seus ganhos continuam reduzidos diante do volume de recursos mobilizados pela empresa. O mesmo é o caso da Netflix, cujos custos de operação são elevadíssimos para receitas líquidas minguadas. De qualquer modo, essas empresas ainda são exemplos a serem seguidos por outras que sequer registraram oficialmente lucro, como a Uber, que há dez nunca apresenta um saldo positivo em seus balanços, ou a Tesla e o Spotify. Para a consciência comum fixada no mundo das aparências, pode parecer um absurdo que a Uber não dê lucro, mas é a realidade do castelo de riquezas fictícias erguido pelo capital em seu período de declínio histórico.13
O paradoxo de uma empresa em expansão contínua e com prejuízos acumulados só pode ser explicado pela ampliação e barateamento do crédito. As estatísticas de crescimento dos serviços e maior abrangência na atuação de uma empresa são mais significativas para investidores do que o próprio balanço contábil, o que alimenta a procura incessante pelas ações e uma alta contínua de papéis que financiam as atividades, mesmo em contraste com as receitas. No caso de empresas de capital fechado, é o acesso a fundos de investimento ou recursos públicos que garante a sustentação prolongada de empresas com dificuldade. A miragem futura de um ganho, em algum momento, é a caução para o constante fluxo de dinheiro: embora isso possa se efetivar para uma empresa ou outra, uma dinâmica sistemática dessas não passa de um esquema de pirâmides onde a riqueza só circula enquanto recursos monetários continuam a entrar. A exploração energética do shale oil, por exemplo, que tornou os EUA novamente autossuficiente em petróleo depois de décadas, só se explica por essa enxurrada de crédito farto, já que a maioria das empresas estão enfiadas em dívidas e seus custos de operação são elevadíssimos.14
Gigantescas empresas não-rentáveis são sustentadas por uma bolha acionária que ameaça explodir de vez com a agulha oferecida pelo coronavírus. E esse não é o caso somente dos EUA. O próprio governo chinês há décadas financia empresas notoriamente improdutivas devido à sua importância “estratégica”. Corporações de várias partes do mundo sustentam suas operações de produção não-lucrativas com os ganhos do mercado financeiro, até no mercado periférico do Brasil isso acontece: grandes marcas como a Netshoes nunca deram lucro e há dúvidas se a gigante iFood tem receitas líquidas devido ao pesado investimento e subsídios constantes que oferece aos seus clientes. A diferença entre o financiamento privado e o subsídio governamental pode produzir efeitos imediatos distintos (por exemplo, a manutenção de empregos), mas como o fluxo de capital é único e globalmente interconectado, essa rede insustentável atingirá a todos, de qualquer modo, quando o fluxo de dinheiro for bloqueado. A rápida depreciação acionária vai travar o movimento de crédito que sustenta essas empresas não-rentáveis, assim como a crise da dívida soberana deve secar os recursos dos subsídios estatais. Não é por acaso que, em setembro passado, bem antes do coronavírus, uma súbita elevação da taxa de empréstimos interbancários nos EUA fez o Fed intervir nesse mercado depois de uma década – o sistema financeiro americano começava a indicar a falta de fluxo monetário.15
Essa é a originalidade de nossa época. Não se trata do mesmo fenômeno de crise de sempre. É a teoria econômica burguesa que acredita que “as crises sempre estiveram conosco e permanecerão para sempre”.16 A visão sempre-idêntica dos fenômenos de crise é parte da naturalização da economia capitalista e ela atinge até mesmo os seus pretensos críticos de esquerda, que se fixam num logicismo e ignoram que o capital se desdobra num processo histórico cego e destrutivo. A crise que se anuncia não resulta de uma interferência externa, muito menos é o mecanismo de “limpeza de terreno” de sempre. Aqui temos problemas estruturais em processo há quatro décadas que têm empilhado soluções mundiais fracassadas.
É verdade que o bloqueio na produção industrial deve reduzir uma parte do excesso de mercadorias disponíveis nos estoques, mas a capacidade produtiva excedente vai continuar depois da suspensão das medidas de contenção sanitárias, assim como as dezenas de milhões de imóveis continuarão sem comprador na China e o poder de compra mundial resultará mais comprimido depois das demissões em massa. Governos de todo o mundo já anunciaram pacotes de salvação com injeção de recursos, mas isso dificilmente servirá de vacina quando é a própria dívida pública que está no centro da epidemia – a depreciação de diversas moedas (à frente de todas, o real) já começou a se acelerar. Também o governo de Trump anunciou medidas de resgate, mas resta saber se o dólar não será afetado também pela desvalorização monetária geral que representa exatamente a própria incapacidade do dinheiro de circular. Uma queda da última moeda hegemônica, simultânea às demais moedas do mundo, é a verdadeira peste que se deve temer: ela representará o bloqueio completo dos fluxos sanguíneos da economia capitalista, demonstração de que o seu coração (a produção de valor) já não funciona.
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Quatro dicas de leitura da Boitempo, para aprofundar a reflexão
Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx, de Moishe Postone
Os sentidos do mundo: textos essenciais, de David Harvey
O capital: crítica da economia política, de Karl Marx
Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, de Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira (orgs.)
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O Blog da Boitempo apresenta um dossiê urgente com reflexões feitas por alguns dos principais pensadores críticos contemporâneos, nacionais e internacionais, sobre as dimensões sociais, econômicas, filosóficas, culturais, ecológicas e políticas da atual pandemia do coronavírus. Confira aqui a página com atualizações diárias com análises, artigos, reflexões e vídeos sobre o tema.
NOTAS
1 “Coronavírus: ‘Talvez seja preciso restringir a circulação de mercadorias’, diz economista”, GloboNews, 27 jan. 2020.
2 “China desinfeta e destrói dinheiro para conter avanço do coronavírus”, Exame, 17 fev. 2020.
3 Milton Friedman e Rose Friedman. Liberdade de escolher: o novo liberalismo econômico (Rio de Janeiro, Record, 1978), p. 86-89.
4 “Sunspots and the Price of Corn and Wheat”, Time-Price Research.
5 Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro III: o processo global da produção capitalista, São Paulo, Boitempo, 2017, p. 252..
6 Karl Marx, “The Commercial Crisis in Britain”, New-York Daily Tribune, n. 4294, 26 jan 1855.
7 Maurilio Lima Botelho, “Entre as crises e o colapso: cinco notas sobre a falência estrutural do capitalismo. Revista Maracanan, n. 18 (29), p. 157-180.
8 O índice pode ser consultado aqui.
9 Jeff Cox, “Shadow banking is now a $52 trillion industry, posing a big risk to the financial system”, CNBC, 11 abr. 2019.
10 Robert Kurz. Poder mundial e dinheiro mundial: crônicas do capitalismo em declínio (Rio de Janeiro, Consequência, 2015), p. 31-35.
11 Niall Ferguson. A ascensão do dinheiro: a história financeira do mundo (São Paulo, Planeta, 2009).
12 Camila Veras Mota, “De Uber a Nubank: as empresas que valem bilhões, mas nunca registraram lucro”, UOL, 30 set. 2019.
13 Marcelo López, “Bolha das empresas que não dão lucro está ocultando a inflação no mundo todo”, InfoMoney, 13 dez. 2019. Ver também: “Como o Uber sobrevive com prejuízo de US$ 1,2 bilhão e sem nunca ter dado lucro?”, ÉpocaNegócios, 11 nov. 2019.
14 A tênue esperança para o setor de energia para os EUA, enfiado em uma dívida total de 85 bilhões de dólares, é que a maioria das obrigações é de longo prazo e não vence em 2020, portanto, o socorro monetário do Fed pode adiar o crash. Sobre isso ver: Tim Mullaney, “In oil crash, energy debt loads are not the immediate problem for most drillers”, CNBC, 13 mar. 2020.
15 “Fed intervém para controlar taxas interbancárias pela 1ª vez em mais de uma década”, Valor, 17 set. 2019.
16 Nouriel Roubini e Stephen Mihm. A economia das crises: um curso-relâmpago sobre o futuro do sistema financeiro internacional (Rio de Janeiro, Intrínseca, 2010), p. 12.
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Maurilio Lima Botelho é Professor de geografia urbana da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e autor do artigo “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres” que integra o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013), e do artigo “Guerra aos ‘vagabundos’: sobre os fundamentos sociais da militarização em curso”, publicado na revista Margem Esquerda #30. Colabora com o Blog da Boitempo esporádicamente. Dele, leia também, “Um mundo afogado em capital: a queda global da taxa de juros e a nova rodada da crise estrutural do capitalismo“, “Rumo ao desconhecido: endividamento mundial, crise monetária e colapso capitalista“, “O suicídio da classe média” e “A aprovação do fim do mundo” (este último no dossiê “Não à PEC 241” do Blog).
Mas temos o bom senso que os reflexos das crises no brasil foram todas causadas pelos governos anteriores ,ate eu que sou simples mortal pouco letrado, entendo que nao podemos ,culpa o governo por o problema de saude do brasil seria ate injusto,pelo pouco tempo de governos agora a epidemia veibsem pedir lincença,como um grito mostras que devemos melhora muitas coisas e atenta mais para qualidade de vida e frear esse ritimo alucinante que vivemos .
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