MP 927: da pandemia ao pandemônio

Se, conforme explicam os dicionários, pandemia é uma “enfermidade epidêmica amplamente disseminada” e pandemônio uma “associação de pessoas para praticar o mal", não há outra forma de se referir à Covid-19 e ao modo como o governo brasileiro propõe tratar o problema na esfera trabalhista.

Por Jorge Luiz Souto Maior.

“O que está acontecendo?
O mundo está ao contrário e ninguém reparou”
“Relicário”, Nando Reis

Se, conforme explicam os dicionários, pandemia é uma “enfermidade epidêmica amplamente disseminada” e pandemônio uma “associação de pessoas para praticar o mal “, não há outra forma, como anunciado no título, de se referir à Covid 19, doença provocada pelo vírus Sars-Cov-2 (da família dos coronavírus e, por isso, apelidado de “novo coronavírus”), e ao modo como o governo brasileiro propõe tratar o problema na esfera trabalhista.

No momento da maior crise humanitária mundial já vivenciada, após as duas Guerras mundiais, se entendeu a relevância do Estado para organizar as relações de trabalho e impedir que explorações predatórias implicassem em elevação do sofrimento e disseminação de insatisfações e conflitos desagregadores do todo social. Limitar as ações do poder econômico dentro de um contexto de projeto social bem concebido (voltado, sobretudo, à redistribuição da riqueza socialmente produzida), amplamente difundido, para que possa, inclusive, ser assimilado e seguido (sem eliminar a necessidade da plena fiscalização) é o papel reservado ao Estado (concebido, desde então, como Estado Social), principalmente em momentos de crise.

Mas o que faz a MP 927 é exatamente o contrário. Confere poderes ilimitados ao poder econômico e os efeitos disso são desastrosos até do ponto de vista da economia.

Ora, se um empregador, como propõe a MP 927, pode forçar seu empregado, individualmente, a abrir mão de todos os seus direitos para que continue tendo uma renda e, com isso, alguma chance de sobreviver, todos os demais empregadores poderão fazer o mesmo, gerando uma escala espiral e crescente de maior exploração, menor renda distribuída, redução drástica de produção e consumo, inclusive de bens essenciais à preservação da vida, promovendo não apenas recessão econômica profunda, como também e, principalmente, uma disseminada crise humanitária, recheada de sofrimentos generalizados, conflitos sociais e doenças de todos os tipos (valendo lembrar que a COVID-19 não é a única que mata). E, ao mesmo tempo, com a eliminação das fontes de custeio, não se consegue nas estruturas públicas uma resposta minimamente eficaz para o enfrentamento do problema.

A MP 928, publicada logo no dia seguinte ao da MP 927, “revogou” o art. 18 da MP anterior que autorizava o empregador a suspender os contratos de trabalho por quatro meses (sem pagamento de salários), propondo que trabalhadores, sem qualquer fonte de sustento (recebendo, quando muito, uma “ajuda” voluntária que o empregador quisesse oferecer, não estando, portanto, obrigado a isso – e tudo isso em momento de pandemia), fossem direcionados à realização de cursos de qualificação profissional. Isso é ou não proposta de um pandemônio?

Alguém, de forma apressada, respondendo a essa indagação, pode considerar que os autores da proposta, ao revogá-la no dia seguinte, teriam se arrependido do que fizeram e, que assim, o problema estaria resolvido.

Lego engano.

A revogação não representa um arrependimento em torno da proposição e sim um arrependimento de se ter explicitado, de forma mais contundente, como o empregador poderia utilizar o poder que lhe foi conferido pelo art. 2º da MP 927, disfarçado em “acordo individual”.

Diz o referido dispositivo:

“Art. 2º  Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição.”

Como esse artigo foi preservado, nada impede que o empregador imponha aos seus empregados uma suspensão na forma sugerida no revogado art. 18. Dito de outro modo, o art. 18 só foi revogado diante da grande reação midiática que o texto gerou, mas a revogação não altera a essência da MP, que ainda possibilita, e até incentiva, que medidas como esta sejam tomadas pelo empregador.

Aliás, o art. 3º, na mesma linha, oferece outras sugestões para o empregador utilizar os super poderes que lhe foram concedidos, sem qualquer limitação, mesmo a do “acordo individual”.

Nos termos do art. 3º,

“Para enfrentamento dos efeitos econômicos decorrentes do estado de calamidade pública e para preservação do emprego e da renda, poderão ser adotadas pelos empregadores, dentre outras, as seguintes medidas:

I – o teletrabalho;

II – a antecipação de férias individuais;

III – a concessão de férias coletivas;

IV – o aproveitamento e a antecipação de feriados;

V – o banco de horas;

VI – a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho;

VII – o direcionamento do trabalhador para qualificação; e

VIII – o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS.”

Reparem que o inciso VII trata do mesmo tema da qualificação e não foi revogado.

Cumpre reparar, também, que a menção a “acordo” entre as partes, mesmo sem qualquer eficácia, pois ajuste individual entre pessoas economicamente desiguais resulta sempre em imposição da vontade de quem detém o poder econômico e submissão de quem depende da renda do trabalho para sobreviver, é apenas um disfarce, que a própria MP reconhece como tal.

Com efeito, ao trazer as medidas que “poderão ser adotadas pelos empregadores”, o “caput” do art. 3º revela que, efetivamente, se trata da concessão de super poderes aos empregadores e, inclusive, apresenta sugestões para a utilização desse poder, chegando ao ponto, no item, VIII, de deixar claro que o interesse individual do empregador se sobrepõe até mesmo a norma de política pública, como é o FGTS.

Na sequência, a MP busca conferir “segurança jurídica” aos empregadores, para utilização de cada uma das sugestões feitas, que vão, todas, na direção dada redução de direitos e de renda dos trabalhadores, e estas menções, vale lembrar, são apenas alguns exemplos, já que o art. 3º deixa claro que trata de algumas medidas, “dentre outras”.

No teletrabalho, a MP, no art. 4º diz, expressamente, que “o empregador poderá, a seu critério, alterar o regime de trabalho presencial para o teletrabalho, o trabalho remoto ou outro tipo de trabalho a distância e determinar o retorno ao regime de trabalho presencial, independentemente da existência de acordos individuais ou coletivos, dispensado o registro prévio da alteração no contrato individual de trabalho”.

Quanto aos custos do trabalho em casa, o § 3º do art. 4º da MP volta ao disfarce do contrato individual, deixando que o super poder do empregador estabeleça em contrato o contrário do que seria a regra natural, qual seja, a de que os custos ficassem ao encargo do empregador, já que não pertence ao empregado os riscos da atividade econômica.

Depois a MP (§ 4º do art. 4º) ainda se preocupa em estabelecer garantias para que os eventuais custos suportados pelo empregador para o teletrabalho lhe sejam revertidos pelo empregado e em vetar a consideração da sobrejornada em razão da submissão ilimitada ao trabalho que o trabalho por aplicativos e programas possibilitam (§5º do art. 4º).

Em seguida, a MP confere ao empregador o super poder de antecipar as férias do empregado.

Com a possibilidade de antecipação, o empregado é que pagará, com suas férias “futuras”, o custo da crise econômica, com recebimento postergado para o quinto dia útil da data de início (art. 9º, contrariando regra expressa da CLT – art. 145) e sem o recebimento, do respectivo adicional, cujo pagamento pelo empregador, segundo a MP, poderá ser postergado para o final de 2020 (art. 8º). Ou seja, o que seria férias, para descanso e lazer, se transforma em obrigação de ficar em isolamento em casa, com redução do valor correspondente.

Os artigos 7º e 10 são ainda mais graves.

O art. 7º confere ao empregador o poder de suspender as férias ou licenças remuneradas dos “profissionais da área de saúde ou daqueles que desempenhem funções essenciais”, dentro de um contexto em que nenhuma ampliação de direitos e garantias se estabeleceu para esses profissionais. A preocupação da MP é apenas com o empregador.

No art. 10 fica clara a posição dos autores da MP de que a dispensa (demissão) do empregado é um direito do empregador mesmo neste momento de crise profunda, indo na contramão de uma necessária política pública de preservação dos empregos, já adotada em diversos outros países.

É importante reparar que a MP não se limita a conferir garantias aos empregadores que, atingidos pela crise, não tenham como desenvolver suas atividades. A MP procura oferecer “regalias” jurídicas, com redução de direitos dos trabalhadores, para as empresas que continuam prestando seus serviços.

Desse modo, os trabalhadores que, pelo fato de suas profissões estarem atreladas a atividades essenciais à preservação da vida, continuam trabalhando, pondo em risco à própria vida (e de seus familiares), em vez de receberem, como seria de direito, compensações financeiras adicionais pela exposição ao risco e serem declarados heróis nacionais, em razão do sacrifício a que se submetem cotidianamente, são desconsiderados como seres humanos e colocados como utensílios a serem utilizados para a preservação de outras vidas.

Para o exercício desses trabalhos indispensáveis, a preocupação deveria ser a da redução dos riscos, com diminuição da jornada de trabalho, elevação dos salários, realização de revezamentos e oferecimento dos meios seguros para o deslocamento até o local de trabalho e para o exercício efetivo dos serviços.

Mas não, a MP não se preocupa com isso. Pelo contrário, pela MP, quem tiver que continuar trabalhando poderá ser submetido a trabalhar sem qualquer limite de jornada e sem receber pelas horas extras trabalhadas, pois as horas a mais serão integradas a um “banco de horas, para a compensação no prazo de até dezoito meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública” (art. 14), sendo que essa compensação posterior poderá ser determinada em conformidade com o interesse exclusivo do empregador: “A compensação do saldo de horas poderá ser determinada pelo empregador independentemente de convenção coletiva ou acordo individual ou coletivo.” (§2º, do art 14)

O incentivo às horas extras, com eliminação de encargos aos empregadores, aliás, vem expresso nos artigos 26 a 27 da MP:

“Art. 26.  Durante o de estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, é permitido aos estabelecimentos de saúde, mediante acordo individual escrito, mesmo para as atividades insalubres e para a jornada de doze horas de trabalho por trinta e seis horas de descanso:

I – prorrogar a jornada de trabalho, nos termos do disposto no art. 61 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943; e

II – adotar escalas de horas suplementares entre a décima terceira e a vigésima quarta hora do intervalo interjornada, sem que haja penalidade administrativa, garantido o repouso semanal remunerado nos termos do disposto no art. 67 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943.

Art. 27.  As horas suplementares computadas em decorrência da adoção das medidas previstas nos incisos I e II do caput do art. 26 poderão ser compensadas, no prazo de dezoito meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública, por meio de banco de horas ou remuneradas como hora extra.”

Não bastasse isso, a MP, contrariando o que seria o correto, ao menos do ponto de vista humanitário, se preocupa em isentar o empregador do cumprimento das normas de segurança e saúde no trabalho (arts. 15 a 17, inseridos no Capítulo com o título: “DA SUSPENSÃO DE EXIGÊNCIAS ADMINISTRATIVAS EM SEGURANÇA E SAÚDE NO TRABALHO”).

A restrição de fiscalizações fica mais explícita no artigo 31 da MP, que impõe aos auditores fiscais do trabalho uma atuação apenas “orientadora”, exceto em situações de: “I – falta de registro de empregado, a partir de denúncias; II – situações de grave e iminente risco, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas à configuração da situação; III – ocorrência de acidente de trabalho fatal apurado por meio de procedimento fiscal de análise de acidente, somente para as irregularidades imediatamente relacionadas às causas do acidente; e IV – trabalho em condições análogas às de escravo ou trabalho infantil.”

Nos arts. 19 a 25, a MP isenta o empregador do recolhimento do FGTS, referente às competências de março, abril e maio de 2020, com vencimento em abril, maio e junho de 2020

No art. 29 encontra-se uma das maiores maldades da MP. Além de manter os trabalhadores em atividade, com redução de direitos e aumento dos riscos, a MP declara que eventual contaminação do empregado pelo coronavírus (covid-19) não é considerada uma doença ocupacional, fazendo com que caiba ao empregado produzir a prova (que é impossível) de que o contágio se efetivou no trabalho e não em outro local.

E no artigo 36 vem a “cereja do bolo de maldades”, que extrapola os limites trabalhistas e abala, de forma generalizada, as estruturas do Estado Democrático de Direito. O referido artigo, simplesmente, suspende o princípio da irretroatividade das leis, para impor, de forma retroativa, restrições de direitos aos trabalhadores.

Convém reproduzir o texto do referido artigo:

“Art. 36.   Consideram-se convalidadas as medidas trabalhistas adotadas por empregadores que não contrariem o disposto nesta Medida Provisória, tomadas no período dos trinta dias anteriores à data de entrada em vigor desta Medida Provisória.”

As medidas da MP 927, como se vê: a) não resolvem os problemas econômicos das empresas cuja atividade não possa ser exercida durante o período da crise e também daquelas que, por indispensabilidade, continuam em funcionamento (o que exigiria, isto sim, aportes financeiros estatais em grandes quantias, como vários outros países já anunciaram, além de revitalização das estruturas assecuratórias do Estado Social); b) punem, com redução de direitos e aumento dos riscos, os trabalhadores que são obrigados a continuar exercendo seus serviços para salvar a vida de milhões de brasileiras e brasileiros; c) agridem, de forma contundente e incontornável, os preceitos básicos do Estado Democrático de Direito, da ordem jurídica constitucional e dos Direitos Humanos); e d) ofendem os mais rudimentares valores humanitários construídos ao longo de décadas e como efeito de muitos sacrifícios e sofrimentos.

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Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho e professor livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Relação de emprego e direito do trabalho (2007) e O direito do trabalho como instrumento de justiça social (2000), pela LTr, e colabora com os livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, 2013) e Brasil em jogo: o que fica da Copa e das Olimpíadas?. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente às segundas.

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