Vera Soares: “O contraditório e ambíguo caminho para Beijing”. Estudos Feministas, ano 3, n. 1, 1995; pp. 180-190
Conny Roggeband e Andrea Krizsán: “Reversing gender policy progress: patterns of backsliding in Central and Eastern European new democracies”. European Journal of Gender and Politics, 1 (3), 2018; pp. 367-85.
Wendy Brown: Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. New York: Zone Books, 2015.
Erosão democrática e descompromisso com as mulheres: a importância da resistência feminista
Os movimentos feministas estão em posição crucial para a produção de informações e para a construção da resistência – e a resistência passa pelas ruas e pelos espaços institucionais. É preciso identificar como tem se dado o desmonte das políticas e compromissos para a igualdade de gênero.
Por Flávia Biroli.
Neste ano de 2020, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, que ficou conhecida como Conferência de Pequim, completa 25 anos. Ela fez parte de um ciclo de conferências realizadas pela Organização das Nações Unidas, que incluiu a Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio, 1992), a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, 1993) e a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994). Nelas, a agenda de direitos humanos foi ampliada e ressignificada. Os documentos produzidos definiram responsabilidades e planos de ação para os estados nacionais, que se tornaram balizas – muitas vezes frágeis e disputadas – para a produção de leis e de políticas públicas.
Nesse contexto, as desigualdades de gênero ganharam maior visibilidade e intensidade como problemas políticos. Isso se deu ao mesmo tempo que os regimes democráticos liberais se ampliavam em número e se consolidavam em regiões nas quais a transição de ditaduras para a democracia era ainda recente. As velhas e as novas democracias foram, então, interpelados por uma agenda que passaria a ser uma das dimensões para se avaliar esses regimes.
A Conferência de Pequim reuniu delegações de mais de 180 países e representantes de Organizações Não-Governamentais de diversas partes do mundo. Nos anos que a antecederam, a preparação nos espaços nacionais exigiu ações governamentais e ativou as redes de movimentos e pessoas comprometidas com a promoção da igualdade de gênero, em especial os movimentos feministas. Vera Soares relata que, no Brasil, a preparação se iniciou em 1993, quando um decreto do presidente da República determinou a formação do Comitê Brasileiro da IV Conferência Mundial da Mulher. Em 1994 se formaria a Articulação das Mulheres Brasileiras, promovendo fóruns e coordenações em 21 estados brasileiros e convergindo na Conferência das Mulheres Brasileiras, no Rio, em junho de 1995 (dois meses antes da conferência de Pequim).
Soares chama a atenção para o fato de que, pela primeira vez, o governo brasileiro realizava consultas amplas com o objetivo de produzir um relatório bem informado sobre as condições de vida das mulheres no país. Envolvida nas disputas que marcaram aquele processo, ela registrou ser “de interesse do movimento que o governo não só assuma uma avaliação das condições de exercício da cidadania das mulheres, mas sobretudo que ele se comprometa com as propostas das mulheres”. Estavam em jogo a produção de informações e o reconhecimento dos movimentos como atores políticos relevantes para a construção de políticas públicas e, de maneira mais ampla, no processo de construção do Estado democrático.
Se voltamos à Declaração e à Plataforma de Ação de Pequim 1995, que resultaram da Conferência, fica claro que um dos principais desafios apresentados para os regimes democráticos foi que as mulheres fossem ouvidas. “Ouvidas” significa reconhecidas como pares na política, incluídas nos processos de produção de leis e políticas públicas, percebidas como parte integrante da construção de alternativas para o desenvolvimento.
Logo no início da Declaração, os governos reunidos na Conferência se comprometiam não apenas a avançar nos objetivos da igualdade, do desenvolvimento e da paz, mas a de reconhecer “o anseio de todas as mulheres de todas as partes do mundo, considerando a diversidade das mulheres e de seus papeis e condições de vida”. Também se comprometiam a reconhecer que o status das mulheres avançou, mas que “o progresso tem sido irregular, pois persistem desigualdades entre homens e mulheres” e permanecem obstáculos fundamentais, entre os quais a pobreza que afeta a vida da maioria das pessoas e das mulheres e crianças em particular.
É bastante conhecido o item 14 da declaração, que define os direitos das mulheres como direitos humanos. É algo sem dúvida importante, em um contexto no qual se tratava – e se trata ainda – de responsabilizar governos e o próprio Estado quando estes não se comprometem com o avanço desses direitos. Mas é também significativo que, com os jargões característicos e as limitações que fizeram parte do processo, o “empoderamento das mulheres” significasse a sua participação de forma igualitária em todas as esferas da sociedade, incluindo os processos decisórios e o acesso aos espaços de poder. A participação das mulheres no desenho de políticas públicas numa perspectiva de gênero foi explicitada como algo “essencial” (no item 19).
Eu poderia seguir, falando de outros tantos itens que expressam o compromisso com o direito das mulheres a controlar sua capacidade reprodutiva, o direito à liberdade e a necessidade de que múltiplas barreiras a esses direitos sejam endereçadas. Mas está na hora de colocar a questão que talvez já tenha sido feita por quem me lê. Por que voltar a Pequim hoje? Há muitas razões para se discutir as diretrizes assumidas então e para avaliar os avanços na condição das mulheres e na igualdade de gênero, assim como seus limites. Mas há, sobretudo, preocupações. Vivemos um momento de descompromisso com a agenda da igualdade de gênero, de pressões diversas contra as premissas de que promover essa igualdade é uma meta para organizações internacionais de direitos humanos e para os Estados nacionais. Os fundamentos do sistema de direitos humanos das últimas décadas estão em xeque, assim como a tradução dos direitos das mulheres como direitos humanos que precisam ser promovidos e garantidos pelos governos nacionais.
O Brasil é um caso de clareza ímpar – ainda que não seja único e se aproxime em muitos aspectos da realidade atual de países como a Hungria e a Polônia. Em dezembro de 2019, ao vetar a inclusão dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (“agenda 2030”) no Plano Plurianual da União, uma das justificativas dadas por Jair Bolsonaro é que essa agenda promove “a maléfica ideologia de gênero”.
Ele estava se referindo, provavelmente, ao Objetivo número 5. Nele, se lê que “a igualdade de gênero não é apenas um direito humano fundamental, mas a base necessária para a construção de um mundo pacífico, próspero e sustentável”. Lê-se, ainda, que a meta é assegurar melhores condições de vida a mulheres e meninas “não apenas nas áreas de saúde, educação e trabalho, mas especialmente no combate às discriminações e violências baseadas no gênero”. É preciso “atuar enfaticamente na promoção do desenvolvimento sustentável, por meio da participação na política, na economia, e em diversas áreas de tomada de decisão”.
É isso que foi considerado “maléfico” pelo presidente. Trata-se de justificar, por meio da estratégia retórica da “ideologia de gênero”, a exclusão aberta de metas para assegurar melhores condições de vida para mulheres e meninas.
Para muitas de nós, a Plataforma de Pequim e os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável são parte de uma agenda liberal de desenvolvimento capitalista que traz acoplada a ela uma espécie de colchão para a contenção de danos. Para a extrema-direita que tem chegado ao poder em algumas partes do mundo, essa mesma agenda liberal de direitos e a perspectiva de um desenvolvimento sustentável devem ser combatidas. No Brasil, um neoliberalismo sem air bag vem revelando claramente que a desproteção se organiza nos eixos de classe, de gênero e de raça. Nesse contexto, promover o bem-estar de meninas e mulheres e oportunidades para que vivam em um mundo nos quais não sejam discriminadas e violentadas – vejam que estou aquém de uma agenda de igualdade substantiva aqui, assim como da crítica às bases do capitalismo – seria algo “ideológico”. Trata-se, na realidade, uma responsabilidade de que o Estado se exime abertamente.
Em seu estudo sobre a Hungria, a Polônia e a Romênia, as cientistas políticas Conny Roggeband e Andrea Krizsán chamam a atenção para o fato de que as décadas recentes produziram, em algumas partes do mundo, a ilusão de um “Estado benevolente” para os movimentos feministas. Guardadas as peculiaridades e sem deixar de lado os limites efetivos para a promoção da igualdade de gênero, isso se deu também na América Latina e no Brasil. O que se revela agora é mais do que a institucionalidade patriarcal: é o Estado orientado, abertamente, contra a agenda de igualdade de gênero – e de direitos humanos, mais amplamente.
Antes neste texto, mencionei a importância da produção de informações sobre as condições de vida das mulheres quando se preparava o relatório brasileiro para a Conferência de Pequim. O diálogo com os movimentos feministas e sua participação na produção de informações e políticas públicas tem sido fundamental desde então. No Brasil, ele foi interrompido em 2016, mas o redirecionamento das políticas se tornou mais intenso a partir de 2019. Tem sido assim também em outras partes do mundo nas quais processos de erosão da democracia têm evidentes dimensões de gênero.
A suspensão desse diálogo não significa que não exista mais uma relação entre Estado e sociedade civil na construção das políticas. Outros atores, no caso, atores religiosos conservadores, agora ocupam esses espaços. As pautas de justiça têm dado lugar a outras, intensamente moralizadas. E um dos resultados possíveis da investida contra a igualdade de gênero é que se tenha também menos informações – daí o fato de que toda a produção de conhecimento sobre as relações de gênero seja também considerada “ideológica”.
Mais uma vez, os movimentos feministas estão em posição crucial para a produção de informações e para a construção da resistência. É preciso identificar como tem se dado o desmonte das políticas e compromissos para a igualdade de gênero (que pode ter a forma da interrupção, mas também da redefinição do sentido das políticas, enquadradas como políticas “pró-família”). E, entendo, a resistência passa pelas ruas e pelos espaços institucionais. As eleições municipais deste ano são bastante relevantes nesse sentido, assim como a ampliação da presença nos espaços locais de construção de políticas.
Vinte e cinco anos depois de Pequim, estamos diante de regimes políticos menos abertos às nossas pautas e de formas de autoritarismo nas quais, retomando o que disse Wendy Brown sobre as sociedades neoliberais no presente, a desigualdade se transforma não apenas no normal, mas no normativo. As perspectivas feministas para o Estado e a democracia são, assim, ainda mais relevantes para que se possa manter no horizonte político a igualdade, a justiça e o compromisso com uma ética da pluralidade.
Referências bibliográficas:
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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Escreve mensalmente para o Blog da Boitempo, às sextas.
Uma das premissas fundamentais do texto está em que existe uma diferença substantiva entre Bolsonaros/liberalismos de direita e ONU/liberalismos de esquerda. Penso, cada vez mais, que as transformações políticas e econômicas das últimas décadas anacronizaram completamente esse modo de entender o espectro político. A ascensão dos fascismos mundo afora conecta-se organicamente à falência da democracia liberal como horizonte de organização de nossas vidas em sociedade. Textos como este trazem uma confusão, pois nos chamam a participar e recuperar da falência essa mesma democracia, atuando no interior de seus mecanismos, como a ONU e apaniguados.
Resumidamente, penso não há salvação para os movimentos populares e a luta pela libertação das mulheres (à exemplo de outras) fora do combate anti-capitalista. O mundo liberal dos anos de ouro do neoliberalismo, com seus organismos e espaços institucionais, entrou na sua mais aguda fase de decadência e não nos cabe reeditá-lo sob o signo do programa mínimo da luta por direitos. O próprio Estado, pretenso garantidor desses direitos e políticas públicas, omite-se sistematicamente e sucumbe à fascistização. Nesse âmbito, a nossa política defensiva, “de “resistência”, legalista, termina por confundir os grupos oprimidos e abandoná-los aos cuidados ideológicos do liberalismo mais hipócrita e covarde, posto que incapaz de travar uma luta real contra a extrema direita.
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