A marcha da História foi interrompida?
"Em tempos de hegemonia neoliberal, retomar sobre bases sólidas os fundamentos da crítica da economia política do autor de 'O capital' é tarefa urgente."
Por Diogo Fagundes.
Houve um período no século passado em que parecia que a marcha da História, de fato, progredia rumo a um mundo mais igualitário e menos perigoso.
Foi o período que vai de 1945 até a reação neoliberal dos anos 80. Apesar da Guerra Fria e suas decorrências, havia quatro tendências progressivas, nitidamente visíveis para qualquer observador, apontando para um futuro melhor.
Esse período foi gerado por dois momentos decisivos protagonizados pelo movimento comunista: a revolução russa de 1917 e a vitória da URSS contra o nazismo. A existência de um campo socialista forte, chegando a cobrir um 1/3 da humanidade, obrigou o capitalismo a ser menos arrogante e menos selvagem, a fim de concorrer e brecar o avanço do socialismo. Esse equilíbrio era baseado em dois consensos: (i) o liberalismo absoluto gerava tragédias sociais, portanto era necessário adotar políticas redistributivas comandadas pelo Estado, o qual detinha grande poder de planejamento sobre suas economias; (ii) o colonialismo da civilização ocidental construído ao longo da modernidade deveria ser destruído para que os povos vivessem em fraternidade.
Quais eram estas quatro tendências?
O socialismo real, a social-democracia nos países desenvolvidos e, na periferia, o nacionalismo revolucionário e o nacional-reformismo – este último recebeu nomes variados, como “populismo”, “desenvolvimentismo”, etc.
Claro que não era um mar de rosas e havia problemas de todo tipo, assim como os reacionários nunca deixaram de existir, mas de modo geral dava para ser otimista com o futuro da nossa espécie sem parecer um ingênuo.
O evento decisivo para a reversão destas quatro tendências foi a derrota da URSS na Guerra Fria. Essa tragédia determinou o avanço das desigualdades (tanto das classes dentro dos países, quanto entre as nações), o avanço da riqueza parasitária mais infame, a volta de guerras neocoloniais cada vez mais devastadoras (Iugoslávia, Iraque, Líbia, Síria, Iêmen, etc.), o avanço da velha divisão internacional do trabalho entre industrializados e primário-exportadores.
É claro que cada uma dessas tendências políticas possuía suas próprias forças e limitações, mas elas só podiam existir devido à força da URSS e a ameaça que ela representava para o capitalismo desenfreado. Sendo bem esquemático, estas tendências eram as seguintes:
1. O socialismo real, apesar de ter acabado com vários problemas do capitalismo (falta de moradia, desemprego, etc.) e ter construído uma estrutura de bem-estar social importante, se ossificou e perdeu dinamismo econômico e capacidade de criar uma democracia de massas verdadeira.
2. A social-democracia gerou avanços sociais consideráveis para os países do capitalismo desenvolvido, mas manteve o pendor colonial e eurocêntrico – veja sua atuação deplorável na guerra de libertação da Argélia contra a França, por exemplo –, sendo linha auxiliar da direita contra o socialismo em diversos momentos da Guerra Fria, assim como perdeu a capacidade de compatibilizar, nos períodos de crise – a partir dos anos 70 –, uma economia baseada no lucro e na propriedade privada com a manutenção e avanço de uma estrutura de bem-estar público.
3. O nacionalismo revolucionário, muitas vezes amalgamado com o socialismo (China, Vietnã e Cuba são só os exemplos mais famosos) gerou um mundo no qual não havia mais espaço para os antigos impérios coloniais, porém, com raras exceções, não conseguiu fazer estes países saírem da condição de dependência econômica, política e tecnológica, bem como gerou, em alguns casos, criação de novas elites opressivas, desta vez de caráter autóctone.
4. O reformismo da periferia, que visava diminuir a distância dela em relação aos países avançados, criou Estados nacionais de fato onde antes só existia uma federação de oligarquias (o caso do trabalhismo brasileiro, peronismo argentino e o nasserismo egípcio), industrializou países antes apenas primário-exportadores, incorporou classes subalternas na política, mas se deparou também com limitações e problemas graves, que vão desde o personalismo exacerbado e autoritário até as crises cambiais decorrentes dos déficits no balanço de pagamentos e a consequente inflação.
Pintei este quadro geral para que tenhamos noção que durante um período a humanidade teve um projeto, um horizonte comum, que só foi possível pela força do movimento comunista. De modo geral, quanto mais forte foi o movimento comunista (por exemplo, logo após a vitória contra o nazismo) mais avanços sociais e igualitários existiram, inclusive no centro do capitalismo avançado – lembremos do papel dos partidos comunistas italiano e francês na consolidação de suas novas repúblicas, após a liderança nas guerras de resistência contra o nazismo.
Este mundo tomado por revoluções vitoriosas, derrotas de exércitos coloniais arrogantes por países pobres, reformas sociais e políticas vigorosas, foi derrotado pelo fim do “mundo socialista” – facilitado por suas próprias fraquezas –, que permitia que até mesmo no capitalismo avançado houvesse mais concessões sociais e direitos. No lugar tivemos o não projeto, a ausência de perspectiva. O individualismo hedonista, a competitividade egoísta, a separação entre winners e losers, o retorno a guerras de agressão coloniais, e outras tendências típicas da civilização liberal pré-1914 retomaram o protagonismo.
Tal conjuntura global só pôde existir porque antes dele tivemos 30 anos de catástrofes, um dos períodos mais conturbados da história do capitalismo: duas guerras mundiais, o colapso liberal de 1929, o avanço do fascismo e uma revolução comunista vitoriosa.
Isto nos obriga a pensar: há possibilidade de que um mundo novo surja sem que no meio da catástrofe (as guerras e conflitos estão cada vez mais frequentes) ocorra um novo Outubro de 1917? O que nos faz pensar que o capitalismo oferecerá alternativas sem que haja contra ele um movimento comunista forte e polarizador? Veja como os “governos progressistas” da América Latina, até os sólidos, como a Bolívia de Evo Morales, caíram fácil, fácil, por golpes e contrarrevoluções ou como a esquerda no centro do capitalismo é bloqueada e tratada como uma anomalia inaceitável para as elites (ex: Jeremy Corbyn) – apenas o pensamento único, o “there is no alternative” da Thatcher é aceitado como possibilidade.
Até para que haja reformismo sustentável a longo prazo, é necessário que mais uma vez a hipótese comunista seja defendida e experimentada, absorvendo e superando todas as lições apreendidas pelos êxitos e derrotas destas quatro tendências citadas. Sem novos Outubros de 1917 não creio que haverá algo a bloquear a tendência inerentemente concentradora, desigual e destruidora do capitalismo. Este é um dos desafios de nossa geração: fazer com que ideias como “comunismo’ e “revolução” voltem a fazer parte do léxico político corrente.
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Diogo Fagundes é estudante de Direito da USP.
Ótimo e corajoso artigo! Tomo a liberdade de trazer aqui minha contribuição a esse debate: https://democraciasocialismo.blogspot.com/2017/08/a-epoca-historica-fim-da-historia.html
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