Lúcifer! Lúcifer! Lúcifer!

"Deparei com uma aluna que fazia o sinal da cruz cada vez que eu dizia a palavra “Diabo”. No começo a benzeção me incomodou. Depois, acho que inconscientemente, despertou em mim um viés algo sádico. Como Cristo multiplicara pães e peixes, comecei a multiplicar as referências ao Capiroto, com ênfase crescente."

Emil Jannings em fotograma do filme Fausto (1926), de W. F. Murnau.

Por Flávio Aguiar.

Prólogo

Novamente, cito meu futuro livro, Viagens erráticas, heréticas, eróticas. Este vai compreender, além de percorrências neste nosso planeta por certo esférico, a possibilidade de passagens entre este nosso vale com ou sem lágrimas e, hum, bem, digamos, algum “outro mundo”, seja lá o que isto for. Este relato – que é verdade e dou fé – é parte disto. Esclareço que tornei-me, ao longo do tempo, um especialista em ressonâncias da Bíblia na literatura e também em imagens do inferno na mesma. Uma espécie de modesta contrapartida de Visão do Paraíso, do Sérgio Buarque de Hollanda. Boa leitura – e cuidado!

* * *

Um dos seminários que dei várias vezes para estudantes do curso de Letras na USP versava sobre Grande Sertão: Veredas. Naturalmente um dos temas inevitáveis era o pacto com o Diabo, se houvera, se não houvera, ou ainda as duas coisas ao mesmo tempo. Entrávamos pelo Fausto de Goethe e o Dr. Fausto do Thomas Mann e outras pactâncias.

Numa de suas versões, deparei com uma aluna que fazia o sinal da cruz cada vez que eu dizia a palavra “Diabo”. No começo a benzeção me incomodou. Depois, acho que inconscientemente, despertou em mim um viés algo sádico. Como Cristo multiplicara pães e peixes, comecei a multiplicar as referências ao Capiroto, com ênfase crescente. E ela se benzia mais e mais e cada vez mais rapidamente, arregalando os olhos. Cercado pela escura morenez de sua pele, o branco dos olhos reluzia. Aquilo virou uma guerra: eu dizia, ela se benzia; e como na música do Tom Zé, ficávamos “nós dois numa demanda/nem ela ganhava nem eu”. Uma tormenta.

O assunto chamou a atenção do resto da classe: uns vinte estudantes. Notei uma expectativa montante, algumas risotas começaram a aparecer. Aí fiquei preocupado. A guerra podia desandar em abuso.

Um dia ela faltou. Era um dia de calor, as janelas estavam abertas, havia eletricidade no ar abafado, uma tempestade se preparava, lá pelos quintos do Pico do Jaraguá. As nuvens já se reboleavam no horizonte, grossas, carregadas e pretas. Aproveitei a oportunidade, e provoquei o assunto com os demais alunos. Conversamos um tanto sobre a situação. Criou-se um consenso de que deveríamos, em conjunto, adotar uma atitude de respeito para com ela, que tinha lá o direito a suas crenças, temores e talvez até traumas.

“Ademais”, eu disse, “é muito fácil dizer que não se acredita na existência do Diabo. Eu penso que alguém realmente não acredita nele, se esta pessoa for para um quarto escuro, à meia noite de uma sexta-feira, e tiver a coragem de invocar três vezes: – Lúcifer! Lúcifer! Lúcifer!”

Neste exato momento entrou, pela janela aberta, um enorme moscão verde e zumbidor. Parou no ar, entre eu e os alunos, com seu bzzzzzz infernal. De repente, deu meia-volta e sumiu pela janela.

Eu e os alunos ficamos nos olhando, apatetados. A aula terminou ali mesmo, num silêncio ensurdecedor, só quebrado pela tempestade que desabava, com suas faíscas e o ronco dos trovões.

Na semana seguinte a aluna voltou. Devia ter falado com algum psicólogo, pastor, padre, sei lá, alguém que lhe deu conselho, porque a benzeção parou. De meu lado, fiquei mais comedido, inevitavelmente falando no Diabo, mas sem a insistência nem a ênfase de antes. O vinho da crueldade se transformara em água benta solidária.

E nunca mais toquei no assunto do moscão com os alunos. Nem pensar. Vôte cobra tutufum treis veiz.

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Falando nisso | Flávio Aguiar recita um trecho de seu livro A Bíblia segundo Beliel: da criação ao fim do mundo, como tudo de fato aconteceu e vai acontecer. “O livro de Misgodeu” é uma das narrativas bíblicas perdidas reunidas pelo anjo desgarrado Beliel. Como a maioria dos narradores, Misgodeu é como Beliel: desgarrado. É um dos coadjuvantes da história; trabalha como porteiro do Inferno, um faz-tudo que toca os mecanismos daquele fim de mundo, sem o qual nada funciona no reino de Lúcifer.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Seu mais novo livro é O legado de Capitu, publicado em versão eletrônica (e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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