Sair da negação e defender a escola pública
Acusar o MEC de Bolsonaro de paralisia administrativa é ignorar que esse governo tem sim um projeto educacional – e que ele só pode ser combatido a partir da escola pública
Por Fernando Cássio.
O ano de 2019 foi duplamente catastrófico para a educação brasileira. A primeira catástrofe era anunciada: afinal, o que esperar de um governo que, desde antes da eleição presidencial, já declarava guerra a estudantes, professores, escolas e universidades? A segunda catástrofe, muito mais acachapante, é que 2019 acabou e muita gente no Brasil continua vivendo em negação quanto às capacidades destrutivas do governo Bolsonaro em relação à educação – tratando braseiro e labareda por cortina de fumaça ou achando que a redenção virá pelas mãos das elites econômicas e suas assessorias educacionais.
A negação da tragédia assume formas variadas, que vão desde o cálculo eleitoral recente do PT de que Bolsonaro é mais fácil de ser batido do que um centrista, até a desimportância com que parte da esquerda ainda vem tratando os rompantes do atual ocupante da cadeira de ministro da educação. Execra-se o governo com a sensação de que, bem lá no fundo, ele não é realmente capaz de causar danos significativos à educação nacional. Se o governo Bolsonaro é negacionista, a pior coisa a fazer é opor-se a ele com negacionismo.
Criticar o governo Bolsonaro virou uma espécie de princípio moral do debate público institucionalizado no Brasil, atestado de sobriedade para quem quer ter suas opiniões levadas a sério nesse circuito. Adaptando-se aos novos tempos, a vasta maioria dos comentadores educacionais do campo empresarial parou de contemporizar com o governo – pelo menos em público. Antes acanhados, diretores e porta-vozes de fundações e institutos empresariais da educação agora polvilham a imprensa com críticas contundentes ao MEC de Bolsonaro. Priscila Cruz, presidente-executiva da coalizão empresarial Todos pela Educação (TPE), afirmou que o MEC está “escondido atrás da cortina da ideologia” (dez. 2019), embora nos meses anteriores tenha relativizado a importância da agenda ideológica do governo Bolsonaro e a sua conexão com a paralisia administrativa do MEC que vem sendo denunciada por parlamentares – por exemplo, neste relatório de fiscalização divulgado em novembro de 2019.
Ao seu modo, as assessorias educacionais do empresariado também viveram em negação com o governo Bolsonaro em 2019, acreditando na existência de um republicanismo residual que poderia ser mobilizado – em favor de seus interesses, obviamente – por pressões da Comissão de Educação, das mesas diretoras do Congresso Nacional e das associações de gestores municipais e estaduais. Por isso, ao longo do ano passado, fundações, institutos e coalizões empresariais foram se deslocando para o Legislativo, e também para estados e municípios. Se não era possível ser “parceiro” do MEC, a estratégia seria constrangê-lo através de deputados, senadores, governadores e prefeitos. As 269 páginas produzidas pela comissão parlamentar, reunindo dezenas de recomendações para a “melhoria” da gestão do MEC, fazem parte disso.
Se parte da esquerda está em negação por contabilidade eleitoral ou por desconhecimento das pautas da educação e da potência da escola pública, a negação dos ideólogos do neoliberalismo educacional que habitam fundações, institutos e coalizões empresariais se dá pela ilusão de que são moral e tecnicamente superiores a todo mundo que pensa sobre educação no país. Seguem convencidos da imprescindibilidade de sua cantilena gestionária e de que, por conseguinte, a sua capacidade de influenciar a agenda educacional é a mesma de antes. Eles estão errados.
Eureka!
As críticas educacionais do campo empresarial ao governo Bolsonaro têm mais a ver com uma obrigação de parecer razoável aos olhos e ouvidos do público do que com rupturas políticas mais profundas. No mundo de institutos, fundações e coalizões empresariais da educação – o reino da ambiguidade – nunca é possível saber se pessoas e organizações se opõem, estão em negação ou apoiam o governo às escondidas.
Talvez a menos ambígua dessas organizações seja o Instituto Ayrton Senna (IAS), cuja presidente, Viviane Senna, tirou foto com Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018. Após o pleito, Mozart Neves Ramos, um dos diretores da organização, foi convidado por Jair Bolsonaro para assumir o MEC. Do ponto de vista dos grupos econômicos que sempre desejaram definir agendas educacionais para o país (embora isso seja virtualmente impossível), o movimento político do IAS foi inteligente. Considerados o contexto da transição de governo, os valores conservadores em comum e o governismo patológico que acomete as organizações educacionais do campo empresarial, por que não abocanhar o MEC de Bolsonaro?
Viviane Senna e Mozart Ramos pensaram igual a muita gente (em negação) no final de 2018: que os arroubos da campanha eleitoral se dissipariam nos primeiros meses do mandato presidencial, que as instituições moderariam os assomos reacionários do presidente, que o governo eleito entenderia a “necessidade” – como, aliás, todos os anteriores – de ter o campo empresarial perto (e preferencialmente dentro) do MEC. Passo arriscado, deram com os burros n’água. Uma parte da bancada neopentecostal apoiadora de Bolsonaro frustrou as expectativas do IAS e de seus sócios antes da posse presidencial.
Ficou claro desde o começo que não seria fácil defender a educação em praça pública e, ao mesmo tempo, cortejar um governo que é inimigo declarado de escolas e professores. Ainda que os reformadores empresariais geralmente defendam a educação em abstrato – afinal, quem não defende a educação? – muitos sabiam que não seria possível influenciar a agenda educacional nacional via Executivo como em tempos de outrora. Posar para a foto também não seria uma opção, como demonstrou o fracasso de Viviane Senna em influenciar Jair Bolsonaro na transição de governo. O ministério não veio, e a foto vai ilustrar muito estudo crítico sobre as organizações empresariais que fazem filantropia educacional enquanto perpetuam a antiquíssima tradição autoritária das elites nacionais.
Empossado Bolsonaro e malograda a tentativa inicial de faturar o MEC, restou ao campo empresarial se aproximar do ministério pelos bastidores. Ao longo de 2019, foram muitas as reuniões fechadas entre membros do MEC e assessores de fundações e institutos empresariais. Quase nunca divulgados, esses encontros não contavam com a presença física dos principais diretores e porta-vozes dessas organizações. Eles sabiam quem era o ex-ministro Ricardo Vélez Rodríguez e sabem quem é Abraham Weintraub, e mesmo assim tentaram avançar agendas com o governo Bolsonaro.
O Todos pela Educação, por exemplo, trabalhou para convencer o MEC de que a sua proposta para a constitucionalização do Fundeb, que avança muito pouco em termos da participação da União no financiamento da educação pública – dos atuais 10 para 15% –, deveria ser encampada pelo governo Bolsonaro. Weintraub chegou a usar dados do TPE em uma audiência pública da Comissão Especial do Fundeb (25 jun. 2019), mas voltou das férias em 2020 anunciando que o governo pretende enviar uma nova PEC sobre o tema, o que faria a tramitação do novo Fundeb, iniciada em 2015, voltar à estaca zero. O ministro traiu a confiança dos que (por interesse, é verdade) o trataram com muita condescendência. Enquanto isso, o campo educacional alinhado às demandas populares – e que jamais se aproximou do governo Bolsonaro, dando azo à traição – segue defendendo uma proposta para o Fundeb que eleva o aporte federal dos atuais 15 para 40% dos recursos do Fundo. O Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação) é, hoje, a pauta legislativa mais importante da educação brasileira, visto que seu prazo de validade é 31 de dezembro de 2020 (de acordo com a Lei n. 11.494/2007, que instituiu o Fundeb). Depois disso, ninguém sabe de onde virão os recursos para financiar a educação básica pública no Brasil – da manutenção predial ao salário do professorado.
Em declaração ao Valor (nov. 2019), Denis Mizne, diretor-executivo da Fundação Lemann, lamentou o “discurso antissociedade civil” do governo Bolsonaro ao mesmo tempo em que deixou as portas abertas para uma aproximação: “enquanto houver uma oportunidade de dar uma contribuição técnica, a gente não vai se furtar de ajudar”. Instada durante a campanha eleitoral de 2018 a se pronunciar sobre os discursos de Bolsonaro relacionados à educação – muitos gravemente ofensivos a estudantes e profissionais da educação –, a Lemann dava respostas protocolares e reforçava a sua neutralidade em relação às candidaturas presidenciais. Como o TPE, nutria a esperança de seguir frequentando os gabinetes do MEC em 2019.
Só que o ano acabou, e o investimento do campo empresarial em restabelecer suas redes de influência no MEC aparentemente não surtiu o efeito desejado. Eureka! O MEC está escondido atrás da cortina da ideologia.
Não tá fácil pra ninguém
Como se toda epifania se dissipasse em negação, as bases de apoio do campo empresarial educacional no Congresso Nacional continuam ignorando que “as questões ideológicas” são indissociáveis da inépcia do governo na condução de certas políticas educacionais. A pretexto da divulgação do relatório da comissão externa que analisou a gestão do MEC, a deputada federal Tabata Amaral (PDT/SP) afirmou em entrevista ao Estadão (nov. 2019) que a “gente não está questionando as questões ideológicas que o MEC coloca”, e que, a respeito das opções ideológicas do governo Bolsonaro, “Tudo bem, a gente pode discordar ou concordar. Mas daí nada foi feito”. No começo de 2020, já não pega bem para alguém que levanta bandeiras da educação pública dizer que “a gente pode discordar ou concordar” de um ministro da educação que prega o macartismo escolar, que defende a truculência policial contra manifestações estudantis e que afirma que a ditadura militar no Brasil é tema polêmico porque “não pacificado”. Definitivamente, é preciso discordar da linha ideológica de um governo cujo secretário da cultura se sente à vontade para transformar comunicação oficial em pantomima nazista.
Apontar a “baixa capacidade de gerenciamento dos gestores responsáveis pelas atividades do Ministério” e exigir um melhor planejamento das ações da pasta é, com todo respeito aos parlamentares de vários partidos que produziram o relatório sobre a gestão do MEC, afirmar um fato óbvio. O MEC já deixou claro que não tem o menor interesse em executar as políticas educacionais que os parlamentares esperam que ele execute. Aliás, o governo Bolsonaro já deixou claro que não tem o menor interesse em governar. E notem: isso não quer dizer que o governo não execute nenhuma política educacional. É justamente isso que precisamos parar de negar!
Não faz sentido demandar do MEC a execução de políticas educacionais com racionalidade, eficiência e atenção a determinados valores públicos, na medida em que nem o MEC, nem o ministro e nem o governo Bolsonaro operam em uma lógica de racionalidade, eficiência e atenção a valores públicos. O fato de serem reacionários, truculentos e antiescola importa mais do que o seu imobilismo na execução das políticas educacionais defendidas por mim, por você, pelos assessores educacionais dos bilionários ou por suas bases de apoio no Legislativo.
O comportamento errático, as coletivas de imprensa espetaculosas, os projetos estapafúrdios, a encenação de episódios insólitos – muitos protagonizados pelo próprio ministro –, tudo isso precisa ser encarado como aquilo que é: a política do governo Bolsonaro para a educação brasileira. Quando se afirma que o governo Bolsonaro é revisionista ou negacionista, não podemos esquecer que ele está de fato interessado em disputar a cultura e o conhecimento. O inclassificável esquete de Roberto Alvim faz parte disso. O pedagogicídio do MEC faz parte disso.
Vejamos o caso da Política Nacional de Alfabetização (PNA), lançada em abril do ano passado e criticada pelos maiores especialistas do país por mistificar décadas de pesquisa educacional. Estando convencidos de que tudo no MEC é imobilismo, em novembro de 2019 os parlamentares cobraram do ministro a execução da PNA. Em dezembro, como que atendendo o pedido da comissão, o MEC lançou – como parte das ações da PNA – o programa “Conta pra Mim”, que pretende “estimular o desenvolvimento intelectual na primeira infância com técnicas simples usadas pelos pais dentro de casa”. Um dos vídeos do programa, com orientações para a prática da “literacia familiar”, foi compartilhado nas redes sociais do próprio Jair Bolsonaro (2 jan. 2020) com a seguinte legenda: “Você se lembra de como eram os livros para os nossos filhos em governos anteriores? Os livros eram carregados de ideologias, ofendiam as famílias, atentavam contra a inocência das criancinhas… Isso mudou, estamos ensinando o correto, aquilo que os pais sempre desejaram para os seus filhos”. Alguém é capaz de dizer que o governo não está implementando a PNA ao seu modo? Na primeira semana de 2020, Bolsonaro também declarou que os livros didáticos distribuídos pelo MEC precisam ter a linguagem suavizada: “A partir de 2021, todos os livros serão nossos, feitos por nós”. Quem poderá dizer que esse governo não tem uma política para os livros didáticos?
Enquanto isso, como se nada estivesse acontecendo no Brasil, o indefectível campo empresarial prescreve as mesmas soluções gerenciais de sempre para os problemas da educação nacional. Seu rosário admonitório inclui: políticas focalizadas em etapas específicas da educação básica – rompendo com a universalidade do direito à educação; ampliação do ensino em tempo integral – contrariando evidências de que os modelos vigentes aprofundam as desigualdades educacionais; gestão para metas e resultados – em redes públicas de ensino sem infraestrutura, com salários indignos e sem políticas de permanência para estudantes pobres; maior rigidez nos processos seletivos dos cursos de licenciatura – assumindo equivocadamente que a carreira docente é atrativa e que há gente aos borbotões desejando ser professor; centralização e estreitamento curricular – simplificando a educação das massas com vistas à mera elevação de indicadores. A diferença é que, agora, as diárias e fastidiosas colunas de opinião, posts e tweets de seus porta-vozes e assessores vêm temperadas por críticas genéricas à “ideologia” do governo Bolsonaro.
Os mais arrogantes justificam a própria chatura recursivamente: se são insistentes é porque ninguém os escuta (vejam os resultados do Pisa!) e, portanto, precisam insistir com mais fervor. Só que ocorre exatamente o contrário. Os assessores educacionais do empresariado são insistentes porque são eles que nunca escutaram as escolas, nem estudantes e profissionais da educação, e nem a sociedade civil pujante que existe para além das fundações e institutos educacionais mantidos por bilionários. Financiar projetos em escolas públicas e adotar pequenas ONGs não é lidar com demandas educacionais da base. No caso das megafundações educacionais, isso serve, quando muito, para ampliar o rol de palestrantes que colore e diversifica os seus eventos.
O campo empresarial não eleva o tom contra o governo Bolsonaro para romper com ele, mas para reafirmar a ladainha gestionária que, na sua visão, os elevaria à condição de salvadores da educação nacional. Peneirados nas mais finas malhas da meritocracia corporativa, eles também estão escondidos atrás da cortina da ideologia. As fundações, institutos e coalizões empresariais que atuam na educação brasileira têm uma capacidade de escuta e uma tendência ao autoencapsulamento semelhantes às do governo Bolsonaro. Por isso é que são sempre os primeiros a tachar seus críticos – sobretudo à esquerda e nas universidades públicas – de sectários e pouco predispostos ao diálogo. Ironicamente, também são chamados de comunistas pelas alas mais delirantes do governo. Nos primeiros dias de 2020, o movimento reacionário Escola sem Partido insinuou no Twitter que a Fundação Lemann financia organizações de esquerda, e que a revista Nova Escola, braço de comunicação da Lemann, é “a revista paulofrênica do militante comunista disfarçado de professor”. Não tá fácil pra ninguém.
Atrás da cortina
É preciso ser justo. A tribo dos assessores educacionais do empresariado brasileiro não é massa homogênea. Há liberais da centro-esquerda à direita, ultraliberais autoritários e simpatizantes de múltiplos partidos. Alguns poucos são explicitamente reacionários e simpáticos ao bolsonarismo, embora muitos sejam profundamente elitistas e tenham um perfil moralmente conservador. Em geral, vacilam diante dos ataques às agendas de gênero e lavam as mãos em relação aos movimentos de perseguição e censura a estudantes e profissionais da educação.
Seu trabalho de “defender a educação brasileira” no debate público é um delicado número de equilíbrio de pratos. Ao mesmo tempo em que enxovalham o ministro da educação e pontificam na imprensa sobre desigualdades educacionais, equidade, indicadores de aprendizagem e eficiência gestionária, seus patrões sorriem para a equipe de Paulo Guedes e comemoram a bonança econômica do país. Em julho de 2019, Candido Bracher, presidente do Itaú Unibanco, afirmou candidamente que as “reformas deixam o Brasil em uma situação tão boa como eu nunca vi em minha carreira”. Com efeito, no terceiro trimestre de 2019 o lucro líquido do Itaú somou impressionantes R$ 7,156 bilhões, avançando 10,9% em relação ao mesmo período do ano anterior.
Não é mesmo possível lutar pela ampliação da participação da União no financiamento da educação básica pública falando em nome de quem se beneficia precisamente do esvaziamento do papel do Estado em financiar direitos sociais. Nem os assessores mais progressistas de institutos e fundações empresariais são capazes de defender publicamente a revogação da Emenda Constitucional n. 95/2016 ou a aprovação de um Fundeb que efetivamente garanta salários melhores aos professores e escolas com água encanada e esgotamento sanitário. O seu nível de oposição ao governo Bolsonaro é invariavelmente constrangido pelos projetos político-econômicos dos super-ricos que financiam seus projetos e pagam seus salários. Respeitando esses limites, vão repetindo que é possível fazer mais (elevar indicadores) na educação sem aumentar significativamente o investimento público. Sucessivamente traídos e frustrados no seu intento de “assessorar” o MEC de Bolsonaro, alardeiam as incapacidades técnicas (e agora éticas) do ministro da educação. Agora querem – e quantos já não queriam? – a demissão de Weintraub. Enquanto isso, atrás da cortina, uma outra parte da tribo despacha com setores bem menos midiáticos do governo Bolsonaro.
Pouca gente na educação acompanha a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, onde tramitou o Projeto de Lei do Senado n. 338/2018, que pretende regulamentar os Contratos de Impacto Social (CIS) no Brasil. De autoria do senador Tasso Jereissati (PSDB/CE), o PLS está na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal. O CIS é um mecanismo de financeirização das políticas sociais que transforma populações vulneráveis em escolas públicas, presídios, nas filas dos hospitais e do INSS em cobaias de experimentos sociais antiéticos e lucrativos. A tentativa de implantação de um CIS na rede estadual de ensino paulista, em 2017, ludibriando as comunidades escolares sobre os métodos empregados e sobre os conflitos de interesse existentes, é bastante ilustrativa daquilo que está por vir no Brasil em termos de violações de direitos coletivos e individuais. Entre os que defendem a regulamentação dos CIS no Brasil está o Grupo de Institutos Fundações e Empresas (GIFE), apoiado institucionalmente por Ford Foundation, Fundação Lemann, Instituto C&A e Instituto Unibanco, e cujo conselho de governança reúne diversas pessoas ligadas à filantropia educacional.
O périplo das coalizões empresariais em favor dos CIS não se dá, evidentemente, fora dos gabinetes do Executivo. Desde 2016, o governo brasileiro tem levado a cabo uma Estratégia Nacional de Investimentos e Negócios de Impacto (Enimpacto) para criar marcos regulatórios e um ambiente de negócios que permitam transformar políticas sociais – ou seja, as obrigações do Estado – em “negócios de impacto” passíveis de exploração lucrativa por agentes privados. Além do PLS n. 338/2018, a Enimpacto participou de todas as etapas de tramitação da Lei n. 13.800/2019, que trata da constituição de fundos patrimoniais privados (endowments) para ações de interesse público. Assinada em janeiro de 2019 por Jair Bolsonaro, Paulo Guedes e Ricardo Vélez Rodríguez, o então ministro da educação, a lei dos fundos patrimoniais tem sérias implicações na radical reforma universitária conhecida como “Future-se”, política educacional com a assinatura do governo Bolsonaro e que vilipendia a autonomia de universidades e institutos federais.
A Enimpacto conta com um Comitê de Investimentos e Negócios de Impacto, “órgão consultivo destinado a propor, monitorar, avaliar e articular a implementação da [Enimpacto]”, e que inclui “dez representantes do setor privado e de organizações da sociedade civil”. Tudo isso consta do Decreto n. 9.977/2019, assinado por Jair Bolsonaro e Paulo Guedes e que substitui decreto muito semelhante firmado por Michel Temer em 2017. Os nomes e filiações institucionais dos membros do comitê da Enimpacto podem ser conhecidos nas atas das reuniões, que são públicas. Ao ler os documentos, descobre-se, por exemplo, que um pool de fundações e institutos educacionais vêm trabalhando desde 2016 para instituir um ambiente regulatório que permita que organizações filantrópicas também possam ganhar dinheiro com as chamadas “finanças do bem”. Em 2020, a Enimpacto pretende criar uma Frente Parlamentar Pró Investimentos e Negócios de Impacto. Segurem-se nas cadeiras com esses críticos do MEC.
Na TV, nos jornais e nas redes sociais, parlamentares e assessores educacionais de institutos, fundações e coalizões empresariais reprovam a inoperância administrativa do MEC e o despreparo do ministro. A profusão de platitudes, a negação de fatos óbvios e o esforço de autoencapsulamento são as formas que encontraram para fazer girar os pratos do debate público da educação sem que se perceba que, atrás da cortina, esses mesmos atores operam diligentes a máquina de moer gente do governo Bolsonaro. E aqui é preciso ser justo. Nessa casa de máquinas, Bolsonaro chegou muito depois.
Uma questão de grau
A organização das atribuições e competências estatais para com a educação brasileira faz com que as políticas educacionais subnacionais tenham uma dinâmica própria, por vezes independente das políticas nacionais (os debates acadêmicos sobre a dinâmica federativa da educação brasileira são extensos). Por conta disso, alguns analistas educacionais vêm cultivando o autoengano de que alguns dos nossos marcos educacionais estão salvaguardados do bolsonarismo por gestores estaduais e municipais minimamente comprometidos com valores democráticos. Não estão.
Em 2019, vários estados e municípios se portaram como correias de transmissão da barbárie educacional nas redes públicas de ensino. Seguindo o exemplo de Jair Bolsonaro, que mesmo empossado continuou mobilizando seus seguidores fiéis – os 30% do eleitorado – alguns governadores e prefeitos resolveram polemizar sobre alguns dos fantasmas escolares que animam o reacionarismo educacional: “doutrinação marxista” e “ideologia de gênero”. Em nome disso, até uma política alegadamente liberal como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi usada para justificar censura a materiais didáticos contendo textos sobre identidade de gênero. O caso ocorreu no estado de São Paulo, cujo governador não faz a menor questão de esconder suas aspirações ao Planalto em 2022.
O fato de as agendas do neoliberalismo educacional terem sido todas instrumentalizadas pelo governo Bolsonaro só vem corroborar as teses que há décadas associam neoliberalismo, autoritarismo e corrosão de valores democráticos. As recentes disputas em torno da militarização escolar e do financiamento da educação básica fornecem dois exemplos didáticos dessa associação:
- Para divulgar seu projeto de implantação de escolas cívico-militares, o MEC vem utilizando como argumento a melhoria do Ideb (o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) das escolas cívico-militares em comparação ao das escolas civis. Contrapondo-se ao discurso governamental, os porta-vozes do campo empresarial educacional fazem a objeção metodológica de que não é possível isolar a variável “militarização escolar” como causa exclusiva da melhoria de indicadores educacionais. Eles têm razão, mas deixam de fora o principal: que escola pública e polícia são instituições estatais que deveriam ter finalidades completamente diferentes. Laudatório aos Contratos de Impacto Social, o liberal-conservadorismo brasileiro deveria assumir que sempre acreditou que um pouquinho de controle dos corpos e de contenção social na escola pública não fazem mal a ninguém. Também vale recordar que o fenômeno da militarização escolar antecede o governo Bolsonaro – perpassa governos petistas no Piauí e na Bahia e governos da direita liberal em Goiás e no Amazonas. De olho no eleitorado, os governos da Bahia e do Piauí fizeram questão de publicizar a não adesão de suas redes de ensino ao modelo de militarização escolar proposto pelo MEC de Bolsonaro (out. 2019). Mas seguem militarizando escolas públicas, para o deleite dos que celebram as imperfeições do federalismo brasileiro e a relativa independência das políticas educacionais subnacionais em relação às nacionais. Quem precisa de um modelo nacional, se os estados operam as mesmas políticas localmente?
- Os porta-vozes dos institutos, fundações e coalizões empresariais que atuam na educação brasileira insistem há anos que o dinheiro não importa em educação – ou, pelo menos, que importa menos do que uma boa gestão da miséria com base em avaliações censitárias em larga escala, indicadores quantitativos, metas e benchmarksinternacionais. Fazem-no com o beneplácito da centro-esquerda que esteve (ou que ainda está) no poder, e com a qual compartilham um vasto conjunto de valores educacionais e concepções pedagógicas. A implantação do Custo Aluno-Qualidade inicial (CAQi), por exemplo, criado para garantir as condições mínimas de financiamento para toda escola pública do país, deveria ter sido feita, de acordo com o Plano Nacional de Educação (Lei n. 13.005/2014), até junho de 2016. Não deve causar espanto, portanto, que Paulo Guedes leve a cartilha do subfinanciamento educacional ao paroxismo, propondo eliminar de vez a vinculação constitucional de recursos para a educação.
Tudo é uma questão de grau entre os que vivem de costas para a escola pública e defendem projetos educacionais autoritários.
Um chamado para 2020
O MEC de Bolsonaro precisa ser combatido por atacar os sujeitos escolares, por ameaçar a laicidade da escola, por violentar a liberdade de ensinar e aprender – por todas as “políticas” que vem de fato executando. Isso significa, em última instância, combater o governo Bolsonaro e o bolsonarismo como um todo e em todos os níveis. Muitos dos que se gabam de ter uma visão “realista” das políticas educacionais ignoram que o projeto educacional do governo Bolsonaro tem um imenso potencial destrutivo. Seguem convencidos de que os seus filhos, matriculados em caríssimas escolas privadas nas capitais do país, estão salvos da barbárie. Só que o projeto de poder de Bolsonaro não termina em 2022.
Negar que o governo Bolsonaro tenha um projeto para a educação brasileira é tão nocivo para a educação quanto é o próprio bolsonarismo. Não basta anunciar que o governo é administrativamente inoperante, porque ele é operante em muitos outros sentidos. Um mentecapto como Weintraub não vai se convencer da superioridade argumentativa dos arautos da governança corporativa e se converter em um gerentão obediente da noite para o dia. O projeto deste governo para a educação, que é nefasto e muito concreto, precisa ser destruído, não reformado. A grande cortina de fumaça que nubla o debate público da educação no Brasil é a tese da paralisia administrativa do MEC.
A luta contra esse projeto de aniquilação da educação brasileira deve ser feita a partir da escola pública. Financiando-a adequadamente, ocupando-a e trabalhando para democratizar seus espaços, garantindo a sua autonomia pedagógica, protegendo as relações de confiança e os laços afetivos que forjam as comunidades escolares. É uma disputa de projetos antagônicos, que não podem operar como linha auxiliar um do outro, reforçando-se mutuamente a depender do caso. Por isso é que não se pode esperar nada dos institutos, fundações e coalizões empresariais que atuam na educação brasileira. Eles só estão aguardando a saída de Weintraub para, mais uma vez, tentarem se aproximar do MEC de Bolsonaro.
No momento em que mais deveríamos nos organizar para defender a educação pública gratuita, estatal, inclusiva, laica e de qualidade, é deplorável que secretários estaduais de educação permaneçam seduzidos pelo estreitamento curricular e pela ênfase em Matemática e Língua Portuguesa para o ensino médio dos mais pobres. Oferecer menos para quem sempre teve menos. Na esteira da implantação da BNCC, a carga horária das aulas de ciências humanas e naturais nos ensinos fundamental e médio vai sendo reduzida nas redes estaduais para dar lugar a aulas de “projeto de vida” e para o desenvolvimento de habilidades socioemocionais. Para lidar com a ignomínia, mais empatia, resiliência e autocontenção e menos pensamento crítico e lastro científico. O quadro fica ainda mais sombrio quando sabemos que o grande parceiro dos governadores nas reformas curriculares estaduais – promotor da “revolução” das habilidades socioemocionais no Brasil – é o Instituto Ayrton Senna.
Se abri este texto afirmando que o ano de 2019 foi duplamente catastrófico para a educação brasileira, concluo dizendo que não sou dos que fermentam nas hipóteses mais apocalípticas, dessas que anunciam a catástrofe educacional total. Apesar de Bolsonaro, de governadores e prefeitos oportunistas, do cinismo dos assessores educacionais do empresariado e de toda forma de negação, tem muita coisa acontecendo nas escolas públicas do país. Tem coletivo feminista na escola, tem coletivo negro na escola, tem estudante organizado na escola, tem demanda por conhecimento na escola, tem fruição estética na escola, tem curiosidade na escola, tem família lutando por escola decente e democrática para suas crianças, tem profissionais da educação – inclusive nos sindicatos – defendendo o direito à educação para além de suas pautas corporativas. É por isso que a escola não sucumbe à barbarização reacionária. É por isso também que ela não sucumbiu a décadas de barbarização gerencial. O perverso CIS da rede estadual paulista foi derrotado pelas comunidades escolares antes mesmo de ser iniciado, a partir do debate esclarecido dentro das escolas.
A ampliação do acesso das massas à escola pública no Brasil não foi um presente do Estado ou das elites – foi arrancada pelas lutas populares. As famílias que passaram o ano novo na porta de uma escola na Zona Sul da capital paulista para garantir uma vaga em uma escola melhor fazem hoje o que outras fizeram nas décadas anteriores em movimentos de bairros, em abaixo-assinados nas antigas delegacias de ensino, em filas na porta das escolas, no Ministério Público, na imprensa e na rua, mesmo sob a ditadura militar. A escola pública sempre teve quem lutasse por ela. Que o digam os estudantes que ocuparam escolas no Brasil. Que o digam Paulo Freire, Anísio Teixeira, Celso de Rui Beisiegel, Sergio Haddad, Marilia Sposito, Ana Paula Corti, Antonia M. Campos, Jonas Medeiros, Rosana Pinheiro-Machado, Daniel Cara, Salomão Ximenes, a Rede Escola Pública e Universidade e todo mundo que teima em não abstrair o povo, com todas as suas contradições, nas análises das lutas educacionais.
Quem tem a escola pública gratuita como única opção na vida não pode se dar ao luxo de viver em negação. A demanda por escola pública de qualidade vem das pessoas de carne e osso que dela dependem e que sabem que a educação é um direito social, coletivo e universal no Brasil – não obstante alguns teimem em afirmar que não é bem assim. No final de 2019, uma pesquisa do Datafolha indicou que 67% dos brasileiros defendiam educação gratuita e universal, da creche à universidade. O apoio à gratuidade apareceu em todos os recortes da pesquisa, como renda, escolaridade, cor e orientação política.
O governo Bolsonaro sabe que a grande linha de resistência ao seu projeto de poder está nas escolas públicas, que concentram 80% das matrículas do país. É por isso que disputam as escolas. Se, por vias institucionais, não conseguirmos impedir o governo Bolsonaro de “suavizar” os livros didáticos distribuídos pelo MEC em 2020, eles serão corrigidos, rabiscados e transformados em arte por estudantes e professores nas salas de aula de todo o país. Virarão confete, bandeirinha de festa junina e boneco de papel machê, e nenhum brucutu poderá fazer nada para impedir.
A grande tarefa dos próximos anos para os autoafirmados defensores da educação – nas escolas, na gestão pública, nas universidades, na sociedade civil e onde mais estiverem – é impedir que as escolas públicas do nosso país sejam barbarizadas por esse governo e por seus parceiros de ocasião. Sair da negação, aceitar a derrota, deixar a arrogância de lado e defender a educação como direito e como projeto coletivo junto aos que sempre lutaram pela escola pública e contra todos os que tentarem destruí-la.
Fernando Cássio é doutor em ciências, professor da UFABC e participa da Rede Escola Pública e Universidade. Organizou o livro de intervenção Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar (Boitempo, 2019).
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