O cachorro da madame e o artigo 5º da Constituição
Dezembro. Ô mês chato para quem frequenta bares regularmente. Festas de fim de ano, geralmente promovidas por empresas em bares e restaurantes, são uma chatice para os frequentadores que não fazem parte do encontro.
Por Mouzar Benedito.
Assim disse Schopenhauer: “Quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem”,
E Charles Darwin falou: “A compaixão com os animais é das mais nobres virtudes da natureza humana”.
Concordo. E começo com essas citações para que não pensem o contrário.
Mas o assunto “animais” só entra mais adiante neste texto. O que quero escrever aqui é sobre o mês de dezembro. Ô mês chato para quem frequenta bares regularmente. Festas de fim de ano, geralmente promovidas por empresas em bares e restaurantes, são uma chatice para os frequentadores que não fazem parte do encontro.
Sempre tem alguém não acostumado a beber que, depois de dois ou três copos de cerveja, destampa a falar alto demais. Algumas mulheres têm voz estridente e uns homens também. Eles gritando ali incomodam demais a gente. E às vezes um desses botequeiros de fim de ano resolve que é um percussionista de garrafa, pega uma faca e solta e batuca desafinado e alto em garrafas vazias. Haja ouvido.
De uns anos para cá, felizmente, com meu poder aquisitivo de aposentado, vou a botecos que nunca seriam escolhidos para uma festa dessas, e nesta época não tenho tido a necessidade de passar por ruas de comércio, e muito menos ir a shoppings, coisa que evito ao máximo, faz anos que não entro num. Então, não escuto “Jingle bells” e não vejo papais noéis falando rôu-rôu-rôu…
Por falar em papais noéis, abro um parêntese. Há anos, numa palestra na Feira do Livro de Ribeirão Preto, um homem perguntou: “Já reparou que você se parece muito com o Barão de Itararé”? Respondi que sim. Não só reparei como já escrevi um livrinho sobre o Barão. Gosto dele. E disse também que há quem me ache parecido com Marx, com Bakunin… Tudo gente boa:
⸺ Só não gosto que me achem parecido com aquele velho pedófilo.
⸺ Qual? ⸺ ele perguntou meio confuso.
⸺ Aquele que fica pondo criancinhas no colo no final do ano.
Bom, voltemos aos botecos. E agora falo dos animais.
Algumas pessoas levam cachorros aos bares. Não sei se isso é respeitar a natureza desses animais. Acho que não. Mas sou voto vencido em certas questões relacionadas aos bichos de estimação, que agora chamam de “pets” – palavra que não gosto muito.
Por exemplo: defensores extremos de cachorros e gatos mandam castrar seus bichos. Eu acho uma violência enorme contra eles. Comparo a pessoas que dizem amar passarinhos e os colocam em gaiolas. Ora… Isso parece aqueles caras que “por amar a mulher” a prendem em casa. Prender algo ou alguém de que(m) se gosta é normal? Passarinho é pra viver solto, cantando e embelezando a natureza.
Bom… Agora vejo muita gente levando cachorros a bares. Alguns cachorros ficam na deles, sossegados. Mas outros não param de latir e incomodam todo mundo em volta, impedem que a gente converse calmamente, em voz baixa, civilizada.
Nesses momentos, lembro que dizem que os cachorros se parecem com seus donos. Dono chato faz o cachorro ser chato. Dono agressivo faz o cachorro ficar agressivo.
No bar das Empanadas, na Vila Madalena, em São Paulo, tem uma placa avisando que não servem a pessoas acompanhadas de cachorros, mas numa noite de domingo tinha uma mulher com um cachorro chatíssimo, que latia sem parar, alto, e foi servida normalmente. Não aguentei ficar lá muito tempo, fui embora.
E um amigo, o Chico, me contou de um bar que gosta de frequentar em Santos. Na última vez que foi lá, um grupo de mulheres ocupou uma mesa ao lado, e uma delas tinha um cachorro que também não parava de latir, e a conversa dele com um amigo tornou-se difícil.
Uma das mulheres comentou com a dona do cachorro que os dois homens da mesa ao lado pareciam incomodados. A mulher virou para eles e perguntou:
⸺ Estamos incomodando vocês?
O Chico respondeu:
⸺ Vocês, não. Mas o cachorro está.
A mulher, então, esbravejou bravíssima, gritando:
⸺ Leia o artigo 5º da Constituição! Leia o artigo 5º da Constituição! Leia o artigo 5º da Constituição!
Calmamente, ele respondeu:
⸺ E você, leia no dicionário o significado da palavra impertinente.
A mulher continuou brava, falou algumas coisas mais e o Chico continuou tentando conversar com o amigo, mas não dava. Resolveram ir embora. Pagaram a conta e se levantaram para sair e a mulher gritou de novo:
⸺ Leia o artigo 5º da Constituição!
Mais uma vez ele sugeriu que ela lesse num dicionário o significado da palavra impertinente.
Não sei se ele leu. Mas, curioso, eu li. Começa assim: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e residentes no país inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos…”
São 78 “termos” que se seguem, contra o racismo, a tortura, o tráfico de drogas, o terrorismo… E em defesa da manifestação de pensamento, liberdade de crença, dos direitos do consumidor… Nada relacionado a cachorros em botecos.
Talvez a madame ache que “todos”, no caso, não são apenas seres humanos, mas também os cachorros. Aí, seria necessário incluir outros animais também, não é? Será que eu, se for praticante de hipismo, posso entrar no bar com meu cavalo? E os latidos do cachorro talvez, para ela, seja a manifestação de pensamento do cachorro.
Torço para que neste fim de ano, ela e seu cachorro se encontrem num bar com bêbados que gritam e batucam em garrafas. Talvez se deem muito bem, e ela certamente vai entender que o artigo 5º da Constituição vale também para bêbados de voz estridentes e batuqueiros de garrafas. Só que não perto de mim. Quero distância.
***
Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996), Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia) e Chegou a tua vez, moleque! (2017, e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
Como dizia o ex-ministro Magri, o cachorro é um ser humano. Portanto…
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Parafraseando alguém: cachorro também é gente, Mouzar!
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