No trem

Acabamos aportando na estação de um hotel de luxo, onde podíamos comer durante o dia. Dormíamos no trem. Havia cerca de cem passageiros, distribuídos em três vagões. Devido ao frio, dormíamos todos num único vagão, empilhados e amassados uns aos outros para nos aquecermos. Ali desfrutei da experiência que inspirou este poema.

Por Flávio Aguiar.

No longínquo ano de 1966, no mês de julho, fiz uma viagem até o sul do Chile, na companhia dos amigos a quem este poema é dedicado. Fomos aos trambolhões, de ônibus, trem, barco, cortando o duro inverno andino até Puerto Varas, de onde reatravessamos a cordilheira para San Carlos de Bariloche e dali regressamos a Buenos Aires, depois Montevidéu e Porto Alegre, nosso ponto de partida. Houve de tudo, como sói acontecer numa aventura dessas.

Num dos episódios mais dramáticos da viagem, ficamos ilhados durante três dias e três noites no alto dos Andes, entre Las Cuevas (Argentina, 3.600 m de altitude) e Portillo (Chile, altitude 2.800 m), devido a avalanches que atravancaram a linha de trem. A locomotiva era uma maria-fumaça, pois naquela altitude, naquele tempo, naquela temperatura (20 graus negativos), as máquinas a diesel não funcionavam e ainda não havia algum movido a eletricidade.

Acabamos aportando na estação de um hotel de luxo, onde podíamos comer durante o dia. Dormíamos no trem. Havia cerca de cem passageiros, distribuídos em três vagões. Devido ao frio, dormíamos todos num único vagão, empilhados e amassados uns aos outros para nos aquecermos. Ali desfrutei da experiência que inspirou este poema, que faz parte de meu futuro livro Viagens eróticas, erráticas, heréticas.

Os passageiros mais abonados comiam no restaurante do hotel, caríssimo. Os remediados comiam na cozinha, com os funcionários, graças a um arranjo irregular feito com estes. E os mais pobres comiam o que podiam encontrar. Entre estes havia um casal que originalmente não era pobre. Tinham ido passar férias em Mendoza, na Argentina. E ali o marido perdeu nos cassinos tudo o que tinham levado. Tinham a passagem de volta para Santiago, comprada de antemão. Não tinham dinheiro sequer para pagar por alguma comida. Chegamos a salvar algo que conseguíamos na cozinha para oferecer a eles. Enfim… como diz o poema, “cada um com seu cada qual”.

* * *

No trem

Primeira versão publicada como “Categorias gramaticais”, em Colar de vidro e outros poemas (Porto Alegre, IEL, Corag, 2002).

A Edgar Magalhães e Eduardo Aydos, companheiros de viagem.

No trem
Come-se bem.
Cada um
Com seu cada qual.

Na primeira classe
A fome é adjetivo,
Picante entrada
Às regras da etiqueta.
Fome fina como prataria,
Motivo de gorjeta
No vagão restaurante,
Onde o olhar
Crepita pelo cálice,
Os dedos asseados
Passeiam pelos talheres.
Estes passeiam pelos bocados
Onde brilham as especiarias
De seus preparos delicados
Na boca que demonstra
Um certo ar de enfado,
Além de estar ocupada
Com falas mais importantes.

Na segunda classe
A fome é advérbio,
Circunstância de tempo e lugar,
Adequada, como à boa educação apraza,
Para se oferecer ao vizinho
O pacote fornido que vem de casa,
Comido com a resignação
De quem economiza no pão.
“Enfim, é a vida”,
Pensa o olhar remediado,
Distraído na paisagem,
Enquanto a boca se avia.
A fome, aqui,
É motivo de filosofia.

Na terceira classe
A fome é substantivo
E do tipo concreto.
Tem peso, e a resistência
Da mais dura forjaria.
Seu horizonte discreto
É o fundo da marmita:
Por paisagem, a mão.
Aqui o olhar
Vai do prato ao chão,
E dali ao prato vizinho.

Na terceira, olhar
Também ajuda a mastigar.
Ainda há aqueles
Que perderam o trem.
Despossuídos, desassistidos,
Têm a sensação
De não ser ninguém.
Ficam na estacão
Colhendo migalhas na mão.

Assim vai a fome
Com seu cada qual,
Viajando em todos os trilhos,
Enquanto o maquinista,
Sem parar o maquinismo,
Come a ração
Que lhe reserva a ferrovia.
E se exclama, reclamando,
Que a vida alheia
É água fresca
E sombra todo dia.

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Seu mais novo livro é O legado de Capitu, publicado em versão eletrônica (e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

1 comentário em No trem

  1. Flavio Wolf de Aguiar // 20/12/2019 às 9:10 am // Responder

    Em tempo: um dos objetivos de nossa viagem era visitar nossos amigos e ex-colegas de Colégio Anchieta, em Porto Alegre, Brasílio Sallum, Wilson Sá Brito (meu primo em segundo ou terceiro grau) e Nelson Merlin, então estudando economia em Concepción, no Chile. Brasílio tornou-se professor de Sociologia na FFLCH da USP, onde foi meu colega durante três décadas. Wilson tornou-se um grande especialista em músicas indígenas brasileiras, da Amazônia e Pantanal, residindo hoje em S. Paulo
    . E o Nelson Merlin sumiu completamente de minhas vistas

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