O levante dos búfalos
Na Índia, vacas, bois, touros e seus rebentos são sagrados. Isso é mais que sabido. O que não se sabe é que então os búfalos arcam com o prejuízo. Fazem o trabalho pesado.
Por Flávio Aguiar.
“A la luz incierta de la madrugada
examinaron sus fuerzas”.
De “Anaconda”, conto de Horacio Quiroga.
Esta história se passou em Jhunjhunum, perto da cidade de Bikaner, no deserto de Thar, na Índia, fronteira com o Paquistão.
Acontece que na Índia vacas, bois, touros e seus rebentos são sagrados. Isto é mais que sabido. O que não se sabe é que então os búfalos arcam com o prejuízo. Fazem o trabalho pesado. Não só carregam fardos, mas puxam água das entranhas da Terra, rodando em torno de cacimbas, presos a uma canga, para levantar os pesadíssimos baldes. Trabalham nos campos. Puxam carroças. Para completar este quadro, ficam presos em seu tempo de descanso, enquanto os demais bovinos flanam atrás de pães.
Pães? Sim, pães. Não há vaca, boi, touro ou bezerro na índia que não tenha dono. Quando o dia começa, a família do dono cozinha seus pães. O primeiro vai para a vaca ou bovino que faz parte dela. Daí, o bovino parte pela cidade, livre. Vai de casa em casa, comendo os pães que lhe oferecem. À noite, volta para casa. E lá fica, à espera da manhã seguinte. Durante o dia, a família produz mais pães. Comem alguns. Outros vão para os camelos, que fazem serviços de transporte. No fim do dia, o último pão é dado aos cães, os próprios e os vagabundos, que não têm dono, e dormem durante o dia, dispersos pelas ruas da cidade poeirenta, pois ela fica em pleno deserto.
E os búfalos e as búfalas? Pães? Nem pensar. Comiam e comem o ralo capim que lhes é dado e bebem o fio d’água que é sua ração diária, para que não morram e parem de prestar seus inestimáveis serviços. E assim a casta dos búfalos transmite seu secular destino para seus descendentes, desde os tempos em que Agni, o Fogo, Vayu, o Vento e Surya, o Céu, cercaram e ocuparam o que se podia ver da Terra e da Água. Nenhum búfalo ou búfala pensou em mudar essa ordem das coisas. Até que apareceu Murandar, o Iluminado.
Murandar não era um búfalo qualquer. Não pelo seu aspecto; era um búfalo comum: guampas retortas e baixas, cachaço forte, corpulento, preto, bom de pernas e de trabalho. Cumpridor de seus deveres. Mas quando seus donos o prendiam pelo cachaço, com uma corda amarrada a uma árvore, eles o faziam junto a uma imensa figueira que ficava perto da escola, vizinha à casa da família.
E de tanto ficar lá e ouvir a fala dos professores e o recitar dos alunos, Murandar aprendeu a língua que eles falavam. Que para ele era a língua dos Deuses. Porque os búfalos e búfalas acreditavam – e ainda acreditam – que aqueles seres desguampados, bípedes e com mãos livres, eram Deuses que tinham criado as diferentes castas: a dos búfalos, a mais inferior, a dos cães, poetas desocupados, os camelos, funcionários de serviços leves, os poderosos elefantes, mas subservientes, os pássaros, anjos e demônios que vinham de outros mundos, e os peixes – bem os peixes eram seres de um mundo passado que se transformara num submundo de onde ninguém voltava, se lá fosse. Havia seres neutros – carneiros, cabras, bodes, porcos cabeludos e imundos – que ninguém dos búfalos sabia dizer o que faziam na ordem da criação. Deviam ser dimensões menores a que os búfalos que não cumprissem seus deveres seriam condenados a viver na próxima encarnação.
Depois de entender as línguas, Murandar ficou aprendendo as lições. Gostava de ouvir um professor que falava uma língua estranha, vinda de longe, de outras terras, e que contava histórias de gente que lutava por alguma coisa muito estranha, chamada “Direitos”. “Liberdade” era outra palavra que aparecia com frequência. Murandar foi somando palavras: “Direitos”, “Liberdade”, “Trabalhador”, “Luta”, e assim por diante. Até que uma patrulha de soldados apareceu por ali e levou o professor. Ele se foi. Mas as palavras ficaram. E Murandar ruminou-as.
Ruminou-as tanto que passou-as a seus colegas de trabalho. Nas tertúlias de reprodução, que seus senhores lhes permitiam, ou obrigavam, ele as passou para suas companheiras.
Criou-se uma verdadeira manada de búfalos e búfalas que ruminava aquelas palavras estranhas, desmentindo a ordem do mundo que pensavam ser eterna. Apesar de sua prisão com as cordas em seu cachaço, Murandar aprendeu a mugi-las, a berra-las e assim a transmiti-las à distância. Seus irmãos e irmãs também as foram reproduzindo desta forma primitiva, mas eficaz.
E Murandar foi testemunhando estranhos eventos. Os deuses lutavam entre si. Vieram alguns, com capacetes ornando suas cabeças e longos paus de fogo em suas mãos – os mesmos que tinham levado aquele professor – e submeteram outros, levando-os. Pior: Murandar viu alguns destes capacetes armados atirarem e matarem o irmão de seu dono, ali, na frente de todos, acusado de usar as mesmas palavras que ele, Murandar, aprendera.
Foi um choque. Mas uma lição: “os Deuses também são vulneráveis”. “A ordem que eles criaram pode ser mudada”. “Podemos ter aliados entre eles”. “Que concordem em retirar os privilégios das vacas, bois e touros, ou pelo menos a reparti-los conosco. Ou, quem sabe, poderemos convencer os Deuses a fazer deles nossos servos”.
Nas horas de trabalho, ou quando era levado ao rio para beber, ou nos momentos de reprodução, ou mesmo quando estava preso à árvore, Murandar começou um longo trabalho de convencimento. Levou anos. Mas como era jovem, quando atingiu a plenitude de sua maturidade, convencera uma corte de búfalos e búfalas que eles podiam mudar o mundo, derrubar o reinado dos bovinos eleitos, estabelecendo um novo pacto com os Deuses, que fosse mais igualitário para com eles.
Mas Murandar se tornara sábio. Sabia que lutar sozinhos contra os bovinos e os Deuses adversos era arriscado. Por isso decidiu buscar aliados. Aí as dificuldades começaram. Procurou primeiro Runk-ho, o líder dos camelos. Não funcionou. “Por que vamos lutar contra bovinos e deuses? Nossa sorte não é má. Fazemos serviços sim, mas melhores que os vossos. Carregamos carroças. Andamos pelas cidades. Vós ficais presos à canga, às cordas, às arvores. Não vamos perder tempo com estas ilusões que nos descreveis”.
Procurou então Tantor, o líder dos elefantes. “O quê?”, disse este. “Uma revolta? Nós fomos feitos pra obedecer! E obedecer é um ato nobre! Saber o seu lugar! Somos combatentes sim, treinados para a guerra, somos fortes e poderosos. Mas jamais entregaremos a nossa força a um ato que contrarie a sagrada ordem dos Deuses!”. Não teve melhor sorte com os cachorros, que costumavam modorrar pelas ruas. “Queremos modorrar sem fim, uivar para a Lua, e garantir nosso pãozinho no fim da tarde”, disse-lhe Pasthor, o chefe dos cães.
Murandar nem tentou com os pássaros e com os peixes. Aqueles eram inatingíveis. Os peixes, além de não entenderem patavina de língua nenhuma, eram seres inferiores diante deles, os submissos mas fortes búfalos. O mesmo lhe pareceu quanto aos porcos cabeludos e as ovelhas, bodes e cabras que por ali havia. Ademais, eram muito poucos para ajudar a causa. Cavalos? Asnos? Nem pensar. Eram como extensões dos Deuses seus amos. Ursos, lobos? Distantes demais. Viviam em universos paralelos, inebriados pela natureza, condenados ao extermínio.
Bois, vacas, touros? Mas eles eram os privilegiados! Bem, havia alguns que faziam trabalhos forçados também. Muito poucos. Deviam ser condenados por mau comportamento. Não adiantava. Teriam de lutar sós, por si mesmos.
Murandar não desanimou. Sobretudo porque ouvira, ainda quando ficava preso perto da escola, uma incrível história, vinda de uma terra d’além-tudo, que falava de um estranho Deus, chamado “Buffalo Bill”. Ele organizava espetáculos para crianças, para adultos, para os outros Deuses. “Deve haver terras onde aquelas palavras que aprendi, como “Liberdade”, prevalecem. Vamos à luta!”.
O trabalho de organização foi muito paciente, mas eficaz. Um belo dia, quando um camponês da vizinha cidades de Judhasar, soltou seu búfalo da corda para leva-lo à canga do poço onde ele mourejaria para trazer a água à superfície, este, que se chamava Nhacaninó, ouviu um mugido que vinha desde Jhunjhunum, se rebelou de um salto, lhe enfiou a guampa no ventre e se desembestou pelo areal à frente. O mesmo aconteceu em inúmeros vilarejos, vilas e cidades do distrito de Bikaner, na Índia, perto da fronteira com o Paquistão. E a seguir os búfalos e búfalas, se sentido libertos, investiram contra os bovinos, vacas, bois e touros. Estes tentaram uma resistência, mas ineficaz. As vacas, com seus bezerros, fugiram para o deserto. Os bois não tinham ânimo para lutar. Os poucos touros que restavam pouco puderam fazer. Os que não caíram ante a fúria das guampas búfalas também se refugiaram no deserto.
Diante da vitória, Murandar pregou a moderação. “Reunamo-nos num lugar onde possamos parlamentar com os Deuses”, disse ele, “que certamente virão dispostos a negociar conosco melhores condições de vida para nós”. Nhacaninó discordou. Disse: “Eles, os Deuses, não virão negociar. Eles virão nos exterminar. Devemos fugir para o deserto. Organizarmos pequenos grupos que resistirão, voltando à vida livre que Agni, Vaya e Surya nos destinaram, quando imperavam sobre a Terra. Agora outros Deuses imperam sobre ela. Ouvi seus nomes: Vitoria, God, Etcetera, nada têm a ver conosco. Vamo-nos”.
O ponto de vista de Murandar prevaleceu. E eles se reuniram na Grande Praça de Jhunjuhunum, à espera dos Deuses. E eles vieram. Não para negociar. Para atirar, e reafirmar seu poder. Vieram com sua vanguarda de capacetes e paus de fogo que semeavam a morte à distância, dizimando os búfalos na praça. Nhacaninó organizou uma resistência, com alguns búfalos jovens. Investiu. Abateram, com suas guampas e patas, alguns dos atacantes. Mas acabaram sendo mortos a tiros de fuzil.
E assim foram batidos búfalos e búfalas, até que Murandar se viu cercado por um círculo de baionetas e fuzis, capacetes e estranhas fardas vindas de longe, que ele não sabia nomear. Um dos capacetes perguntou: “Abatemos este também?”. “Não”, disse outro capacete. “Vamos os leva-lo a Bikaner. Ele servirá de exemplo”.
E assim foi feito. Prisioneiro, Murandar foi levado a Bikaner, capital do distrito, e exibido na praça, para exemplo e escárnio dos demais búfalos. Sem falar nos cães, camelos, elefantes, etc., que vinham ali ver o pobre líder de uma revolta malograda a ser executado alguns dias depois.
Mas houve dois acontecimentos surpreendentes. Na antevéspera da execução, um homem – um dos Deuses, para Murandar, se aproximou dele, que permanecia preso ao poste de sua execução. E disse que o conhecia. Falou na língua que ele entendia. Baixinho, para que ninguém mais ouvisse. Como ele era um búfalo, os capacetes que o guardavam não prestaram atenção. “Quem seria idiota a ponto de ir falar com um búfalo desembestado?”, pensavam.
O estranho visitante falou ao búfalo. E lhe disse: “Murandar, eu te conheço. Eu fui o professor que te ensinou palavras em que pensaste e em que acreditaste. Que posso fazer por ti?” “Professor”, disse o infeliz búfalo, “ouvi dizer que numa terra distante existe um Deus favorável, chamado Buffalo Bill, nomeado segundo nossa casta. É verdade?” “Bom”, disse o professor, “sim, é verdade, mas ele foi assim nomeado por ter quase exterminado vossa espécie nas planícies daquela terra. Ele era, na verdade, vosso principal inimigo”.
“Ai”, disse Murandar, “que triste notícia! Quer dizer que ergui a minha casta em nome de uma vã ilusão! Mereço então morrer! Podeis me ajudar a tanto? Peço com fervor, antes que meus algozes me executem”.
“Bem”, disse o professor, “tenho aqui comigo uma dose de um veneno fulminante que adrede trouxe com esta ideia, para não dar a teus inimigos a alegria de te matarem. Eles não merecem tanto. Até porque, ao contrário do que pensas, não são Deuses coisa nenhuma. São idiotas, meros humanos, piores do que vós. Se quiseres, dou-te a dose”.
“Quero”, disse Murandar. E a recebeu na boca.
Antes que ele começasse a padecer, aproximou-se um outro homem. Franzino, de óculos, falando de modo a que Murandar o compreendesse, disse: “Sábio Murandar, o que aprendeste de tua luta? Sou um viajante, passando por esta região, e quero aprender contigo”.
E Murandar lhe disse: “Aprendi que lutei com as armas e os propósitos errados, me valendo dos mesmos métodos de nossos inimigos, querendo impor nossa casta sobre as demais. Fui infeliz, mereço morrer, nossa luta foi em vão”.
Mas o recém chegado tomou a cabeça de Murandar entre as mãos, e a beijou. E assim ele morreu cercado de ternura ao invés de ódio e desprezo.
O professor perguntou ao estranho: “Quem sois?”
Por trás dos pequenos óculos, o viajante respondeu: “Meu nome é Mohandas. Mas meus amigos começam a me chamar de Mahatma, o Venerável. Sou da família Gandhi, de Porbandar, em Gujarat”.
* Parte de meu futuro livro, Viagens eróticas, erráticas e heréticas.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Seu mais novo livro é O legado de Capitu, publicado em versão eletrônica (e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Texto muito bonito. No começo da leitura pensei que seria apresentado uma solução para a esquerda. Mas infelizmente não foi dessa vez.
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Caro Antonio: tem razão. O texto não apresenta uma solução, e sim uma pergunta: como não repetir os métodos dos dominadores? A seu modo, foi o que Gandhi fez…
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Excelente texto. Caro Professor, já refleti muito sobre como podemos superar esse momento difícil (eu diria bruto), e qual seria a alternativa para combater o fascismo, já que o atual governo brasileiro utiliza-se de técnicas nada convencionais e extremamente agressivas contra os trabalhadores, mas com ainda mais força contra a esquerda, e sempre acabo concluindo que precisamos ser tão ou mais “agressivos” do que eles, caso contrário sucumbiremos ao fascismo. 😟 Tenho medo do futuro que se aproxima com essa onda de violência e agressividade que esses fascistas estão despertando nas pessoas. Das duas uma: ou o povo brasileiro carrega o fascismo no seu DNA e estava latente, apenas esperando o momento certo para vir à tuna e o atual governo os representa perfeitamente, ou a alienação é tão grande que essas pessoas caíram no conto do vigário com estratégicas fake news. Entendo que o amor é o único remédio para todos os males, sei também que fascistas não sentem empatia e não pensam na coletividade. Como devemos agir com essa pessoas agressivas e intransigentes que acreditam que o mundo gira ao seu redor (ironicamente são os que acreditam que a terra é plana!…rsrs)? Grande abraço e obrigada pelo texto.
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Grande abraço, Sandra. Obrigado.
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A revolução necessita de precisão cirurgica para ser concretizada, um erro pode levar tudo a perder, foi o que aconteceu, por mais que Murandar tivesse acreditado em um falso mito, os motivos que o levaram a insurreição com outros camaradas era bem real e opressor. Ele se amargurou pelo fato de não ter tido êxito e Gandhi tentou resolver o problema da India de outra maneira, pela desobediência civil, mas a meu ver a luta de classes não respeita uma revolução pacífica há não ser a classe dominante ceder quiçá por intermédio divino ou benevolência.
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Relendo esta discussão, me ocorreu glosar uma frase de meu professor canadense, Northrop Frye: o melhor texto não é aquele que dá uma resposta definitiva, mas sim aquele que te deixa uma pergunta incontornável.
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