Michael Löwy: Marx e o mundo não-ocidental
𝘔𝘢𝘳𝘹 𝘯𝘢𝘴 𝘮𝘢𝘳𝘨𝘦𝘯𝘴 é um livro verdadeiramente desbravador que vai na contracorrente da sabedoria convencional que insiste em reduzir Marx a um pensador eurocêntrico e economicista. A obra traz à tona um teórico global cuja crítica social era sensível às diversas formas de opressão e luta social.
Por Michael Löwy.
Marx nas margens é um livro verdadeiramente desbravador que vai na contracorrente da sabedoria convencional que insiste em reduzir Marx a um pensador eurocêntrico e economicista. Como observou Douglas Kellner, com esta obra Kevin Anderson revela que Marx de fato “é o teórico sofisticado e original da história que alguns poderiam não ter esperado que ele fosse”. Analisando uma variedade de escritos de Marx, incluindo seu trabalho jornalístico produzido para a The New York Daily Tribune, bem como materiais inéditos sobre sociedades não-europeias, a obra traz à tona um teórico global cuja crítica social era sensível às diversas formas de opressão e luta social.
O conceito de “margens” pode até ser criticado por ser vago e impreciso demais, mas ele tem a vantagem de reunir muitos aspectos de desenvolvimento histórico que são periféricos à contradição capital/trabalho e ao mundo capitalista industrial ocidental – a saber, a questão do colonialismo, do nacionalismo, da raça, da etnia e das sociedades não-ocidentais. O que Anderson defende é que é possível encontrar nos escritos de Marx de 1848 a 1882 um movimento, uma evolução intelectual e política, na direção de uma concepção cada vez mais complexa e multifacetada de desenvolvimento e revolução.
No Manifesto Comunista, bem como nos seus primeiros artigos sobre a Índia (1853), ainda é possível encontrar uma abordagem “orientalista” – para aludir à conhecida crítica de Edward Said –, isto é, unilinear e eurocêntrica, culminando num apoio qualificado ao colonialismo. Contudo, seus artigos sobre as guerras do ópio na China, ou a revolta dos Cipaios na Índia (1857-1859), já têm uma clara postura anticolonialista, que será posteriormente desenvolvida de maneira muito poderosa no capítulo sobre “acumulação primitiva” no final do primeiro livro d’O capital.
De modo semelhante, os escritos de Marx sobre a Polônia, e em ainda maior grau os sobre a Irlanda, revelam uma crescente consciência da importância de movimentos por libertação nacional, ao passo que seus comentários sobre a Guerra Civil nos Estados Unidos, focando é claro na luta pela abolição da escravidão, também revelam sua preocupação com a opressão racial: “O trabalho não pode se emancipar na pele branca onde na pele negra ele é marcado a ferro.” (1866).1
A contribuição mais original desse livro é sem dúvida sua discussão dos cadernos etnológicos (1879-1882). Parte desse material foi incluído por Lawrence Krader em sua obra The Ethnological Notebooks of Karl Marx (1972), mas boa parte dele ainda é inédito. Graças a sua participação na edição de um volume que está sendo preparado pela MEGA-2 (Marx-Engels Gesamteausgabe, a edição alemã das obras completas de Marx e Engels), Anderson teve acesso a esses manuscritos e apresenta alguns deles aqui pela primeira vez.
Os cadernos – que trazem excertos de Maksim Kovalévski, Robert Sewell, Karl Bücher, e muitos outros antropólogos e historiadores, frequentemente seguidos pelos comentários de Marx – documenta não apenas seu anticolonialismo como também seu profundo interesse nas formas pré-capitalistas e não-ocidentais de propriedade comunal, particularmente na Índia, na Argélia e na América Latina.
Em um comentário muito interessante sobre a política colonial francesa na Argélia, Marx se refere a materiais oficiais da Assembleia Nacional Francesa em 1875 – citados por Kovalévski – onde os mesmos “rurais” que suprimiram a Comuna de Paris em 1871, denunciam a propriedade comunal na Argélia como um perigo, já que é “uma forma que apoia tendências comunistas na mente das pessoas”; aqueles representantes da burguesia francesa, acrescenta Marx, “são unânimes no objetivo: destruição da propriedade coletiva.”
Como assinala Anderson, essa preocupação com a persistência de formas comunais, mesmo no século XIX, ajuda a explicar por que ele abraçou a comuna rural da Rússia na década de 1880. Marx já havia explicado, em uma carta a um jornal russo em 1877, que seu esboço histórico da gênese do capitalismo na Europa Ocidental (no Capital) não deveria ser considerada “um itinerário geral fatalmente imposto sobre todos os povos”. Alguns anos depois, ele chegou à conclusão de que a Rússia poderia seguir um caminho diferente e que suas comunas rurais poderiam se tornar, como ele registrou em uma carta escrita em março de 1881 à revolucionária russa Vera Zasulich, “a alavanca [point d’appui] para a regeneração social na Rússia.”2
Finalmente, no prefácio, escrito a quatro mãos junto com Engels, à tradução russa do Manifesto Comunista (1882) – seu último escrito – ele afirma: “Se a revolução russa se tornar o signo para a revolução proletária no Ocidente, de modo que os dois se complementem mutuamente, então a posse comunal dos camponeses pode servir de ponto de partida para um desenvolvimento comunista.”
Numa confirmação inesperada das intuições de Marx, como observa nosso autor, importantes movimentos anticapitalistas baseados em formas comunais indígenas se desenvolveram recentemente em lugares como o México e a Bolívia.
* Resenha publicada originalmente em inglês na edição de inverno de 2011 do periódico New Politics. A tradução é de Artur Renzo, com autorização do autor.
Notas
1 Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro I: o processo de produção do capital, trad. Rubens Enderle (São Paulo, Boitempo, 2013), p. 372.
2 Karl Marx, “Carta a Vera Ivanovna Zasulitch, 8 mar. 1881”, em: Karl Marx e Friedrich Engels, Lutas de classes na Rússia (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 113
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Michael Löwy, sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969. Diretor emérito de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS). Homenageado, em 1994, com a medalha de prata do CNRS em Ciências Sociais, é autor de Estrela da manhã: marxismo e surrealismo (2018) Revolta e melancolia: o romantismo na contracorrente da modernidade, Walter Benjamin: aviso de incêndio (2005), Lucien Goldmann ou a dialética da totalidade (2009), A teoria da revolução no jovem Marx (2012), A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano (2014) e organizador de Revoluções (2009) e Capitalismo como religião (2013), de Walter Benjamin, além de coordenar, junto com Leandro Konder, a coleção Marxismo e literatura da Boitempo. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
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