Não é só por 5 ml
Tudo começou com os loucos. Depois foram as crianças. Pouco antes da explosão tudo seguia normal.
Por Mauro Luis Iasi.
Os mortos caminhavam, como sempre, de cabeça baixa. Saiam de suas casas ainda de madrugada pelas ruas frias e desertas até os pontos de ônibus, ou as estações de trem. Por serem cinzas como as manhas, ninguém os via. Translúcidos, espectrais, invisíveis.
Quando o sol nascia e a luz banhava as formas sujas e coloridas das cidades, eles já haviam tomados seus postos servindo o café, dirigindo os ônibus e caminhões, fazendo ou consertando coisas, como seus uniformes… assumiam formas visíveis/invisíveis, de maneira que se podia vê-los, ainda que, se desejasse, ignorá-los.
Apreenderam a ser educados, seguir os protocolos. Não olhavam direto nos olhos, se desculpavam mesmo sem ter feito nada, abriam espaço nas calçadas, cumpriam seus deveres e afazeres disciplinadamente.
Como pelas ruas encontravam-se muitos daqueles que continuavam cinzas, estendendo suas mãos imundas, olhando para que os olhassem, carregando suas crianças cadavéricas com narizes escorrendo e pés descalços, vestidas com farrapos, a polícia exercia seu ofício de retirá-las para os depósitos. Estes, eternamente lotados como fossas entupidas, nunca eram suficientes. Por isso as pessoas andavam pouco pelas ruas, preferindo os locais fechados onde os andrajosos não eram permitidos e o povo cinza só entrava de uniforme para servi-las, treinado para não ser visto ou notado.
Tudo começou com os loucos. Andando nus, subindo em mesas, gargalhando alto ou cantando, raivosos ou catatônicos, explodiam em sua insanidade querendo mostrar o sangue que corria em suas veias. O odor putrefato de sua carne, o brilho incendiário de seus olhos opacos – um verdadeiro perigo para si mesmo e os outros –, eram também escondidos em suas fossas especiais que igualmente estavam cada vez mais lotadas.
Depois foram as crianças. Não que fizessem algo ameaçador; era a forma pela qual elas nos olhavam. Não seria possível descrever de forma precisa, mas era como se soubessem. Conversavam entre si, riam, paravam quando alguém se aproximava, depois seguiam tramando algo inexplicável, colorido, incabível, mágico. Foi quando se tornou obrigatório dobrar suas nucas através de aparatos com telas incandescentes, individuais, o que as acalmou um pouco.
Pouco antes da explosão tudo seguia normal. Os bancos de sangue estavam com um estoque mais baixo do que o costumeiro, mas como sempre, uma coleta estava prevista. Uma vez por mês, todos deviam doar 450 ml de sangue. Como o sol já não brilhava como antes, os alimentos haviam sido substituídos por imitação de comida fazia décadas e tornou-se necessário um suplemento à base de sangue humano para manter saudável uma pequena parte da população, aquela que interessa e que seria digna de vida. O suplemento vinha em formas elegantes e saborosas, requintados quitutes, gourmetizados, como docinhos, sorvetes, eram sorvidos em narguilés coloridos e com aromas exóticos, como vinhos finos ou simplesmente como gotinhas de cristal mescladas com alucinógenos caríssimos.
Os economistas do governo calculavam que seria necessário apenas mais 5 ml de cada um para equilibrar a oferta e a demanda, um impacto mínimo que nem seria notado. As pessoas cinzas já traziam um cateter fixo no braço, instalado desde o nascimento. O procedimento portanto era totalmente indolor. Além do fato de receberem ao final um copo de água, um biscoito e uma minúscula pedra feita dos resíduos do cristal alucinógeno.
No dia da coleta, o povo cinza saiu de seus buracos como de costume, mas não se dirigiu aos pontos de ônibus e trens: seguiu andando em direção à cidade, queimando tudo que encontrava pela frente. A guarda antimotim se posicionou e fechou os acessos aos bairros ricos, onde se deram os primeiros confrontos e as primeiras mortes.
Rios de sangue corriam para os bueiros. As televisões ressaltavam o paradoxo, para não doar 5 ml a mais, litros eram derramados pelas ruas, desperdiçados, perdidos para sempre. Especialistas calculavam as perdas e o impacto sobre o desempenho da economia e as implicações políticas, enquanto as universidades buscavam desenvolver métodos de recuperação de parte do sangue escoado para os esgotos, mas alertavam dos riscos de perda da qualidade dos suplementos reaproveitados.
Apesar da violenta repressão, as massas seguiam sua marcha. A noite encontrou a cidade em chamas e os bombeiros simplesmente deixaram o fogo em paz em seu trabalho de arder. Um enorme cartaz que anunciava um novo flan com um suplemento enriquecido havia sido arrancado e servia de barricada aos revoltosos.
A tropa de choque recuava e os militares se recusavam a sair dos quarteis. O governo voltou atrás nos 5 ml extras e prometia agora dois biscoitos e uma pedra e meia de cristal pobre. Mas isso não parecia ter efeito nenhum na rebelião que se prolongou noite a dentro e por todo o dia seguinte.
Foi aí que apareceram as pichações: “abaixo os vampiros”, “o sangue é nosso”, “vou tomar seu sangue e te dar um biscoito”, entre outras palavras de ordem.
Os historiadores ainda divergem sobre como tudo acabou (ou quando, ou porque) mas o que se sabe é que os poderosos entraram em uma grave crise de abstinência e acabaram morrendo em suas casas luxuosas que se transformaram em seus túmulos. Até hoje as crianças evitam a área. Chegam até a cerca, olham, riem e saem correndo para fazer coisas mágicas.
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Mauro Iasi na TV Boitempo
No Café Bolchevique da TV Boitempo, Mauro Iasi apresenta conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre acontecimentos da conjuntura política e social recente no Brasil e no mundo. Se inscreva no canal aqui e venha tomar este café conosco!
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Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas. Na TV Boitempo, apresenta o Café Bolchevique, um encontro mensal para discutir conceitos-chave da tradição marxista a partir de reflexões sobre a conjuntura.
Muito bom. O mundo caminha pra isso…
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