Tertulian: O testamento filosófico de Lukács

"Os 'Prolegômenos à ontologia do ser social' têm o valor de um testamento por constituírem o último grande texto filosófico de Lukács"

É com tristeza que comunicamos o falecimento de Nicolas Tertulian (1929-2019). Filósofo franco-romeno muito influente no Brasil, era considerado um dos últimos herdeiros vivos do pensador marxista húngaro György Lukács, com quem manteve uma relação próxima, além de rica interlocução intelectual. Como forma de homenageá-lo, disponibilizamos um belo texto de Tertulian que incluímos como posfácio à nossa edição dos Prolegômenos para a ontologia do ser social, de Lukács. Publicado originalmente como introdução à edição italiana de 1990 dos Prolegômenos, o texto foi traduzido para o portugês por Ivo Tonet, com revisão de Maria Orlanda Pinassi, para a revista Crítica Marxista n. 3.

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Uma introdução à ontologia de Lukács

Por Nicolas Tertulian.

Os Prolegômenos à ontologia do ser social têm o valor de um testamento por constituírem o último grande texto filosófico de Lukács; de fato, foram redigidos pouco antes da sua morte.

Conhecendo o seu empenho na redação da Ontologia, obra muito aguardada por todos aqueles que tinham interesse no seu pensamento, lhe havíamos pedido, numa carta enviada de Paris, onde estávamos para realizar algumas conferências sobre a sua Estética, notícias acerca desse seu trabalho. No dia 14 de janeiro de 1971, ele nos enviou esta breve resposta, o que permite datar o nascimento dos Prolegômenos: “Com a Ontologia a coisa vai de modo bastante lento. No outono ficou pronta a primeira redação de um prolegomenon (cerca de 300 a 400 páginas). Ainda enfrento o problema da revisão e de uma eventual reelaboração. Nesse entremeio, ainda tive uma [palavra indecifrável] ligeira gripe; na minha idade, a capacidade de trabalhar retorna muito lentamente”.

Quando, dois meses depois, o visitamos em Budapeste, ele ainda não havia revisto o texto: dava andamento ao trabalho de decifração e à datilografia. A “leve gripe”, mencionada naquela carta (provavelmente um sintoma do mal que devia levá-lo no dia 4 de junho seguinte), deu-lhe tempo para redigir alguns apontamentos autobiográficos, publicados sob o título de Pensamento vivido. No entanto, não pôde revisar o texto dos Prolegômenos. A morte interrompeu a realização de um grande projeto, cujos trabalhos preparatórios tinham começado em maio de 1960 – exatamente no momento em que finalizava o volumoso manuscrito da Estética[1]. Nesse projeto, a Ontologia do ser social aparecia como o prelúdio necessário de uma Ética. Até os últimos momentos da vida, o filósofo alimentou a esperança de realizá-lo, isto é, de dar uma sequência lógica a sua Ontologia, sequência que devia ser constituída pela Ética, como testemunha uma carta de 30 de dezembro de 1970, endereçada a Ernst Bloch. Depois de alguns altos e baixos, a amizade que os havia unido na juventude era retomada por ocasião de uma iniciativa assumida por Lukács em favor de Angela Davis, à qual Ernst Bloch se tinha associado de muito boa vontade. Assim, mais ou menos cinco meses antes da morte, Lukács escrevia ao seu amigo de juventude, informando que o assunto do trabalho que projetava escrever era sobre die Entwicklung der menschlichen Gattungsmässigkeit (o desenvolvimento da generidade humana).

A Ontologia, aí compreendidos os Prolegômenos, culmina efetivamente numa teoria do gênero humano – distinguindo entre Gattungsmässigkeit an sich e Gattungsmässigkeit für sich (entre generidade em-si e generidade para-si); seria por meio da Ética que pretendia desenvolver essa problemática. “No que me toca”, escrevia ao seu correspondente, “espero conseguir terminar, nos próximos meses, os Prolegômenos para uma ontologia do ser social.” Trata-se de um passo importante, porque confirma a intenção de Lukács de rever o texto dos Prolegômenos. “E se, em seguida, vou escrever um prosseguimento teórico (desenvolvimento da generidade humana) ou, então, aquilo que tanto desejam os meus jovens amigos (uma autobiografia intelectual) ainda não está certo. Seria bonito ser capaz de trabalhar por um período suficiente para terminar todas estas três coisas.”[2]

A respeito das razões que levaram o velho filósofo a escrever os Prolegômenos, depois de terminado o texto da Ontologia (nas cartas a Frank Benseler, curador das suas obras, ele comunicava que havia completado este texto, “numa primeira redação”, no curso de 1968), não se podem formular mais d o que conjecturas. Teria Lukács pensado no ilustre exemplo de Kant, que dois anos depois da Crítica da razão pura escreveu os Prolegômenos a toda metafísica futura? Não sé pode excluir essa possibilidade. Resta o fato de que ele sentiu a necessidade de expor, em forma mais condensada – a Ontologia tinha um volume de cerca de 1.500 páginas –, as idéias mestras do seu trabalho e os seus objetivos. O subtítulo dos Prolegômenos – “Questões de princípio de uma Ontologia que hoje se tomou possível” – deixa transparecer claramente essa intenção. Segundo alguns testemunhos (especialmente aquele de István Eörsi, seu tradutor para o húngaro), Lukács tinha algumas dúvidas a respeito do modo como fora organizada a matéria da Ontologia, subdividida em uma parte histórica (onde, apesar disso, o capítulo sobre Nicolai Hartmann precede aqueles sobre Hegel e sobre Marx, afastando-se, assim, da ordem cronológica) e em uma parte teórica, o que poderia ter dado margem a alguma repetição. Concebidos como um discurso estritamente-teórico, que tinha por objetivo fixar os pontos básicos da Ontologia, os Prolegômenos não conhecem essa dicotomia.

Depois da morte de Lukács, um grupo de filósofos húngaros (ente os quais alguns ex-alunos, como Agnes Heller), para o qual ele entregava os manuscritos da Ontologia na medida em que os escrevia, publicou um longo texto, composto de uma síntese de suas próprias observações criticas acerca da ontologia, além de uma introdução, na qual se informava a respeito das discussões que o grupo havia tido com Lukács sobre a questão. Publicadas, em tradução italiana, no final dos anos 70 na revista AutAut e, sucessivamente em inglês e alemão, essas Anotações sobre a ontologia para o companheiro Lukács, datadas de 1968,1969e 1975, criaram um clima bastante desfavorável no confronto com a obra póstuma lukacsiana, sobretudo num momento em que o leitor não tinha ainda qualquer possibilidade de tecer seu próprio julgamento sobre a obra. O texto integral da Ontologia ainda não havia sido publicado: a tradução italiana da segunda parte – a mais importante – só apareceu em 1981 e a versão original, a alemã, que incluía também os Prolegômenos, ainda mais tarde, em 1984 e 1986. Em tais circunstâncias, a precipitação de tornar conhecidas tais Anotações só se explica pelo desejo dos autores em ressaltar, a todo custo, o seu rompimento definitivo com aspectos essenciais do pensamento do seu mestre.

Do nosso ponto de vista, trata-se de um episódio importante, uma vez que, considerando que os Prolegômenos foram escritos depois que Lukács tinha conhecido as críticas formuladas por esse grupo de filósofos, seus amigos e discípulos, poder-se-ia perguntar se a decisão de escrever post festum uma longa introdução à obra não foi tomada exatamente para responder às suas objeções. Ora, uma leitura dos Prolegômenos à luz das Anotações mostra com toda evidência que Lukács não mudou uma vírgula nas suas posições de fundo tais como foram expressas ao longo de todo o texto inicial. Apesar das afirmações dos quatro leitores, que nos asseguram que o filósofo tinha admitido a pertinência de uma grande parte das suas críticas, não se constata que Lukács tenha sequer registrado tais objeções: ele continua a explicitar imperturbavelmente as próprias posições filosóficas que, segundo seus alunos, foram objeto de viva contestação da parte deles. Compreende-se, então, por que os autores das Anotações mantiveram até hoje um silêncio absoluto acerca dos Prolegômenos: o conteúdo deste livro opõe, por si mesmo, uma fin de non-recevoir ao discurso crítico deles. O único resultado tangível de tais discussões terá sido provavelmente a sensação de Lukács de não ter conseguido, com o texto da grande Ontologia, exprimir com suficiente clareza suas próprias intenções fundamentais. Pode-se, então, supor que ele tenha decidido escrever os Prolegômenos para expor, em termos mais claros e sintéticos, o seu programa de reconstrução da Ontologia.

Concebidos, pois, como introdução ao texto principal da Ontologia, os Prolegômenos representam, de fato, uma vasta conclusão. Isso explica o fato de ter a edição húngara da Ontologia resolvido colocá-los no final da obra, como um terceiro volume, enquanto o editor alemão preferiu ater-se à letra do projeto de Lukács.

Com o objetivo de favorecer a compreensão dos Prolegômenos, parece-nos útil traçar aqui algumas observações a propósito do conjunto da Ontologia de Lukács.

A publicação integral, em sua versão original, da última grande obra filosófica de G. Lukács, Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins, se deu num período que parece ter sido pouco propício a uma recepção favorável. Dois grandes volumes foram publicados pela editora Luchterhand, o primeiro em 1984 e o segundo em 1986, ou seja, vieram à luz tão-somente treze e quinze anos após o desaparecimento do pensador: trata-se, pois, verdadeiramente, da obra póstuma de Lukács. Na ocasião em que “o desmoronamento do marxismo” é apresentado, com grande espaço na mídia, sobretudo da França e da Itália, como fato evidente, o paradoxo quis o comparecimento da Ontologia de Lukács, a mais ambiciosa e a mais importante reconstrução filosófica do pensamento de Marx que foi possível registrar nestes últimos decênios.

Ponto de chegada de uma trajetória extremamente longa – sua primeira obra, Entwicklungsgeschichte des modernen Dramas, terminava em 1908 e o último toque na Ontologia era dado em 1970, ano de redação dos Prolegômenos –, a Ontologia traz algumas novidades relevantes para o panorama da obra lukacsiana. O filósofo apresenta aí, pela primeira vez num contexto sistemático, acrítica ao neopositivismo, voltada, por exemplo, para alguns dos escritos de Carnap ou ao Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein. O neopositivismo lhe aparece como o avalista filosófico do reino da manipulação. Pode-se até afirmar que o fato de voltar-se para a ontologia constitui, para ele, uma enérgica reação contra certa hegemonia do neopositivismo no cenário filosófico: diante das tentativas de homogeneização cada vez mais explícita da vida social, submetida aos imperativos do cálculo e da quantificação, a ontologia do ser social pretende dar destaque à heterogeneidade e à diferenciação extremas do tecido social, opondo uma negação clara ao confisco do indivíduo e à manipulação. Heidegger e Lukács encontram-se quando rejeitam a cibernetização da existência e quando se colocam contra o projeto de manipulação genética da vida humana; mas, as soluções propostas por eles, individualmente, são – como era de se esperar – absolutamente contrárias. De fato, a ontologia heideggeriana é alvo dos ataques de Lukács. Além de manter as criticas formuladas na obra anterior, A destruição da razão, na Ontologia, Lukács denuncia as carências da análise do Dasein no terreno ético. Examinando, por exemplo, a famosa dualidade entre existência inautêntica e existência autêntica, também tema central da sua reflexão, ele faz notar a falta de conteúdo ético positivo em categorias como das Gewissen (a consciência) ou die Entschlossenheit (o caráter resoluto) e a abstração na qual desemboca a transcendência do Dasein. A profundidade enigmática do ser heideggeriano, verdadeiro pendant do silêncio proposto por Wittgenstein diante dos grandes problemas da existência (a expressão hegeliana, leere Tiefe, “profundidade vazia”, figura como epígrafe anteposta por Lukács ao capítulo sobre o neopositivismo e o existencialismo), ele contrapõe uma imagem ricamente articulada do ser, fundada no princípio hartmanniano da estratificação progressiva dos níveis ontológicos. O verdadeiro principium movens, porém, da Ontologia do ser social encontra-se em outra parte.

Lukács tinha perfeita consciência do extremo empobrecimento sofrido pelo pensamento marxista durante a época staliniana. Aos seus olhos, o stalinismo consistia não apenas em um período de “profunda desumanidade” e de crimes, mas também num conjunto de concepções teóricas que havia pervertido a própria naturezado pensamento de Marx. Deste modo, a Ontologia do ser social representa um gigantesco esforço para examinar, passo a passo, as categorias fundamentais do pensamento marxiano, a fim de restituir-lhe a densidade e a substancialidade, revelando ao mesmo tempo as raízes da sua degradação devida ao stalinismo. Obra de síntese, concebida no curso dos anos 60, a Ontologia pretendia ainda precisaros pontos do debate que havia agitado o pensamento marxista nos últimos decênios. Não se deveesquecerque Lukács tinha sido um dos principais atores das discussões iniciadas por Sartre e Merleau-Ponty na metade dos anos 50 sobre a natureza do marxismo. Sartre o tinha atacado vivamente em Questões de método e Merleau-Ponty ocupara-se longamente dele nas Aventuras da dialética. Por outra parte, a glorificação e as discussões ensejadas pela obra de juventude, História e consciência de classe, não se mantêm, em algumas áreas da intelectualidade, com a sua obra da maturidade. A Ontologia pennitia-lhe abordar a fundo esses pontos de dissenso e fornecer esclarecimentos acerca dos problemas essenciais do marxismo e dos fundamentos da própria evolução.

Tomemos, por exemplo, o conceito de necessidade na história, que nos parece um dos pontos de partida do seu pensamento ontológico. Nas conversações com István Eõrsi e Erzsébet Vezér acerca da sua biografia intitulada Pensamento vivido, que tiveram lugar em maio de 1971, um mês antes da sua morte, Lukács afirma, num certo momento, que as origens da interpretação logicizanteenecessitarista da historia–difundida tanto no período staliniano, como, anteriormente, na época da Segunda Internacional – remetem a F. Engels. Lukács não hesita em questioná-lo, como já havia feito varias vezes na Ontologia, com o objetivo de distinguir o pensamento autenticamente ontológico de Marx da interpretação dada por Engels, segundo ele ainda muito impregnada de logicismo hegeliano. O interesse disto está em que, no plano estritamente filosófico, Engels é considerado responsável, de certa forma, pela deformação staliniana do marxismo:

Eu acredito, e isto é, antes de mais nada, muito importante – sem esta deformação o stalinismo não teria sido possível –, no fato deque Engels e, depois dele, alguns social-democratas interpretaram o desenvolvimento da sociedade em termos de necessidade em contraste com aquelas conexões sociais das quais fala Marx. Marx praticamente sempre diz que x homens da sociedade em questão reagem de maneira x a um dado sistema de trabalho e que destas relações x sintetiza-se o processo verificado naquela sociedade. Ipso facto, isto não pode mais ser necessário no sentido em que dois mais dois são quatro.[3]

Lukács identifica em Engels uma certa distorção da relação entre universal e particular ou, mais precisamente, entre a necessidade e a casualidade. A subestimação do peso das casualidades e o crédito excessivo dado à força impessoal ou um deus absconditus lhe pareceram reminiscências da filosofia hegeliana.

A crítica endereçada por Nicolai Hartmann à filosofia hegeliana – que, segundo ele, privilegia indevidamente o papel do universal lógico e minimiza o peso dos indivíduos e das suas ações regulares – encontra eco em Lukács: as reprovações que faz a Engels estão de acordo, nesse ponto, com as objeções de Hartmann a Hegel.

Na introdução ao seu livro intitulado Möglichkeit und Wirklichkeit, Nicolai Hartmann escreveu, a propósito da filosofia da história hegeliana, que “essa faz valer como historicamente real [geschichtlich-wirklich] somente aquilo que é realização da ‘Idéia’ [eines substantiell wirkenden geistigen Prinzip, ‘de um princípio espiritual que age de maneira substancial’], enquanto a grande massa dos homens, dos acontecimentos, dos destinos privados permanece ‚irreal’ [unwirklich] e se toma massa de detritos da história [zum Schutt der Geschichte zurückfallt]: A violência metafísica do conceito teleológico da realidade talvez nunca se tenha apresentado com tão terrível clareza como nesta tardia extremização”.[4]

Nicolai Hartmann insistiu, nos seus trabalhos, no fato de que a necessidade é uma categoria modal subordinada à realidade e às determinações inscritas no coração dos fenômenos. Lukács retomou as análises de Hartmann, acentuando o caráter relativo e condicionado da necessidade: se um contexto determinado reúne um certo número de condições, então o efeito que daí deriva tem um caráter necessário e irreversível. Em conseqüência, Lukács fala de uma wenn-dann-Notwendigkeit (necessidade se-então). Muito mais que onipotente e transcendente, a necessidade sempre aparece como funcional às determinações do real e exprime as conexões que daí derivam: mudando as premissas (que podem apresentar-se de maneira imprevista e “casual” num determinado contexto), nós mudamos também o curso dos fenômenos. A racionalidade dos fatos não pode ser estabelecida a não ser post festum, e toda tentativa de fazê-los entrar em modelos preestabelecidos (a partir de uma grade a priori da racionalidade) só pode terminar em fracasso.

No capítulo da Ontologia dedicado a Marx, Lukács critica Engels por haver resolvido mal o dilema “historicamente ou logicamente”, formulado a propósito da concepção marxiana da história. Ao tratar de Para a crítica da economia política, de Marx, Engels afirma que a compreensão da história exige, como único método adequado, die logische Behandungsweis, “o modo lógico de tratar” a matéria, que “nada mais é do que o fato histórico, apenas despojado da forma histórica e dos elementos ocasionais perturbadores”. “História despojada da forma histórica”, exclama ironicamente Lukács, comentando: “Aqui está, de modo especial, o retorno de Engels a Hegel”.[5]

Este exemplo nos permite compreender a vocação verdadeira da Ontologia de Lukács. Seu objetivo é superar duas deformações simétricas do pensamento de Marx, cada uma das quais contribuindo para comprometer-lhe ou destruir-lhe a credibilidade. O determinismo unívoco, que absolutiza o poder do fator econômico, tirando a eficácia dos outros complexos da vida social, é condenado com rigor não inferior àquele usado para condenar a interpretação teleológica, que* por sua parte, fetichiza a necessidade ao considerar toda formação social ou toda ação histórica como um passo no caminho para a realização de um fim imanente ou transcendente. E o epíteto de “perturbador” aplicado ao elemento casual que faz Lukács reagir diante deste texto de Engels, uma vez que ele lhe lembra uma certa tendência hegeliana ao privilegiar a categoria da necessidade (Hegel, no parágrafo 119, item 1, da sua Enciclopédia tinha escrito: “o verdadeiro pensamento é o pensamento da necessidade”).

Solicitado a colaborar, em 1967, num volume em homenagem a Wolfgang Abendroth, Lukács decidiu publicar, pela primeira vez, um fragmento da sua Ontologia (fragmento que, antes da sua aparição no volume antológico, tinha sido publicado pela revista Fórum, de Viena). E é significativo que, em tais circunstâncias, ele escolhesse as páginas do capítulo sobre Marx onde discute o ultra-racionalismo na interpretação da história. Ocultando a diversidade e a heterogeneidade das categorias de possibilidade e de casualidade, o racionalismo chegava a sacrificar, numa visão retilínea e monolítica, a desigualdade de desenvolvimento dos diferentes complexos. Aqui a mira era dirigida contra o stalinismo, e de fato Lukács sublinhava com força, apoiando-se em Lenin, o caráter, por definição, não clássico do desenvolvimento do socialismo na União Soviética (enquanto a canonização do modelo soviético era exatamente um dos pilares do stalinismo). Quando, então, nas suas conversações autobiográficas com Eõrsi e Vezér, define o stalinismo como um “hiper-racionalismo” (em 1956 tinha falado de “idealismo voluntarista”), nada mais faz do que denunciar a mesma inclinação para violentar a história: a racionalidade extremamente diferenciada e complexa do processo histórico era substituída por esquemas redutivos de caráter determinístico ou então teleológico.

A virada em direção à ontologia deu-se, portanto, em Lukács, com fundamento em uma dupla reação. Diante do neopositivismo – que tendia a reduzir a realidade à sua compreensão cognitiva, àquilo que é nela mensurável e redutível a termos lógicos, enquanto se libertava dos problemas ontológicos atribuindo-os à esfera da “metafísica” – ele pretendia restabelecer a autonomia ontológica do real, a sua totalidade intensiva e a sua irredutibilidade à pura manipulação. A complementaridade entre hegemonia do positivismo e ressurreição das ideologias religiosas era ilustrada por ele ao afirmar, provocativamente, que o pensamento de Camap tem hoje a mesma função que o pensamento de Tomás de Aquino teve na Idade Média.[6] Por outro lado, a tendência do marxismo dogmático em privilegiar a categoria da necessidade, tornando hipertrófico seu papel na história, levava Lukács a refletir a fundo sobre as relações entre as categorias modais (possibilidade, necessidade, casualidade) e a reexaminar criticamente os próprios fundamentos do pensamento de Marx. Não se deve esquecer que a Ontologia do ser social nasceu como pano de fundo de uma vasta pesquisa consagrada aos problemas da Ética. Depois de muitos anos de pesquisa (e o volume Kleine Notizen zur Ethik, anunciado pelo Arquivo Lukács, deveria dar testemunho disso), ele se dava conta de que não era possível estabelecer a especificidade da atividade ética fora de uma reflexão de conjunto, em contraposição aos componentes principais da vida da sociedade (economia, política, direito, religião, arte, filosofia): a Ontologia do ser social representa a concretização deste vasto programa totalizante, destinado a preparar a Ética (que infelizmente não mais será realizada).

Se a comparamos com os trabalhos precedentes do autor, urna das surpresas desta obra consiste na importante parte atribuída a Nicolai Hartmann. Certamente, a estima de Lukács pela filosofía da natureza de Hartmann e pelo seu opúsculo Pensamento teleológico (1951) já aparece na Estética, onde ele estabelecia um diálogo fecundo com a Estética do filósofo alemão. Padece, no entanto, que, antes de começar os trabalhos preparatorios para a sua própria ontologia, ele considerou os três grandes livros ontológicos de Hartmann, Zur Grundleg ung derOntologie (Para a fundamentação da ontologia), Möglichkeit und Wirklichkeit (Possibilidade e realidade) e Der Aufbau der realen Welt (A construção do mundo real). Espanta-nos verificar que o próprio projeto de colocar explicitamente a ontologia como base da reflexão filosófica sequer apareça nos escritos que precederam a Ontologia do ser social. Podemos, então, dizer que os escritos ontológicos de Hartmann funcionaram como catalisador na reflexão de Lukács; muito provavelmente lhe inculcaram a idéia de buscar na ontologia e nas suas categorias as bases do seu próprio pensamento. Também não se deixou perturbar minimamente pelos severos ataques de Ernst Bloch contra Nicolai Hartmann. Por outro lado, a posição fortemente critica de Lukács com relação ao pensamento do último Bloch,[7] de modo particular à sua filosofia da natureza, só podia solidificar sua solidariedade com Hartmann.

Autor, já em 1924, de um verdadeiro artigo-programa, Wie ist kritische Ontologie überhaupt möglich? (Como é possível uma ontologia crítica?), então publicado em um volume em honra de Paul Natorp,[8] Hartmann aparecia a Lukács como um pensador com o qual tinha certas afinidades, sobretudo como crítico penetrante do teleologismo. Um dos objetivos principais da Ontologia do ser social era exatamente, como já vimos, dissipar o preconceito difundido que identificava o pensamento de Marx com uma simples variante materialista da filosofia hegeliana da história, variante que teria nascido ao converter o automovimento da Idéia lógica em automo vi mento, com caráter igualmente finalístico, das relações de produção.

A definição hartrrianniana das categorias – que eram entendidas como “princípio do ser” (Seinsprinzipien) e não como “essências lógicas” {logische Wesenheiten), definição que atingia o teleologismo na raiz – pareceu a Lukács perfeitamente convergente com a categorização que havia sido proposta por Marx: Daseinsformen, Existenzbestimmungen (formas do ser, determinações da existência). Deste modo, estava de acordo com a crítica de Hartmann quanto à redução kantiana das categorias a simples “determinações do intelecto” (Verstandesbestimmungen), cujo corolário era o primado da gnosiologia na problemática filosófica, e sobretudo com a sua enérgica reprovação aos neokantianos, os quais tinham decretado, com um verdadeiro ato de força filosófico, a supressão da coisa em si.

A coincidência das duas posições é quase perfeita quanto à análise das relações entre teleologia e causalidade. Esta dupla categoria é, para Lukács, a chave de uma correta compreensão da vida social. No livro O jovem Hegel, ele tinha sublinhado a novidade do ponto de vista de Hegel, em confronto com os de Hobbes e Spinoza: com a descoberta do papel do trabalho na gênese da vida social, Hegel tinha afirmado a irredutibilidade da atividade finalística ao simples concatenar-se espontâneo das causas eficientes. Por isso Lukács encontrava-se num ambiente familiar quando leu as análises de Nicolai Hartmann que objetivavam sublinhar com energia a heterogeneidade entre o nexo final e o nexo causal, bem como a necessária dependência do primeiro para com o segundo.[9] A posição teleológica (die teleologische Setzung) não pode realizar-se a não ser utilizando as cadeias causais, uma vez que a causalidade necessariamente preexiste à atividade finalística (Hartmann diz do nexo final que ele é uma “Überformung der Kausalität“, uma sobreformação das cadeias causais): as cadeias causais, na imanência da realidade, são infinitas, enquanto a consciência “ponente”, a consciência que põe um fim, se move sempre dentro de horizontes delimitados. Na tensão dialética entre teleologia e causalidade, entre as representações da consciência que fixa os seus objetivos e a realidade indelimitável das cadeias causais, Lukács vê o principium movens do ato do trabalho.

Fixando no “pôr teleológico” a célula geradora (Urphänomen, o “fenômeno originário”) da vida social e na proliferação das “posições teleológicas” o seu conteúdo dinâmico, Lukács toma impossível a confusão entre a vida da natureza e a vida da sociedade: a primeira é dominada pela causalidade espontânea, não teleológica por definição, enquanto a segunda é constituída através dos atos finalísticos dos indivíduos. Mas a conexão indissolúvel entre final ismo e causalidade lhe permite demonstrar tanto o caráter de irredutibilidade do mundo dos valores, que é produto da consciência “ponente” (os fins nunca são apenas epifenômenos da causalidade natural) como o necessário enraizamento dos valores na rede das cadeias causais, objetivas e subjetivas. Deste modo, sua ontologia do ser social tem como fundamento uma teoria dialética da gênese dos valores. O ato de pôr os fins, cuja origem está nas necessidades incessantemente renovadas e extremamente diversificadas dos indivíduos, somente pode ser dissociado das efetivas determinações do real (incluídas as possibilidades e as latências) “com o risco do falimento” (uma expressão de Marx – bei Strafe des Untergangs – que volta continuamente, como um leitmotiv, na pena de Lukács). Daí resulta que as posições teleológicas são duplamente condicionadas: autocondicionadas pela consciência que põe, que age impulsionada pelas necessidades e pelos projetos individuais, e heterocondicionadas pelas determinações objetivas do real. Como é óbvio, os dois aspectos estão inextricavelmente interligados. Por outro lado, Lukács distingue pelo menos dois tipos de posições teleológicas: aquelas que têm como objeto a natureza em si, ou seja, aquelas que asseguram o intercâmbio orgânico entre a sociedade e a natureza (cujo exemplo privilegiado é a satisfação das necessidades econômicas) e aquelas que têm como objeto a consciência dos outros, isto é, aquelas que tentam influenciar e modelar o comportamento (é a área das relações intersubjetivas por excelência que culmina na Ética).

O esforço para fazer justiça à especificidade de todos os tipos de posição teleológica, levando em conta tanto sua necessária interação como a lei interna de cada um deles, leva a resultados importantes. A sociedade é definida como um “complexo de complexos”. Sublinhando com força a heterogeneidade de cada um dos complexos em relação ao outro, incluindo aios mais intimamente interligados (por exemplo, o Direito e a Economia) e afirmando a lógica irredutível de cada um, Lukács exclui definitivamente a concepção retilínea e monolítica do progresso histórico.

Desse modo, o filósofo pode tomar distância tanto do determinismo de tipo fatalista–que sob a forma de economicismo tem dominado, há muito tempo, na forma corrente do marxismo – como das filosofias da história de caráter teleológico.

O que lhe interessa, essencialmente, é o desenvolvimento desigual dos diferentes complexos sociais, delineado por Marx em um texto famoso: ele continua, por exemplo, a recordar que a lógica do Direito e a lógica da Economia não são de modo nenhum perfeitamente compatíveis, uma vez que as relações jurídicas são o resultado de uma opção relativamente autônoma, que nunca é um simples epifenômeno das relações econômicas; ou então observa que progresso econômico e progresso moral de modo algum coincidem, dado que a lógica do desenvolvimento econômico e a auto-afirmação da personalidade humana às vezes são assimétricas, porque cada uma delas tem uma trajetória e uma legalidade própria irredutível (o que’não exclui as conexões em nível profundo, uma vez que um projeto ético que faça abstração do estado das relações de propriedade dificilmente pode ser concebido).

A diferenciação entre os diversos tipos de pôr teleológico funda-se, em última instância, na distinção entre as ações realizadas sob o imperativo da coação (especialmente econômica) e aquelas que gozam de uma margem maior de escolha e de decisão livre. Chegamos assim a um ponto crucial da demonstração lukacsiana: o modo como o autor da Ontologia do ser social concebe a relação entre teleologia e causalidade no interior da vida social. A tese de fundo é que os processos sociais são postos em movimento exclusivamente através dos atos teleológicos dos indivíduos, mas a totalização destes atos numa resultante final tem um caráter eminentemente casual, privado de qualquer caráter finalístico. Esta tese pareceu de tal modo paradoxal, ou tão difícil de ser aceita, que os primeiros leitores do manuscrito da Ontologia do ser social (Ferenc Fehér, Agnes Heller, György Márkus, Mihály Vajda), concluíram que no texto de Lukács coexistiam duas ontologias divergentes e incompatíveis entre si: uma ontologia dominada pelo conceito de necessidade, ainda tributária do marxismo tradicional, e uma ontologia cujo centro de gravidade era a auto-emancipação do homem e, portanto, de caráter finalístico (a formulação é nossa, mas tenta apanhar o essencial das suas objeções).[10]

Para compreender o raciocínio lukacsiano, é preciso recordar a sua tese filosófica principal, que ele também divide com Nicolai Hartmann: as posições teleológicas dos indivíduos nunca chegam a exercer uma coerção absoluta, e isto porque elas só existem quando põem em movimento alguma cadeia causai; o resultado das ações de cada indivíduo nunca é inteiramente igual às suas intenções, uma vez que o resultado das ações de cada sujeito interfere no resultado das ações dos outros; daí que a resultante final escape, por definição, às intenções dos vários sujeitos particulares. O processo social, na sua totalidade, aparece como o resultado da interação entre muitas cadeias causais, postas em movimento por vários atores sociais: a resultante ultrapassa, pois, necessariamente, as intenções individuais, tendo ela, segundo Lukács, um caráter casual e não teleológico.

Com base nessa tese geral ele pode distinguir entre as ações que os indivíduos são levados a realizar sob os imperativos da reprodução econômica, ações caracterizadas por uma espécie de urgência vital, executadas “sob pena de fracasso”, e as ações que se desenvolvem nas regiões mais afastadas da atividade econômica imediata, onde o “coeficiente de incerteza” (Unsicherheitskoeffizient) acercado seu êxito é maior. Mas o desenvolvimento das atitudes e das qualidades requeridas pelos imperativos do crescimento econômico (o desenvolvimento das forças produtivas) não significa necessariamente o desenvolvimento harmonioso da personalidade. Podemos dizer que Lukács procura no espaço interior da personalidade os efeitos da lei do desenvolvimento desigual dos vários complexos sociais. É neste sentido que ele pode fazer, num certo momento, nos Prolegômenos, uma comparação um tanto arriscada entre o nível moral de uma estenodatilógrafa média atual e o de Antígona ou de Andrômeda: parece-lhe que a primeira tem, sem dúvida, quantitativamente falando, mais possibilidades, mas, sob o aspecto moral, a diferença do nível entre as heroínas antigas e esta figura típica da “sociedade de massa” é imensa.[11]

A parte mais interessante da Ontologia do ser social é dedicada aquilo que poderíamos definir como uma fenomenologia da subjetividade. As distinções entre objetivação (Vergegenstädlichung) e alienação (Entäusserung), entre reificação “inocente” e reificação estranhante, entre multiplicação das qualidades ou atitudes e sua síntese na harmonia da personalidade moral, entre o gênero humano em-si e o gênero humano para-si pertencem a este capítulo. O estranhamento é definido como contradição entre o desenvolvimento das qualidades e o desenvolvimento da personalidade. Continuando as análises hegelianas do capítulo sobre a “consciência infeliz” da Fenomenologia do espírito, ou então a distinção entre espírito objetivo e espírito absoluto, Lukács pôde mostrar como é complexo e trabalhoso o caminho que leva à superação autêntica do estranhamento. A seu ver, enquanto as objetivações da espécie humana, em sua maior parte (as instituições políticas, jurídicas, religiosas, etc.), nasceram para assegurar o funcionamento do gênero humano em-si, pelo contrário, as grandes ações morais, a grande arte e a verdadeira filosofia encarnam, na história, as aspirações do gênero humano para-si. As melhores páginas da Ontologia do ser social são provavelmente aquelas nas quais Lukács analisa a tensão entre essas aspirações irreprimíveis a uma humanitas autêntica do homo humanas e o poderoso acúmulo de mecanismos econômicos, de instituições e de normas que asseguram a reprodução do status quo social.

Há sem dúvida uma continuidade profunda entre O jovem Hegel e a Ontologia do ser social: as análises dedicadas na primeira obra às “figuras da consciência” estabelecidas na Fenomenologia do espírito e também ao famoso processo de “alienação” do sujeito e à recuperação dessa alienação (die Entausserung und ihre Rücknahme) são substituídas na segunda pelas análises dedicadas aos diferentes níveis da subjetividade (subjetividade “natural” da vida cotidiana, reificação “inocente” e reificação estranhante, estranhamento propriamente dito, espécie humana em-si e espécie humana para-si) e ao longo e complicado trajeto que conduz à verdadeira existência não-estranhada do gênero humano.

A título de exemplo poder-se-ia citar o modo como Lukács retoma a análise hegeliana da “consciência infeliz”, ilustrada pela crise que marca a antigüidade tardia. A dissolução da polis atira os indivíduos numa existência puramente “privada”, sem apoios para o sentido imanente de sua vida. Nesta época a consciência dos indivíduos torna-se cindida ou dilacerada. O estoicismo e o epicurismo esforçam-se para encontrar respostas para a situação. A análise que Hegel dedica a essa consciência cindida na Fenomenologia do espírito (o parágrafo sobre a “consciência infeliz”) deixa clara uma separação entre o plano do “inessencial” e o plano do “essencial” da consciência, entre a autoconsciência “transformável” e a autoconsciência “intransformável”. Lukács identifica a consciência inessencial, ou também transformável, com aquelados indivíduos subsumidos a uma existência cotidiana privada do sentido de interioridade, marcada pela pura “particularidade”; estes projetam a sua necessidade de essencialidade na irrealidade de um ser abstrato, localizado na transcendência. A consciência infeliz se move entre a necessidade do indivíduo de libertar-se do nada da sua “inessencialidade instável”, que é a sua condição real, e a procura de salvação em sua “essencialidade” irreal. Para Lukács, trata-se de uma forma de tomar perene a necessidade religiosa, porque desse modo se consagra a tensão entre uma existência puramente “criatural” ou “particular” e a vontade de ter acesso ao “essencial” e ao “intransformável” fugindo da prisão representada pela existência terrestre. A verdadeira solução, segundo o autor da Ontologia do ser social, consiste no abandono desse dualismo rígido.[12] E preciso descobrir, na imanência da vida cotidiana, as mediações completas que permitem quebrar as reificações estranhantes e realizar, na efetividade histórica, uma existência não-estranhada.

Os Prolegômenos não são de modo nenhum simples repetição das idéias desenvolvidas no grande corpus da Ontologia do ser social; ao invés disso, eles comportam novos acentos e até contribuições inéditas. Embora apoiando-se nas aquisições obtidas com o imenso esforço na redação da sua obra principal, Lukács se propõe, aqui, a iluminar os próprios fundamentos da sua concepção e a esclarecer os problemas a partir dessa perspectiva fundamental.

Entre as novas contribuições, deve-se assinalar a vigorosa valorização da irreversabilidade enquanto caráter definidor da historicidade, categoria considerada fundamental tanto do ser natural quanto do ser social. Objetivando contrapor uma concepção aberta do ser à concepção fechada, decidido a demolir as velhas interpretações necessitaristas do cosmos e da sociedade para abrir caminho a uma verdadeira filosofia da liberdade, Lukács utiliza os resultados de várias ciências para demonstrar que a concepção do mundo como uma totalidade fechada está definitivamente abolida. A ontologia que ele preconiza concebe o ser como uma interação de complexos heterogêneos, em perpétuo movimento e devir, caracterizada por uma mistura de continuidade e descontinuidade, que produz incessantemente o novo e cuja característica fundamental é a irreversibilidade.

Lukács remonta a Marx a origem dessa concepção (mais precisamente à tese do jovem Marx: “Nós conhecemos uma única ciência, a ciência da história “) e nos Prolegómenos dedica uma atenção toda especial à Dissertação de Marx – na qual há um confronto entre o materialismo de Demócrito e o de Epicuro – para sustentar sua própria opinião de que é muito precoce, no fundador do marxismo, a presença de uma ontologia de caráter universal.

É, também, pela primeira vez, nos Prolegómenos, que ele propõe uma reflexão sistemática sobre as categorias modais (necessidade, casualidade, possibilidade) referidas à realidade modal do ser. E verdade que eleja havia abordado estes problemas no primeiro volume da Ontologia do ser social, no momento em que discute criticamente a ontologia de Hartmann e, depois, nas análises das determinações reflexivas (Reflexionsbestimmungen) na Lógica de Hegel; mas é nos Prolegómenos que ele se concentra sobre a questão.

A abordagem do problema das categorias propostas por Hartmann nas suas grandes obras, desde Der Aufbauder realen Welt e Möglichkeit und Wirklichkeit até Philosophie der Natur, marca visivelmente o discurso lukacsiano, embora o seu nome seja raramente citado. A leitura ontológica de Marx deve muito às sugestões oriundas dos trabalhos de Hartmann. Esta ponte, lançada entre dois pensamentos tão heterogêneos, é um dos aspectos mais característicos da filosofia do último Lukács.[13] A novidade, do seu ponto de vista, está no acento muito mais forte que imprime à historicidade e à gênese das próprias categorias. Tirando proveito integral da verdadeira e própria destranscendentalização das categorias operada por Hartmann (que tinha insistido muito sobre a conexão entre as categorias e o “concreto” [das Konkretum], isto é, sobre a dependência fundamental delas em relação ao ser que as sustenta), Lukács esforça-se por mostrar que o caráter, por definição processual do ser, implica também uma gênese e um devir das categorias. Universalia in rebuse, de modo algum, puras “determinações do intelecto” aplicadas ao ser, como queria a tradição kantiana, as categorias têm uma esfera de validade circunscrita pelo substrato que as detemúna e por isso têm um estatuto histórico. Em vez de representar alguma coisa privada de gênese ou determinações a priori (Kant), elas são um produto da história do ser (o universal concreto de Hegel é uma genial antecipação deste ponto de vista genético-ontológico a respeito da natureza das categorias). A teleologia, por exemplo, é uma categoria eminentemente histórica: nasceu num determinado momento da história, quando a consciência humana projetou sua própria luz sobre o mundo das coisas, introduzindo nas cadeias causais objetivas a marca do nexo final (o nascimento do processo teleológico coincide, assim, com a emersão do trabalho), uma vez que a natureza em-si, inorgânica e orgânica, não conhece o finalismo, mas apenas a causalidade.

O giro lukacsiano em direção à ontologia, efetuado com o propósito de privilegiar a ratio essendi em vez da ratio cognoscendi, foi interpretado como o retorno a uma ontologia pré-crítica e pré-dialética.[14] No entanto, o que se passa é exatamente o contrário. Se, na reflexão filosófica, Lukács privilegia a ontologia e rejeita o primado da lógica ou da gnosiologia, é porque se recusa a encerrar a riqueza, a densidade e a heterogeneidade do real no esquema das categorias puramente reflexivas, lógicas ou cognitivas. A precisão com que Nicolai Hartmann tinha traçado as linhas de demarcação entre a ontologia, por um lado, e a lógica e a gnosiologia, por outro, objetivando um fundamento rigorosamente critico das categorias (aqui está integralmente o sentido da “ontologia crítica”), tiveram um efeito benéfico também sobre o pensamento de Lukács. E em nome de uma tal ontologia crítica (e de modo algum “pré-crítica” e muito menos “pré-dialética”) que, na Ontologia do ser social e, de modo especial, nos Prolegómenos, Lukács rastreia as tantas formas de reificação do pensamento e do real, desde a teoria platônica das idéias até o criticismo kantiano ou o logicismo nas suas diversas variantes, desde a ontologia logicizante e criptoteleológica de Hegel (que Lukács distingue cuidadosamente da “verdadeira ontologia” hegeliana, concretizada na lógica da essência) até os escritos dos neopositivistas modernos, que sacrificam a autonomia ontológica do real à sua manipulação pragmática. Deste modo, ele pode demonstrar, por exemplo, a inconsistência de uma famosa “lei da dialética”: a negação da negação. Submetendo-a à prova de um rigoroso controle ontológico, ele consegue evidenciar os efeitos negativos produzidos pela sua transubstanciação no marxismo realizada por F. Engels.

Julgamos os Prolegómenos uma introdução indispensável para compreender o pensamento ontológico do último Lukács. Infelizmente o texto é marcado, especialmente na última parte, por repetições cansativas, efeitos de redundância, que tornam a leitura, às vezes, árida. A idade muito avançada e talvez a doença tomavam o autor menos capaz de dominar o próprio discurso; desse modo, há lugares onde as mesmas idéias são retomadas em contextos que não conhecem a progressão rigorosa a que os seus escritos nos acostumaram.

A Ontologia do ser social, no seu conjunto, ainda permanece uma obra insuficientemente explorada e analisada na multiplicidade das suas ramificações: um imenso bloco errático numa paisagem filosófica dominada por movimentos de idéias mais conformistas e pouco sensíveis aos grandes questionamentos ontológicos.

NOTAS

[1] Já citamos, em outro momento, a carta endereçada a Ernest Fischer, cm 10 de maio de 1960, onde Lukács comunica a sua passagem da Estética à Ética c fala dos problemas originados por esse deslocamento no eixo dos seus interesses. Cf. Nicolas Tertulian, Lukács, la rinascita dell’ ontologia, 1986, p. 11. Um fragmento desta carta foi reproduzido na p. 243 do nosso estudo Lukács’ ontology, publicado na seleção organizada por Tom Rockmore, Lukács today. Dordrecht, D. Reidel, 1988.

[2] Ernst Bloch und Georg Lukács, Dokumente zum 100. Geburtstag, a cargo de Miklos Mesterhazi e Gyõrgy Mézei, Budapeste, Lukács Archivum, 1984, p. 150.

[3] Georg Lukács, Gelebtes Denken. Eine Autobiographie im Dialog. Frankfurt a/M., Suhrkamp, 1981, pp. 173-4. Trad. it.Giörgy Lukács, Pensiero Vissuto. Autobiografia in forma di dialogo, aos cuidados de Alberto Scarponi, Roma, Riuniti, 1983, p. 138.

[4] Nicolai Hartmann, Möglich und Wirklichkeit, Berlim, 1966, p. 22.

[5] Georg Lukács, Per una ontologia dell’ essere sociale, aos cuidados de Alberto Scarponi, I, Roma, Riuniti, 1976, p. 354.

[6] G. Lukács, op. cit, II, 2, Roma, Riuniri. 1981, pp. 701 c 806.

[7] A propósito destas divergências, ver Nicolas Tertulian, “Bloch-Lukács: A história de uma amizade conflituosa”, ín Filosofia e prassi, a cargo de Rosario Musillami, 1989, pp. 74 e ss.

[8] Encontrado em Nicolai Hartmann. Kleinere Schriften, EU, Berlim, Walter de Gruyter, 1958, pp. 268-313.

[9] Nicolai Hartmann, Teleologisches Denken, Berlim, 1951.

[10] Ferenc Fehér, Agnes Heller. György Márkus, Mihály Vajda, Premessa alie annoiazioni sull’ ontologia per il compagno-Lukács e Annotazioni…, aut aut, fascículo especial, jan.-abr. 1977, pp. 3 e ss.

[11] Cf. infra, p. 189.

[12] G. Lukács, Per una ontologia, cit., II, pp. 654-9.

[13] Cf. os nossos estudos sobre a Ontologia do ser social citados acima. Ver lambem Vitória Franco, “Historia da filosofia e teoria ontológica: Lukács”, no volume A história da filosofia como problema, Escola Normal Superior, Pisa, 1988, pp. 303-28.

[14] Cf. Stefano Petrucciani, “La dialettica mancata”, no volume Filosofia e prassi, op. cit, pp. 102-3: “… sua última filosofía termina por permanecer surda e muda diante da fundamental exigência de justificar de modo universalmente válido a própria verdade…”.

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